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D ELIMITANDO A VIOLÊNCIA QUE AMEDRONTA : VIOLÊNCIA URBANA E SEUS ELEMENTOS

VALORATIVAS E DE CLASSE NA MODERNIDADE PERIFÉRICA

3.1. D ELIMITANDO A VIOLÊNCIA QUE AMEDRONTA : VIOLÊNCIA URBANA E SEUS ELEMENTOS

Partimos do princípio de que a violência em geral é antes um fenômeno empírico do que um conceito científico. Desta perspectiva, a apropriação conceitual desse fenômeno pelo senso comum, pelos governos, pelas instituições, pela imprensa, etc., faz com que ele adquira uma gama bastante ampla de significados e usos, tornando menos precisa sua reapropriação conceitual pelas disciplinas que o tentam delimitar (PORTO, 2002).

Ainda assim, uma definição abrangente de violência definiria que

(...) há violência quando, numa situação de interação em que um ou vários atores agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou mais pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses, ou em suas participações simbólicas e culturais. (MICHAUD apud. PORTO, 2002)

Uma das coisas que a definição supracitada do termo violência deixa a mostra é que, a rigor, deveríamos falar de violências, e não violência, pois são diversas as situações de interação na qual a violência, seja de qual tipo for, está presente. E se é verdade que existe uma tênue linha a separar, por exemplo, a violência simbólica da violência física – que de tão tênue permite que uma possa derivar da outra – não há como negar que existam diferenças

entre elas, tanto de efeitos como de causas. Mas não nos ocuparemos dessa distinção específica.

O que nos interessa aqui, mesmo assumindo a diversidade de manifestação prática da violência, é que se pode destacar alguns elementos daquela definição para caracterizar a violência urbana. Começando pela idéia de interação, já que a violência, como qualquer fenômeno social, só tem sentido prático quando inserido num processo intersubjetivo, que neste caso específico é de assimetria, onde um impõe sua vontade ao outro ou outros. Além do caráter intersubjetivo, temos outro elemento importante na definição da violência urbana que é a idéia de poder e imposição da vontade que caracteriza os diversos tipos de crimes constitutivos da violência urbana, imposição essa que causa danos materiais ou simbólicos e repercussão social, isto é, produz efeitos práticos, que podem não ser apenas nas vítimas diretas, mas na sociedade inteira.

A definição do crime também envolve boa dose de controvérsias, tanto quanto o é definir a violência. A mais comum, isto é, a definição legal do crime, bastante influente desde o século XIX, entende basicamente como criminosa a ação ou omissão que tem como efeito a violação das regras contidas no código penal. Logo, é uma definição do crime que o associa diretamente àqueles atos que a legislação define criminosos. Como o código penal costumava ocupar-se principalmente dos crimes cuja característica principal era a imposição da violência, criou-se certo consenso no imaginário social de que crime era a mesma coisa que violência, sobretudo física (roubo, agressão, homicídios, etc.). Assim, os estudos sobre criminalidade passaram a focar esses tipos restritos de crimes como a idéia-base da criminalidade em geral (HENRY & LANIER, 2004). Um questionamento importante dessa forma de se estudar os crimes foi exposta por Edwin Sutherland e sua idéia de white-collar criminality, expressão cunhada para denominar os ―crimes do colarinho branco‖16, praticados principalmente por pessoas das classes média e alta e nem sempre previstos ou visualizados enquanto crimes nos estudos criminológicos e, principalmente, no imaginário social (HENRY & LANIER, 2004, p. 20).

16

Por exemplo, os atos de sonegação, corrupção, assédio moral, dentre outros. Uma pequena introdução do tema encontra-se em SUTHERLAND, 2004. Em contraposição aos crimes considerados das classes populares, os crimes do colarinho branco não envolvem, geralmente, violência física, trazendo como conseqüência o fato de que o consenso quanto à sua caracterização como crime seja muito baixo (embora os danos sociais a que geralmente acarreta os ―crimes contra o tesouro público‖ ou os ―crimes contra a ordem tributária‖ sejam também bastante danosos para a sociedade).

Outras abordagens, mais recentes, enfatizam muito mais o caráter relativista da definição criminal, defendendo que a noção do que caracteriza o ato infracional chamado crime pode variar não apenas de um lugar a outro (ou de uma cultura a outra), como, em um mesmo lugar ou cultura, de uma época a outra. A definição legal do crime ignoraria o contexto cultural e histórico não apenas do crime, mas da própria legislação. Ora, essa variação histórico-cultural que caracterizaria de forma inexorável a definição do crime só poderia significar que o crime não é produzido simplesmente pelos códigos penais ou pelos órgãos oficiais encarregados de executá-lo (polícias, tribunais, etc.). Ele resultaria de um processo social mais amplo de interação e troca entre códigos simbólicos formadores de uma determinada idéia socialmente vigente do que é o crime, que por fim é aplicada ao todo social através da institucionalização do direito ou da legislação penal. É esse tipo de abordagem que permitirá entender como o crime e o criminoso são socialmente construídos, dentro de uma perspectiva de análise que prima pela inter-relação simbólica que se opera entre os atores sociais na (pré)definição de determinadas condutas ou estilos de vida aceitas como ―normais‖17

.

Esse último tipo de abordagem não apenas ―desconfia‖ das definições institucionais do crime (da polícia, das penitenciárias, dos tribunais, dos códigos penais), mas desloca o foco em direção à análise dos processos sociais que imputam a certos atos, e não a outros sociologicamente análogos, o rótulo de criminoso ou desviante. Só deste ponto de vista pode- se perceber sociologicamente a influência de fatores extralegais, como o poder, na definição social das regras e dos significados de sua transgressão ou desvio:

Diferenças na capacidade de fazer regras e aplicá-las a outras pessoas são essencialmente diferenças de poder (seja legal ou extralegal). Aqueles grupos cuja posição social lhes da armas e poder são mais capazes de impor suas regras. Distinções de idade, sexo, etnicidade e classe estão todas relacionadas a diferenças em poder, o que explica diferenças no grau em que grupos assim distinguidos podem fazer regras para outros. (BECKER, 2009, p. 30).

Essa perspectiva mais relativista, associada à perspectiva observada por Sutherland e sua ênfase empírica nos white-collar crimes certamente nos abre a perspectiva de entender o fenômeno do crime como algo bem mais abrangente e complexo do que normalmente supõe o senso comum. Não obstante essa perspectiva teórico-acadêmica, a sensação de medo e insegurança do cotidiano é restrita em sua definição de criminalidade: são tipos determinados de manifestação do crime – de ―desvio‖ portanto – que são o alvo do medo e da indignação.

17

Nesse particular, temos em mente a contribuição de Howard Becker (2009), com sua concepção intersubjetivista da conduta desviante e as implicações sociais desta na conformação do marginal (outsider) e do criminoso, como visto no primeiro capítulo deste trabalho.

Assim, quando se faz referência à violência urbana normalmente têm-se em mente os crimes que envolvem violência – notadamente a imposição da força física – e resultem em danos (quer sejam físicos, quer sejam materiais, quer sejam simbólicos) na vítima por parte do agressor. Assim é que o roubo, o assalto, o estupro, o homicídio, o latrocínio, dentre outros, expressam tanto empiricamente como no imaginário social a combinação de crime e violência, isto é, a criminalidade violenta, responsável por atormentar o sono de uma população sensivelmente incomodada e assustada com o que parece ser uma escalada desse tipo de criminalidade nas cidades. Esse medo seletivo da violência exclui da concepção de crime as demais expressões do crime e da violência – certamente menos traumáticas, porém igualmente danosas do ponto de vista social – que, não obstante, permeiam o cotidiano de muitas metrópoles modernas, incluindo aí a brasileira e a recifense, como a corrupção, a sonegação de impostos, a violência doméstica, a discriminação étnica e racial, dentre outras. São as ocorrências cotidianas da ―violência das ruas‖ que assusta e acossa o ―cidadão de bem‖:

Em conjunto, são elas as ocorrências responsáveis pelo clima generalizado de medo e de insegurança que envolve o cidadão dos grandes centros urbanos e as que estão normalmente associadas à marginalidade, tanto na concepção de vastas camadas da população urbana quanto nas análises que, direta ou indiretamente, informam o conteúdo de políticas de segurança pública. (COELHO, 2005, p. 256).

Essa definição seletiva da violência e da criminalidade em geral, que privilegia determinados aspectos do comportamento desviante em detrimento de outros, é que vai marcar tanto a definição de violência como o sentimento de medo no dia-a-dia das pessoas. A violência que assusta, da qual decorre o sentimento de medo de insegurança, é freqüentemente associada às condições sociais adversas da pobreza e da marginalidade, sendo que tal associação, ao deixar de fora demais tipos de criminalidade, acaba por conformar posteriormente o rótulo de ―classe perigosa‖ à ―ralé‖.