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4. Tales Castanho de Andrade

4.3 El-rei Dom Sapo

Logo no início desta história, Tales de Andrade aproveita para reforçar o perfil dos homens rurais como sendo incansáveis trabalhadores. Ao apresentar a beleza e a prosperidade do sítio Campestre, diz ele que quem não conhecesse os donos poderia imaginar que se tratava de gente muito rica para manter a propriedade daquela maneira. Entretanto, todos os cuidados e o zelo vinham das mãos de um casal de velhos lavradores: nhô Fidélis e nhá Vicência, que viviam para o cultivo da terra e a este labor dedicavam seu tempo.

Segundo o narrador, para o casal não havia preguiça ou cansaço. Assim como o ditado “Deus ajuda a quem cedo madruga”, os dois recebiam como prêmio divino a fartura e a formosura do Campestre.

Até que um dia, ao voltarem de uma festa religiosa no povoado, são surpreendidos pelo choro de um bebê que havia sido abandonado à sua porta. Muito piedosos, eles adotam a criança e o batizam com o nome de Agapito. Este, embora tivesse todo amor e carinho por parte dos pais adotivos, revela-se um menino extremamente cruel e de má índole:

Aos nove anos de idade, tornara-se o terror da redondeza. Martirizava os animais inofensivos. Cortara as orelhas e o rabo do Taperá, um cachorro de

estimação, guarda do sítio. Jogara água fervendo no pobre gato, o Caruncho, que morreu com o corpo feito uma ferida. Às vezes, pegava um frango e arrancava-lhe, aos punhados, todas as penas. Esvaziava os cochos para ver as criações padecendo sede. Por todos os cantos do sítio, armava esparrelas, arapucas, visgos, alçapões... Não largava do bodoque. Vivia com os bolsos cheios de pelotas, que atirava aos cavalos, às vacas, aos porcos... Quando ia à roça, sentia um prazer indizível em pisar, de propósito, as plantinhas que nasciam, milho, feijão, arroz... Gostava de malhar as árvores. (pp. 46-47)

Para tristeza dos velhos, o menino não se corrige por nada, não havendo castigo que o endireitasse ou o fizesse mais piedoso para com a natureza.

Há, então, uma pausa na história, e o escritor passa a narração para outro cenário, de mais fantasia, aos moldes de uma fábula, indo para o Brejo Sétimo Reino dos Bons Animais, governado por El-Rei Dom Sapo, animal muito sábio e querido por todos os seres.

Tales insere na história a idéia de que o Homem seria o deus dos animais. Portanto, estes jamais poderiam atacar ou prejudicar os humanos, devendo sempre defendê-los, ainda que, para isso, tivessem que lutar uns contra os outros.

Nesse momento no Brejo, comenta-se que tudo ia muito bem até Agapito surgir nos arredores, tirando o sossego dos pacíficos habitantes. Em sucessivas audiências, El-Rei passa a ouvir reclamações dos atos bizarros cometidos pelo menino, e vê-se diante de uma situação bastante desconfortável: a revolta dos bichos (Ilustração 15).

Chegava Dona Lagartixa, carregada numa padiola e gemendo, contava que o menino lhe havia arrancado um pedaço da cauda. Vinha a Senhora Tico- tico de luto, enxugando os olhos lacrimosos e avermelhados, e descrevia uma triste cena, de cortar os corações. O malvado lhe descobrira o ninho, na forquilha alta do cambará, e, sem lhe atender aos rogos, esmagara-lhes os queridos filhotes. (p. 48)

Mas El-rei Dom Sapo sempre tinha uma palavra de sabedoria, de fortaleza, e tentava apaziguar a situação o quanto podia, argumentando contra os que clamavam por justiça. Justificava que Agapito era homem, ou seja, tinha raciocínio, e que haveria de compreender, um dia, o mal que traria a si e aos seus semelhantes se continuasse a agir daquela forma. Tudo em vão. Muitos, indignados com a situação, resolvem partir para a revanche, e vão até o lugar onde estaria El-rei. Lá chegando, são informados de que Dom Sapo não poderia recebê-los naquela hora. Perdendo totalmente a compostura, invadem a toca do governante e procuram por ele, aos gritos, acusando-o de covardia e traição.

No auge da confusão aparece Agapito, que grita e ameaça um sapo. Os bichos, agarrados de pavor, percebem que o sapo era El-rei, disfarçado de um qualquer, sem os trajes oficiais. Este, então, lhes diz:

Coragem, meu povo! (...) Lancei mão de um plano e quis verificar pelos meus próprios olhos toda a razão das queixas apresentadas. Cheguei bem perto do menino, que estava adormecido. Eu queria escutar-lhe o peito, a ver se nele batia um coração. O bruxo acordou e me perseguiu. Oh! Meu bom povo! Foi uma fuzilaria de pelotadas! Pulando para a esquerda, saltando para a direita, cá estou. (p. 50)

Tendo dito isso, propõe que todos abandonem o sítio, transferindo o Sétimo Reino dos Bons Animais para outro local, onde “o Homem fosse humano” (p. 50). Finalmente, recebe o apoio dos demais, e todos partem do sítio.

Com a debandada geral dos bichos do brejo, o Campestre foi assaltado e invadido por centenas de bichos daninhos. Eram gafanhotos que estragavam os milharais, brocas que furavam canas, mariposas que atacavam o colmeal. Além desses, saúvas, moscas, caramujos, piolhos e muitos outros acabavam com o sítio, espalhando desgraça e feiúra por toda parte. É curioso notar que Tales de Andrade considera a esses seres como “bichos maus”, pois prejudicam o homem. Assim sendo, percebemos uma divisão entre homens bons (que respeitam e protegem a natureza) e homens maus (que acabam com a natureza e a destroem), bichos bons (que cuidam para que o mundo não seja infestado por pragas) e bichos maus (que devastam as plantações e põem a perder todo o trabalho humano). Não há meio termo. Homens e bichos são definidos segundo características bastante marcadas, maniqueístas.

Mesmo com os esforços de nhô Fidelis e nhá Vitória, o Campestre definha. Até que um dia chega ao povoado um homem e diz que, por ordem do governo, toda criança tem de estudar, sob pena de os pais pagarem multa e até irem parar na prisão. Então, o casal vê no ocorrido um sinal de que a escola seria a salvação para consertar Agapito. Conforme observa Soares (p. 160, 2007), a idéia de regeneração pela escola era um mote no Brasil durante os primeiros anos do século 20, tendo os projetos educacionais para o ensino

público a missão de, além de higienizar, disciplinar e moldar os intelectos, fazer isso também com os corpos e os sentimentos das crianças.

Como por milagre, a escola transformou por completo o menino:

Quanta paciência da professora! Que de artifícios ela precisou lançar mão para curá-lo! Mas, cada dia que se passava, era uma pequena vitória alcançada sobre os maus hábitos do menino.

Por fim, como água mole em pedra dura tanto bate até que fura, a brandura é que venceu. Agapito principiou a querer bem aos velhinhos que o criavam. Ficou obediente, dócil. Mas não ficou assim só para com eles. Principiou a ser bom para todos e, a pouco e pouco, tornou-se estimado de toda gente – homens e mulheres, velhos, moços e crianças. (p. 55)

De volta ao Campestre, Agapito encontra um sapo saudoso que havia retornado para relembrar os bons tempos e, ao invés de torturá-lo como o usual, ele fica feliz e o pega em suas mãos, carinhosamente.

Então, o sapo corre para contar a novidade a El-rei. Os bichos desconfiam da repentina mudança e resolvem testar o menino. Um canário e um tangará vão como isca ver o comportamento de Agapito e se surpreendem com o resultado:

O Tangará foi o primeiro que subiu à tribuna.

- Minha boa gente, disse ele, elevando a voz. Chegando ao Campestre, descobri logo o menino. Desenvolvi, então, toda a minha ciência, para tentá- lo. Bem à frente dele, bem junto dele, dancei e requebrei, à vontade. Pois cruzou os braços e ficou enlevado, a espiar-me. Sorria de gosto. Depois, quando abri as asas e voei, suspirando ele disse: - que pena!

O Canário tomou, então, a palavra e disse por sua vez: hoje. Cantei tudo o que eu soube e o que pude, diante do menino. Pois ele me ouviu com um respeito e um enlevo, como ninguém me ouviu ainda. Se não me engano, até chorou! (p. 59)

Transbordando de alegria, todos retornam ao Campestre e enfrentam as pragas, exterminando-as. Finalmente, tudo volta a ser como era antes no sítio: paz, abundância, prosperidade. Com a diferença de que agora Agapito era um moço bondoso e muito querido pelos demais, graças à mudança interior ocasionada pela educação.

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