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Em busca de reconhecimento pelas diferenças linguísticas e culturais: “Nada

6 MOVIMENTOS SURDOS: LUTAS POR RECONHECIMENTO NAS ÚLTIMAS

6.2 Em busca de reconhecimento pelas diferenças linguísticas e culturais: “Nada

Em 2004, a frase “Nada sobre nós sem nós” foi tema da comemoração do Dia Internacional das Pessoas com Deficiência. Ela tem sido utilizada por muitos movimentos de pessoas com deficiência com a finalidade de expressar a necessidade de democratização das instâncias governamentais ao tomarem decisões sobre a educação da diversidade, ressaltando a necessidade de se ter um Estado mais democrático que considere as peculiaridades sociais e culturais dos diferentes grupos.

Com este propósito, a comunidade surda, cada vez mais, luta para que seus direitos políticos e sociais sejam preservados e, por este motivo, requer maior participação nas tomadas de decisões junto ao Governo. Dentre muitos movimentos, intensificam, principalmente, a busca por uma educação escolar diferente das ofertas impostas nos tempos atuais.

A educação escolar ofertada às pessoas surdas, na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental, aparentemente, segue as normas vigentes, mas, suas implementações ainda acontecem de forma fragilizada e descontextualizada das reais necessidades do povo surdo e, com isto, estes

a atualização destes dados. Porém, sabe-se que permanentemente há novas fundações de associações em diferentes locais. Assim sendo, acredita-se que estes dados já foram alterados. Os locais de encontros entre surdos são muito significativos, pois além das organizações políticas e culturais, tornam-se espaços de permanentes organizações de promoção do lazer, esporte e cultura. Há diversas organizações de festas, encontros esportivos, movimentos de divulgação e promoção da língua de sinais.

147 A Confideração Brasileira de Desportos de Surdos – CBDS é uma entidade que promove a

integração entre surdos por meio da promoção dos esportes. Geralmente há permanentes encontros entre as diversas comunidades surdas para realização de campeonatos esportivos . Foi fundada em 1984, após uma trajetória marcada pelas constantes práticas esportivas entre as diversas associações de surdos (desde 1950).

são submetidos a um tipo de educação escolar que segue as mesmas diretrizes ofertadas às pessoas ouvintes.

Conforme dito anteriormente, referindo-se à Constituição Federal (1988), o direito do cidadão é reconhecido pelo direito de igualdade de oportunidade que, por sua vez, efetiva-se por meio do reconhecimento da diferença, ou seja, busca-se “o direito igual de ser reconhecido como desigual” (MARSHALL, 1967, p.101).

Para Marshall (1967) a educação que o indivíduo adquiriu por toda a vida pode levá-lo a, receber o rótulo de legitimidade, situação que favorece nas conquistas dos demais direitos sociais ou, pode originar em desigualdades sociais que serão provenientes do não status adquirido pela educação. Para ele, é pela educação que alcançamos uma cidadania democrática.

Considerando o ponto de vista apresentado por Marshall (1967), em relação aos princípios de igualdades de oportunidades, é possível questionar se há igualdade de oportunidade quando as instâncias governamentais seguem as normas vigentes dando acesso à educação, mas, em contra partida, a educação escolar acontece, geralmente, de forma desconectada com as reais necessidades educacionais dos surdos, causando-lhes grandes prejuízos em todo processo educacional.

Este fator, conforme apontado pelo autor supracitado pode gerar outras desigualdades sociais e, consecutivamente, gera permanentes divergências entre as partes envolvidas, conforme expresso por Cury:

É por essas razões que a importância da lei não é identificada e reconhecida como um instrumento linear ou mecânico de realização de direitos sociais. Ela acompanha o desenvolvimento contextualizado das relações sociais em todos os países. A sua importância nasce do caráter contraditório que a acompanha: nela sempre reside uma dimensão de luta. Luta por inscrições mais democráticas, luta por efetivações mais realistas, luta contra situações mutiladoras dos seres humanos, luta por sonhos de justiça (CURY, 2005, p.03).

Nos dois últimos anos (2011/2013) as pessoas surdas intensificaram suas manifestações, tanto no nível nacional como municipal (Belo Horizonte) com o intuito de expressar o descontentamento com a posição, principalmente do MEC, frente às políticas de educação inclusiva para as pessoas surdas, nos anos iniciais do ensino fundamental.

Para a comunidade surda, receber uma educação que desvaloriza principalmente a língua e a cultura é não reconhecer as diferenças. Conforme dito por Neivaldo Zovico, diretor da Feneis de São Paulo, “não somos contra a Educação Inclusiva, mas essa é uma questão linguística” (REVISTA DA FENEIS, 2008).

As questões levantadas por eles (os surdos) vão além da escolha entre receber uma educação escolar nas escolas de surdos ou nas escolas de ouvintes. Reivindica-se o espaço da língua, da cultura e um lugar onde possam exercer a cidadania democrática.

A partir da constatação de que as identidades estão sendo construídas pela lógica da uniformização, é possível entender como as ideias etnocêntricas, travestidas de valorização da diferença, têm predominado nos campos político, educativo, cultural. Essa lógica está presente mesmo quando se usam palavras como democracia, comunidade, coerção, diálogo, diversidade, tolerância, pluralidade, inclusão, reconhecimento e respeito, esvaziando-as de significado148 (DORZIAT, 2011, p. 11).

A busca pelo reconhecimento linguístico e cultural é resultado de uma luta histórica149 decorrente dos anos de exclusão onde as pessoas surdas foram tratadas como deficientes e incapazes e, assim sendo, recebiam uma educação nos moldes clínicos dando prevalência na reabilitação dos sujeitos para que estes fossem “aceitos pela sociedade”.

Mediante tais peculiaridades, a comunidade surda intensifica, cada vez mais, a busca pelo reconhecimento da diferença e, para tal, organizam diversos movimentos em prol do reconhecimento.

Diante do exposto, compreende-se o motivo pelo qual a comunidade surda enaltece a frase: “nada sobre nós, sem nós”.

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A autora refere-se às imposições feitas pelo Governo referente às pessoas surdas receberem a educação escolar em escolas inclusivas. Segundo ela, apesar de contemplar o discurso das diferenças, estas iniciativas visam “administrar as diferenças, identificando-as e tratando de integrar a todos em um mundo inofensivamente plural, burocrático e economicamente globalizado” (DORZIAT, 2011, p. 11).

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Figura 26 - Manifestação em defesa da educação bilíngue para surdos realizada em maio de 2011, Brasília.

Em destaque a frase: “Nada sobre nós sem nós”.

Fonte: Revista da FENEIS, nº 44. Jun – jul 2011/ Foto: Fernando H. Ferreira

Mas, como entender, no âmbito das políticas públicas, o que de fato seria a busca pelo reconhecimento? Sobre a questão em evidência, vale recorrer às ideias apresentadas por de Fraser (2007).

Segundo esta autora, no âmbito das teorias de políticas contemporâneas, as ideias se dividem em duas vertentes: redistribuição e reconhecimento150. A primeira está centrada em organizações sociais mais justas de recursos e bens, enquanto a segunda visa uma sociedade mais justa que preserve o respeito à diferença.

Para os diferentes estudiosos das políticas públicas, estes dois campos caminham em lados contrários, provocando divergências considerando que lutas por reconhecimento e por distribuição não podem ser efetivadas ao mesmo tempo. Fica, então, “[...] difundida a separação entre a política cultural e a política social, a política da diferença e a política da igualdade (FRASER,

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Na filosofia contemporânea, Castro (2010) cita os teóricos John Rawls e Axel Honneth. O primeiro, vinculado parte do princípio de que uma organização social e política liberal deve-se centrar na noção de justiça redistributiva, ou seja, considera que a sociedade deve desenvolver mecanismos compensatórios e regulatórios legais que são capazes de diminuir as desigualdades econômicas por meio das oportunidades iguais no que tange ao emprego. Ao contrário do primeiro, o segundo teórico segue o princípio da justiça pelo reconhecimento e este acontece no plano psicológico, sendo a identidade o seu princípio primordial. Para este teórico, a identidade de cada um é construída pela aceitação/reconhecimento do outro. “Se um grupo ou um indivíduo não tem sua identidade, seu modo de ser, respeitado pelo grupo hegemônico isso automaticamente configura uma situação de injustiça (CASTRO, 2010.p.2)”.

2007.p. 102)” e, nesta polaridade, entende-se que as questões de distribuição estariam sustentadas nos aspectos morais e de política econômica e questões de reconhecimento, sustentado pela ética. Nas divergências, as lutas por reconhecimento são encaradas como “[...] um obstáculo ao alcance da justiça” e as lutas por distribuição são vistos como “materialistas” (idem).

Fraser (2007) discorda deste ponto de vista e apresenta o viés de que a junção de ambas (redistribuição e reconhecimento) promove a Justiça, sendo um complemento do outro.

[...] é possível integrar redistribuição e reconhecimento sem sucumbir à esquizofrenia. A minha estratégia implicará construir a política do reconhecimento de uma forma que ela não seja vinculada prematuramente à ética. Ao contrário, tratarei as reivindicações por reconhecimento como reivindicações por justiça dentro de uma noção ampla de justiça. O resultado inicial será trazer a política do reconhecimento de volta para o campo da Moralität151 e assim impedir que ela resvale para a ética. Mas não é nisso precisamente que eu quero chegar. Ao contrário, eu irei conceder que possa haver casos em que a avaliação ética é inevitável. Todavia, uma vez que tal avaliação é problemática, sugerirei formas de adiá-la tanto quanto possível (FRASER, 2007.p.105-106).

Isto significa que, apesar de fazer parte do campo da ética, a política do reconhecimento está mais associada ao campo da moral, sendo parte integrante do reconhecimento da Justiça e, neste campo de discussão, tende- se limitar a política de reconhecimento à visão de política de identidade (FRASER, 2007). Esta limitação pode gerar uma visão minimizada em relação às reivindicações de um determinado grupo que luta por reconhecimento, correndo o risco de serem vistos, pela cultura dominante, como uma cultura frágil, possível de ser manipulada.

O não reconhecimento consiste na depreciação de tal identidade pela cultura dominante e o consequente dano à subjetividade dos membros do grupo. [...] Entendendo o não reconhecimento como um dano à identidade, ele enfatiza a estrutura psíquica em detrimento das instituições sociais e da interação social. Assim, ele arrisca substituir a mudança social por formas intrusas de engenharia da

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Entre os filósofos há uma disputa em relação as normas da Justiça. Ora estas são vistas em uma relação direta com a moralidade e, ora com a ética. Ora o problema está correlacionado à Moralität (moralidade) kantiana e o reconhecimento com a Sittlichkeit (ética) hegeliana. Ora prevalece o que é “correto”, ora o “bem”. Para Fraser (2007), as normas da Justiça não dependem dos valores de cada um. O reconhecimento da diferença, por sua vez, está diretamente vinculado aos valores sociais e culturais, ou seja, depende das práticas culturais e identidárias.

consciência. O modelo agrava esses riscos, ao posicionar a identidade de grupo como o objeto do reconhecimento. [...] ele submete os membros individuais a uma pressão moral a fim de se conformarem à cultura do grupo (FRASER, 2007.p.106).

Neste sentido, Fraser (2007) propõe tratar o reconhecimento como uma questão de “status social” e, neste sentido, ele será determinado pela condição “dos membros do grupo como parceiros integrais na interação social” (Fraser, 2007.p.106).

O não reconhecimento significa não poder participar, igualmente, das questões sociais comuns a todos, ou seja, provocaria uma “subordinação

social”. Pela política do reconhecimento é possível superar a subordinação.

Entender o reconhecimento como uma questão de status significa examinar os padrões institucionalizados de valoração cultural em função de seus efeitos sobre a posição relativa dos atores sociais. Se e quando tais padrões constituem os atores como parceiros, capazes de participar como iguais, com os outros membros, na vida social, aí nós podemos falar de reconhecimento recíproco e igualdade de status. Quando, ao contrário, os padrões institucionalizados de valoração cultural constituem alguns atores como inferiores, excluídos, completamente “os outros” ou simplesmente invisíveis, ou seja, como menos do que parceiros integrais na interação social, então nós podemos falar de não reconhecimento e subordinação de status (FRASER, 2007.p.108).

Quando os grupos dominantes regulam as normas e padronizam os valores culturais, inviabilizam a participação social de determinados grupos provocando uma relação de subordinação.

Então, estes grupos (subordinados) buscam superar tal pressão por meio das reivindicações por reconhecimento visando demarcar o espaço de agente integral na vida social e promover a Justiça de “paridade de participação” (FRAZER, 2007).

Considerando que o modelo de reconhecimento da identidade reforça a dominação, Fraser (2007) propõe tratar o reconhecimento como uma questão de “staus social” que é determinado pelas condições sociais igualitárias e o não reconhecimento significaria não poder participar, igualmente, das questões sociais comuns a todos, ou seja, provocaria uma “subordinação social”. Pela política do reconhecimento é possível superar a subordinação.

Para finalizar as ideias da autora, o que exige reconhecimento não é a identidade152 e sim as condições dos membros como parceiros integrais na interação social. Neste sentido é favorável analisar a política de reconhecimento como política de status, pois,

[...] ao rejeitar a visão de reconhecimento como valorização da identidade de grupo, ele evita essencializar tais identidades; [...] ao focar nos efeitos das normas institucionalizadas sobre as capacidades para a interação, ele resiste à tentação de substituir a mudança social pela reengenharia da consciência; [...] ao enfatizar a igualdade de status no sentido da paridade de participação, ele valoriza a interação entre os grupos, em oposição ao separatismo e ao enclausuramento; [...] o modelo de status evita retificar a cultura – sem negar a sua importância política (FRASER, 2007.p.109).

Figura 27: Manifestação em defesa da educação bilíngue para surdos realizada em maio de 2011, Brasília.

Fonte: Revista da FENEIS, nº 44. Jun – jul 2011/ Foto: Diogo Madeira

152 É importante compreender o ponto de vista da autora (Fraser, 2007) quando se pensa: “o

que exige reconhecimento não é a identidade e sim as condições dos membros como parceiros integrais na interação social”. Considerando o capítulo 03 desta pesquisa, sabe-se que a pessoa surda constrói sua identidade por meio de uma cultura visual, portanto, “esta diferença deve ser entendida não como uma construção isolada, mas como uma construção multicultural”. Neste sentido, no meio da comunidade surda, considerar a identidade é considerar a cultura e, respectivamente, a diferença, como sugere Fraser. Conforme expresso por SÁ ( 2002), “ a cultura dos surdos é entendida como um campo de luta entre diferentes grupos sociais, em torno da significação do que sejam a surdez e os surdos no contexto social global, ou seja, conforme sugerido por Fraser, as lutas das pessoas surdas são lutas de reconhecimento que buscam a “paridade de participação” numa construção multicultural.

Diante do exposto, compartilhando com as ideias de Fraser (2007), a questão do reconhecimento cultural, quando analisada na ótica da moralidade, rompe com uma visão limitada de lutas por autorrealização e a transfere para um lugar de reconhecimento social mais justo, igualitário e com uma participação mais efetiva dos integrantes de um determinado grupo, fortalecendo o reconhecimento pela diferença, rompendo com visões estereotipadas de culturas padronizadas determinadas pelo grupo de poder.

Com a finalidade de compreender este processo apresentar-se-á alguns recortes que ilustram este caminho cheio de muitas lutas, tensões, divergências e conquistas...

6.3 Movimentos dos surdos no período de 1982 – 2002: vinte anos na luta

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