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Elementos e Teoria: os manuais escolhidos para análise

3. ELEMENTOS E TEORIA: DOIS MANUAIS PROTOTÍPICOS

3.2 Elementos e Teoria: os manuais escolhidos para análise

Após a apresentação precedente, na qual procurei oferecer rudimentos histórico- críticos sobre a cronologia de publicação dos textos didáticos brasileiros de introdução à Semiótica, é chegado o momento da análise dos dois manuais de Semiótica que serão utilizados para uma reflexão mais pontual nesta pesquisa: Elementos de análise do discurso, de Fiorin (1989), e Teoria Semiótica do texto, de Barros (1990).

Na análise desses manuais recorrerei a estratégias de segmentação diferentes, procurando variar a quantidade de fenômenos textuais tratados.65 A proposta é iniciar a análise com a segmentação do prefácio de cada obra e, depois, ao sabor dos primeiros resultados encontrados, ir “saltando”, percorrendo (flanando) a extensão textual das obras, sem perder de vista a coerência e a visão do “todo de sentido” que se pretende conhecer.

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Uma delimitação preliminar necessária: texto e suporte

O sincretismo que ocorre no encontro de uma produção textual e um suporte parece- me ser o primeiro desafio a ser abordado na análise de uma semiótica verbal. De um lado, tem-se um texto que, tendo sido feito, especialmente ou não, para ser veiculado por um determinado suporte, tem, em si, uma significação autônoma. De outro, tem-se um suporte, que, produzido por uma prática histórica e corporal de leitura, ao acolher a produção textual, ao conferir-lhe uma espessura física, objetal, impõe-lhe coerções que não são, de forma alguma, desprezíveis.66

Esse sincretismo é determinante para a natureza dos textos e dos suportes. No caso dos manuais de semiótica, o sincretismo dá-se entre o objeto livro e o texto didático-científico. O livro como suporte pode ser decomposto segundo uma topografia muito elementar que,

grosso modo, compreende: (a) a capa, (b) a contracapa, (c) as orelhas e, é claro, (d) o miolo

da obra propriamente dito, no qual não faltarão (i) uma página de identificação, (ii) um

sumário ou índice e (iii) uma apresentação (introdução, prefácio, preâmbulo) do próprio autor

ou de um terceiro sobre o conteúdo que virá a seguir.

A natureza formal do suporte livro, que pode ser definida segundo inúmeros critérios, comporta a presença de dois traços semânticos essenciais: (1) um número de folhas que constitua uma espessura, o que determinará se o livro é um panfleto, um livreto, uma “bíblia”, um “calhamaço”, etc.; (2) a reunião dessa espessura em uma estrutura compacta, por uma costura, cola ou grampo, que lhe fixe a ordem. Caso o objeto que preencha os dois requisitos anteriores não tenha uma capa, diremos “um livro ao qual falta uma capa”, mas ainda seremos capazes de reconhecer nele a propriedade “livro”. Outros elementos desempenham um papel relevante na constituição do livro como objeto: o seu tamanho, a tipografia, a diagramação. No entanto, esses fatores seriam secundários, na medida em que sua variação não possibilita uma deformação importante na concepção do que é um livro: há livros em miniatura, livros escritos à mão, livros de figuras, livros contábeis (!), etc.

Na geografia do livro como objeto há áreas que são destinadas a receber a inscrição de determinados gêneros discursivos, por isso, empreguei acima o termo topografia para

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Fabienne Plegat Soutjis, em seu original artigo “Sémiologie de l’objet, le livre”, publicado em Fontanille e Barrier (1999, p. 115-122), estabelece como valores de busca das editoras a /inovação/ e a /estabilidade/. Em suas hipóteses sobre a construção da identidade do editor (sempre oscilante entre os dois valores citados) ela instaura o papel do “leitor visado” e do “leitor real”, espelhos nos quais o editor busca ler o sentido de sua identidade. Minha abordagem sobre a relação texto/suporte não caminha na mesma direção, mas é totalmente compatível com a leitura de Soutjis.

delimitá-las. O título de uma obra jamais irá aparecer somente em sua orelha ou contracapa, embora tenhamos esse sentimento quando abrimos um livro escrito em chinês ou japonês, língua na qual a ordem de leitura dos caracteres contraria o esquema esquerda-direita das línguas indo-européias. O mesmo se dá com o nome do autor ou responsável pela obra, que jamais pode ser omitido, salvo em casos muito especiais, nos quais a identificação da editora fará as vezes de marca de autoria.

A capa de um livro deve responder a duas questões essenciais sobre sua natureza: o que é? de quem é? De acordo com a produção textual que o livro veiculará, essas questões serão respondidas segundo a convenção dos gêneros discursivos implicados. Em um tratado científico, o título terá um caráter sintético-explicativo denotativo. Já em uma obra literária, o título proporá infalivelmente um jogo metafórico que, desvendado, oferecerá uma chave para a sua compreensão. Na capa de um livro espírita, não raro, encontram-se os nomes do “autor inspirado” e do “autor inspirador”, quando não apenas o deste último...

Os exemplos de variações de gêneros textuais em relação a um mesmo suporte são muitos e o tema, rico e instigante, convida a uma leitura mais detalhada da matéria. No entanto, meu interesse nessa introdução à relação texto-suporte é somente sensibilizar o leitor a respeito de uma questão que interessa à compreensão dos manuais de semiótica como objetos culturais.

Se a capa dos livros obedece a uma sintaxe sincrética, ditada tanto pelo texto quanto pelo suporte, o mesmo se dá com as suas outras áreas de inscrição. As orelhas e contracapa de uma obra jamais reterão informações desabonantes sobre o autor do livro (ver Anexo VII, figuras 3 a 11). Os discursos que ali são inscritos (entre o biográfico circunstancial, o necrológio honroso, a crítica sempre elogiosa, mesmo quando polêmica, e o trecho instigante ou memorável) são mais ou menos invariáveis, tendo em comum o caráter persuasivo que pode visitar todas as modalidades de manipulação semiótica.

O miolo de um livro, ainda que possa sofrer as coerções do suporte – como a presença freqüente de uma página de identificação e de algum tipo de índice –, é o espaço de liberdade por excelência da produção textual. É no miolo-conteúdo da obra que os livros como objetos culturais provam sua eficácia ou ineficácia. Eis o momento em que as coerções do suporte já não são tão relevantes e que o texto como semiótica verbal toma as rédeas do mutualismo firmado entre texto e suporte.

Ao longos das análises seguintes, por vezes colocarei entre parênteses o espaço privilegiado que é o miolo do manual de Semiótica, para, ao término de sua análise, passar à investigação das demais áreas de inscrição (capa, contracapa, orelhas), povoadas pelo

discurso editorial que as articula tanto do ponto de vista textual quanto do ponto de vista do suporte.