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Estamos aqui diante da assunção dos riscos catastróf cos, veiculados pelos excessos da

tecnociência - como diz Beck (2008, pp. 119): ‘a sociedade moderna adoece não de suas derrotas,

mas de suas vitórias’. Ou seja, dependem de decisões humanas que incentivam ao aperfeiçoamento

tecnocientíf co, próprios à sociedade moderna. Vitórias que se distribuem de forma profundamente desigual e injusta entre as populações deste planeta.

Ao mesmo tempo, enfatiza-se a necessidade de hiperprevenção (prevenção + precaução + proteção) em função da ameaça das situações de desastres, infortúnios e falta de segurança (que inclui a dimensão representada pelo aspecto indicada pela expressão inglesa safety), mesmo com probabilidades baixas de ocorrência. Na retórica argumentativa, utilizam-se metáforas imunitárias (‘antídotos’) para o tratamento hiperpreventivo das ameaças.

Além disto, importa ainda acrescentar que o vocábulo dicionarizado ‘prevenção’ apresenta duas interessantes perspectivas semânticas em suas acepções: uma delas própria da conhecida lógica preventiva, de caráter digamos ‘objetivo’ na qual aparece: ‘ação ou resultado de prevenir-se’ e ‘conjunto de medidas ou preparação antecipada de (algo) que visa prevenir (um mal)’. Por outro lado, há formas ‘subjetivas’ de base não racional vinculada à noção de ameaça: “opinião desfavorável antecipada; ideia

preconcebida (e) sentimento de repulsa para com alguém ou algo, sem base racional; preconceito” (HOUAISS, 2001, p. 2296). Pode-se utilizar o termo hiperpervenção indicando um estado no qual ambas acepções se hipertrof am e se confundem, tanto no encaminhamento dito racional como sob a via não-racional.

Assim, seguindo a Castel, nosso foco se dirige à ‘ideologia da prevenção generalizada’ cuja meta é inalcançável e produz uma profunda aversão aos muitos riscos e perigos que nos rondam sem perspectivas de êxito. Algo que estimula altos teores de ansiedade que marcam a nossa época de modo inapelável. (CASTEL, 2005)

Vamos cogitar, então, uma montagem hiperpreventiva em função das colocações em cena

que se manifestam na noção de montagem. Aqui, se justapõe metaforicamente neste termo o sentido

mecânico de construir um sistema de componentes agregados com uma f nalidade particular e também a manifestação artística que inclui a encenação teatral e o processo no qual se seleciona e se une em sequência as cenas de uma f lmagem para que se torne um f lme.

Estes aspectos visam buscar entendimento para a ampla gama de ações que organizam e difundem práticas com vistas à prevenção, precaução e proteção organizadas sob a forma de instâncias de governo e seus diversos agentes na gestão da conduta de indivíduos e grupos em suas vidas cotidianas.

Procurando se estabelecer nexos entre a grande amplitude de intervenções e a montagem que as orienta, pode-se captar a importância das estratégias de hiperprevenção veiculadas mediante expertises, tecnologias, vocabulários/retóricas, elementos de caráter moral (e também identitário), incluindo representações e desdobramentos imaginários na atual conf guração sociocultural da condução da conduta humana. Estes aspectos da montagem hiperpreventiva redef nem limites e focos para as perspectivas vigentes e geram novas formas de se atuar naquilo que é trazido à cena, especialmente no campo da saúde.

Vaz et al (2006) abordaram a reação crítica da mídia a uma grande pesquisa epidemiológica de

2006 que não evidenciava a relação de controle da menor ingesta de gorduras na dieta para a prevenção de doenças vinculadas à ingesta de gorduras. Um dos aspectos assinalados como explicação para a situação é a ênfase narrativa das notícias em sustentar uma suposta capacidade humana em termos de proteger-se de sofrimentos e prolongar a vida. Isto ocorreria mediante uma perspectiva de crédito e dívida. Em outras palavras, de recompensa e punição. Um bom comportamento pode ter o signif cado de dar direito ao prêmio de evitar sofrimentos futuros e viver-se mais tempo. Um mau comportamento conduz à punição de sofrimento e encurtamento de vida.

Aqueles que não aderem à ascese que conduz ao ideal de vida prolongada e saudável podem ser responsabilizados e, portanto, estarem à mercê de sentimentos de culpa por serem causadores de seus males ao se exporem sem os devidos cuidados, aos riscos à saúde – em suma: crime e castigo.

Os sacrifícios em nome da prevenção estão de acordo com o ponto de vista da redenção moral religiosa do pecado que é a causa de pragas, epidemias e calamidades. Sacrifícios constituem-se em esforços reiterados com vistas à reparação, visando à retirada de algo terrivelmente perturbador que demanda salvação. Mas, ele mesmo é perturbador, pois evoca este ‘algo’ inexoravelmente, fazendo-o retornar, seja de forma ritualizada, alegórica, simbólica. Traz o ‘espírito’ do mal que se deseja proteger à cena (TURCKE, 2010).

A biomedicina atual implicitamente reproduz esta representação pecaminosa na relação da humanidade com suas ações que não estão de forma alguma acima do bem e do mal. Descrever e considerar riscos como supostas causas das doenças adquire a dimensão de um plano hiperpreventivo de gestão ‘factível’ com vistas, ao controle e, sobretudo, ao adiamento do encontro fatídico com a velha ceifadora.

Apresentação Loucuras da Razão: Subjetividade e Corpo-Risco em atividades consideradas como sendo ‘de risco’ pode proporcionar prazeres fascinantes de certas sensações onde correr riscos pode assumir formas potencialmente arriscadas de transcender às rotinas da vida cotidiana. Isto pode ocorrer em situações como o carnaval (daí a preocupação das autoridades sanitárias com o uso de camisinhas) e nos esportes radicais (LUPTON, 1999).

Turcke (2010) critica as categorias empregadas por uma linha de pesquisas sobre a busca de sensações (sensation seeking) que se perde na especif cação de fatores como ‘sexo’, ‘força do ego’,

‘iniciativa social’, ‘conformismo’, ‘radicalismo’ (p. 67) como categorias de análise que são mensuradas

através de escalas e exames neurológicos em relação a aspectos como a procura de: a) emoções e

aventuras arriscadas (montanhismo, vôos de parapente, quedas de base jump); b) novas experiências

(proporcionadas por viagens, espetáculos artísticos e esportivos, incursões gastronômicas, novas interações pessoais); c) desinibição (capacidade de se manifestar sem pudores em situações sociais, como festas); d) e sensibilidade ao tédio (necessidade de evitar contextos potencialmente entediantes). Apesar de justif cadamente criticável a fragilidade teórica do campo, ele serve para apresentar certos emblemas sintomáticos de um ‘espírito da subjetividade’ reinante na qual se percebe o papel de relêvo que a dimensão das sensações e do hedonismo desempenha (e, em alguns destes casos, o risco).

Então, como a subjetividade contemporânea aversiva do corpo-risco poderia ser delineada? Sem dúvidas, seria um poderoso instrumento analítico para esta tarefa a noção de biopoder foucaultiana, atualizada por Rabinow e Rose (2006). Para eles o biopoder diz respeito a um plano constituído por, pelo menos, três elementos. Em termos bem sucintos: a) um ou mais discursos de verdade sobre o caráter vital dos seres humanos, assim como um corpo de autoridades e instituições com legitimidade para proclamar tais verdades; b) estratégias de intervenção sobre a população em função da vida e da morte; c) modos de subjetivação que conduzem os indivíduos a atuarem sobre si-mesmos, conforme as autoridades e seus discursos de verdade, em função da saúde e da vida.

No caso específ co do risco, temos: a) ampla produção de pesquisas biomédicas e epidemiológicas sobre os riscos ameaçadores e instâncias acadêmicas e não-acadêmicas que se autorizam a divulgar e reiterar a correspondente legitimidade de tais discursos; b) instâncias públicas e privadas que se propõem a intervir sobre vários riscos com vistas à prevenção de sua ocorrência ou minimização dos respectivos danos; c) o foco de nossa abordagem: a criação de modos de subjetivação baseados no risco que conf guram condutas dos indivíduos na autogestão de sua saúde e de suas vidas. A subjetivação daí decorrente corresponde ao surgimento de novas noções sobre como os seres humanos se pensam quanto ao que são, como agem e quais são suas expectativas. Está ligada a uma “ética somática” na qual os valores para a condução da vida estabelecem o corpo como elemento principal (ROSE, 2007).

No interior desta perspectiva ‘biopoderosa’, temos as denominadas percepções leigas do risco que estão baseadas em fontes de conhecimento consideradas como sendo tão relevantes quanto avaliações racionais científ cas de especialistas e acadêmicos, sob a inf uência da mídia não especializada e de outros campos de saber. Tais avaliações não são baseadas em evidências empíricas, mas de feição sociocultural, muitas vezes baseadas em narrativas permeadas por crenças, suposições, ideologias.

Há lugar para hibridizações, até porque não somos seres eminentemente racionais e não convivemos satisfatoriamente com a proliferação dos aspectos de incerteza e ansiedade que costumam acompanhar a perspectiva riscológica racional. Tais misturas ocorrem para além dos esforços dicotômicos de ordenamento e classif cação dos cálculos probabilísticos dos riscos (LUPTON, 1999).

Esta mescla combina simultaneamente dois modos de pensamento que combinam razão e desrazão, conceitos e preconceitos, noções objetivadas e impressões subjetivas. Nos processos globalizantes da atualidade, criam-se formas contingentes de identidade e de corpo onde se confundem separações e categorias estabelecidas (LUPTON, 1999).

Um exemplo disto se localiza no estudo de um forum de discussões de mulheres na Grã-bretanha que precisavam avaliar suas correspondentes reações a resultados de exames de screening pré-natal de

modo como a ciência calcula e regula a ‘natureza’, os enunciados comunicativos de recepção do risco podem ser considerados como intentos de controlar medos, inseguranças e fragilidades geradas através dos discursos científ cos (JONES, 2008).

Em síntese, há indícios signif cativos de que estamos lidando com um estado de coisas que parece indicar enfraquecimento das propostas da razão iluminista que geram visíveis distorções e instabilidades. Este quadro, por exemplo, se vincula ao espírito da nossa época, que estabelece um modo particular de compreender(-se), julgar, avaliar e intervir sobre uma ampla diversidade de questões humanas e sociais. Isto ocorre sob a forma de múltiplas e variadas práticas de segurança e de prevenção que se cristalizam sob a égide tanto do risco-aventura/af rmação, do risco-dano/agravo, do risco vulnerabilidade/fragilidade que colaboram para nos tornar habitantes singulares de distintas apresentações destes corpos-risco.

No caso da gestão hiperpreventiva dos riscos mediante cálculos racionais, temos de levar em conta que nossos corpos-risco são conf gurados por determinados processos de produção de subjetividade. Se encaramos riscos como elementos passíveis somente de descrição e explicação objetivas pela cultura tecnocientíf ca, estes irão manter os pressupostos metafísicos que nos mantém cativos no interior de contextos que reduzem nossa subjetividade à gestão racional como a possibilidade apropriada de lidar com as ameaças reais e imaginárias que não cessam de nos acossar. E, mais ainda, não conseguem nos proteger da ansiedade acompanha a sensação de incerteza que nos assedia simultaneamente.

Uma forma de lidar com isto seria encarar a possibilidade de se admitir que tal concepção de gestão de riscos possui limites. E, também, nos coloca à mercê de um regime de submissão a uma ideia insustentável de controle e regulação. Ao mesmo tempo em que institui a nossa pertença a processos que estabelecem e def nem nossos modos de subjetivação nos quais o medo se instala como uma presença insistente.

Ou seja, a possibilidade racional de gestão de riscos nos perf la no lugar daqueles que se reconhecem, sobretudo, a partir de operações técnicas e cálculos probabilísticos ao eleger suas opções supostamente autônomas de controle e regulação, caras ao ideário individualista neoliberal. O papel de gestor de riscos oferece escolhas e correspondentes desdobramentos que estão previamente def nidos, quase como se protocolos fossem.

Segundo Pedro e Chevitarese (2005), a possibilidade de resistência ocorreria mediante a af rmação de outros modos de subjetivação, mas que não impliquem apenas na recusa ao controle. E, sim, através da garantia da faculdade de escolha de outras formas de vida que ampliem as previsíveis possibilidades propiciadas pelas propostas globais de gestão racional.

Não deve pairar dúvidas que não se trata aqui de uma ingênua apologia de exclusão sumária de situações onde inegavelmente a racionalidade técnica apresenta resultados satisfatórios. Mas, é essencial procurar outros arranjos que viabilizem novos formatos para se pensar e lidar com riscos para além da ambiguidade e da opressão produzida pelos modelos vigentes.

REFERÊNCIAS

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5. “VOCÊ CONHECE BEM O SEU CÉREBRO?”:

PESSOA E DIVULGAÇÃO NEUROCIENTÍFICA

Rogerio Lopes Azize e Marcos Castro Carvalho

Já é quase redundância apontar para o processo massivo de difusão, nos meios de comunicação de massa, das mais variadas temáticas relacionadas à neurociência, tanto no que tange à mídia impressa quanto à televisiva e virtual. Não se limitando aos anteriormente denominados “transtornos mentais” (agora pensados em termos de patologias ou disfunções cerebrais), os estudos pautados no funcionamento cerebral – através da mídia e de revistas de divulgação científ ca – também popularizam resultados de inúmeras pesquisas, quase sempre realizadas através de onerosas tecnologias de visualização como a tomograf a por emissão de pósitrons (PET scan) e a ressonância magnética anatômica ou funcional (fMRI). Destaques coloridos de regiões do cérebro, assim como esquemas de conexões neurais e reações sinápticas passam a compor cotidianamente o repertório de imagens biomédicas que permeiam os programas televisivos de grande público e as manchetes de revistas e jornais.

Simultaneamente, difunde-se no senso comum uma familiaridade considerável não só com as f guras e formas resultantes dessas tecnologias como com os novos jargões neurocientíf cos, articulando-se em um domínio cosmológico antes dominado primordialmente pela vulgata derivada dos saberes “psi”. Sem dúvida, a propagação e abrangência de ambos os segmentos – a neurociência e os saberes “psi” – necessita ser matizada por um recorte que contemple os distintos universos de classe social. Entretanto, tal intuito extrapola nossas pretensões, já que não nos propusemos a analisar diretamente os impactos produzidos pela divulgação do conhecimento científ co.

Além das imagens, é perceptível a presença cada vez mais constante de neurocientistas inseridos em uma gama de debates televisivos opinando sobre questões que abordam desde a criminalidade urbana até os percalços dos relacionamentos amorosos. Neste sentido, a neurociência deixa o meio estritamente biomédico e científ co para penetrar no cotidiano corriqueiro da vida em sociedade, numa espécie de radicalização da popularidade que ela já vinha adquirindo desde os anos 1970, quando passou a compor a linha de frente das chamadas “ciências cognitivas”. Desde meados da década de 1980, com o advento das tecnologias médicas de visualização, e fundamentalmente a partir da década de 1990 (que chegou a ser declarada como “a década do cérebro”), as próprias fronteiras entre o universo laboratorial e aquele da divulgação científ ca, apesar de não deixarem de se fazer presentes, encontram-se cada vez mais instáveis e f utuantes.

O projeto que a neurociência reivindica para si da compreensão de algo próximo a uma essência do humano – incluindo sua consciência, seu comportamento, sua memória, seus sentimentos, seus valores – a partir de um “desvelamento” da estrutura e do funcionamento cerebral não é algo completamente inédito na história do Ocidente. A tentativa de localizar áreas pontuais do cérebro responsáveis por comportamentos, emoções e traços identitários pode ser remontada a estudos empíricos efetuados em f ns do século XVIII e no decorrer do século XIX. Obviamente, não se pode negar a existência de diferenças marcantes no que diz respeito aos contextos díspares em que os “velhos” e os “novos” saberes foram produzidos (a realidade sócio-cultural oitocentista e a atual). Todavia, é possível relativizar o peso de “inovação” que tem sido dado aos estudos contemporâneos em neurociência. Ciências como a organologia, a frenologia (que foi uma derivação da primeira), a f siognomia e a craniometria, durante todo o século XIX, buscaram evidenciar aspectos morais da experiência e dos grupos humanos através do estabelecimento de medidas corporais e do crânio e de divisões funcionais do córtex. Assim, poderíamos pensar o paradigma neurocientíf co contemporâneo enquanto neo-localizacionista (STEPAN, 1994; VENTURI, 2007).

cérebro de outrora. Diferentemente da maneira como existiu durante os séculos XVIII e XIX, o cérebro não é apenas sede da razão e elemento fundamental do sistema nervoso e da f gura subjacente do

organismo. É ele também lócus de existência e experiência das emoções e do comportamento humano

de um modo geral. Poderíamos sim, como querem Ortega e Vidal (2007), fazer uso de uma terminologia foucaultiana e denominar tal processo como neuroasceses. Entretanto, trata-se de algo que inclui não só dispositivos disciplinares visando à produção de um suposto enhancement relativo ao intelecto, mas também novas maneiras de gerir o cotidiano e realizar intervenções a partir do engajamento com os pressupostos f sicalistas.

No Brasil, a divulgação dos saberes da neurociência está hoje identif cada com a imagem da neurocientista Suzana Herculano-Houzel. No que diz respeito à tradução dos saberes da neurociência para termos mais palatáveis ao público leigo, a professora da UFRJ1 alcançou grande êxito, o que pode ser aferido pelo grau de exposição tanto da sua imagem pessoal quanto do conteúdo dos seus trabalhos de divulgação de neurociência. Se o cérebro vem se tornando cada vez mais um órgão midiático, o paralelo a isso entre os neurocientistas seria a professora Suzana.

Ela é o cérebro por trás de um sítio na internet, criado no ano 2000; seis livros lançados entre 2002 e 2009 por diferentes editoras (Vieira e Lent, Objetiva, Jorge Zahar e Sextante); uma coluna quinzenal no jornal Folha de São Paulo (caderno Folha Equilíbrio, desde 2006); um blog; e um quadro

no programa dominical Fantástico, da Rede Globo de Televisão, chamado Neurológica, que estreou no

dia 9 de novembro de 2008. Todos estes trabalhos têm como objetivo levar os saberes da neurociência a um público amplo, construindo sempre uma conexão entre saberes sobre o cérebro e a vida cotidiana. A neurocientista tem participado em outros programas de TV e menções ao seu nome não são incomuns na mídia impressa, em jornais e revistas.2 Ela também vem sendo contratada para proferir palestras por empresas como Petrobrás, Bradesco, AstraZeneca e O Boticário sobre temas como criatividade, motivação e estresse.

Em síntese, a proposta da professora Suzana de falar a um público leigo sobre “as aplicações da neurociência à vida cotidiana” – como ela af rma em seu sítio na internet – tem grande sucesso e