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9. Dolo elemento subjectivo do crime

9.1 Em que se concretiza?

No Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra referido supra, entendeu-se que não se basta com toda e qualquer atitude do agente, tornando-se necessário que, com ela, tenha pretendido integrar a coisa ou o equivalente no seu património ou no de terceiro. i.e., é necessário que o agente tenha tido intenção de fazer a coisa sua.

Não acolhemos o entendimento quanto à necessidade de "fazer coisa sua", porquanto o agente que dá um fim diferente à coisa, atua contra a vontade do proprietário, mesmo que não faça da coisa sua. Qualquer comportamento que se desvie do fim que lhe fora estipulado no acordo entre o agente e o proprietário da coisa, já consubstancia uma conduta dolosa, se o agente estiver em plena consciência de que atua contra a vontade do proprietário.

Na opinião de Figueiredo Dias "O dolo eventual é suficiente95, ou seja, para que o elemento subjectivo do crime de Abuso de Confiança se verifique basta, tão só, que o agente

92Pedro Correia Gonçalves, ob.cit., 2009, pág. 475

93 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal, de 23 Abril 1998, Processo 212/98

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preveja o facto como consequência possível da sua conduta e mesmo assim aja, assumindo o risco, conformando-se com a sua realização (14.º n.º3 do C.P.). Perfilhamos esta doutrina, dado que no dolo eventual, já se verifica uma consciencialização por parte do agente de que a coisa poderá, ainda que esse resultado não se verifique, desviar-se do fim pretendido. Quando o agente atua, tendo considerado essa possibilidade, está a arriscar quebrar a confiança que lhe fora depositada pelo proprietário aquando da entrega da coisa. O agente atua mesmo sabendo que as expectativas do proprietário poderão sair frustradas, e que não irá cumprir com o que fora estipulado. Não pode esquecer-se qual a importância da relação entre as duas partes, e o facto do agente ter sido incumbido de atuar num determinado sentido. O agente deve sempre ser responsabilizado por agir em desconformidade.

Consta de uma decisão do Tribunal da Relação do Porto, um entendimento apoiado no Professor Figueiredo Dias, "No abuso de confiança o agente terá de se apropriar da coisa para si, para "se apropriar". O que evidentemente sucede quando o agente dá a coisa a outra pessoa, seja gratuitamente ou contra uma qualquer vantagem: também nesse caso houve um momento, ao menos lógico, em que o agente se apropriou da coisa para si, mesmo que no fundo pretenda só abandoná-la", donde a inerente ilegitimidade de tal apropriação, sendo que o tipo subjectivo de ilícito se basta com o dolo eventual." 96

Sufragamos o entendimento referido supra, porquanto apenas se afigura fundamental que o agente tenha tido intenção de se apropriar da coisa no momento em que não procedeu à restituição da mesma, ou no momento em que devia dar-lhe o fim para o qual foi destinado, e não o fez. Neste sentido, o facto do agente abandonar a coisa, não altera as circunstâncias, porque se o fez, atuou em desconformidade com o que o proprietário pretendia, tal como acontece caso o agente tenha ficado com a coisa em sua posse. E mais, até podemos dizer que o agente ao abandonar a coisa, já agiu como proprietário. Mas o mais importante será esclarecer que o facto de, após este momento, se torna indiferente o agente ficar com a coisa em sua posse, ou desvincular-se dela. Também na visão do Professor Figueiredo Dias97, o requisito fundamental para que se verifique a infração penal é a vontade do agente em realizar o tipo de ilícito, no momento em que ele decide cometer o crime.

95 cfr. citado em Pedro Correia Gonçalves, ob.cit., 2009, pág. 475

96 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Secção Criminal, de 30 Janeiro 2008, Processo 610/07

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97 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal - Sumários e notas das Lições do Prof. Doutor Jorge de

Figueiredo Dias ao 1º ano do Curso Complementar de Ciências Jurídicas da Faculdade de Direito de 1975-1976, Universidade de Coimbra Editora, Coimbra, 1976, pág.13

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O agente que pratica o crime de abuso de confiança pode tanto praticar com interesse de tirar um proveito económico para si ou para outrém, ou pode ter outros motivos. Mas as consequências serão as mesmas, a quebra de confiança verifica-se igualmente, e desse, modo a punibilidade mantém-se98.

Verifica-se o elemento subjectivo nas situações em que o agente tem efetivamente consciência de que atua em sentido oposto que lhe fora incumbido, e que pretende, de forma consciente e liberada, obter a coisa para si, e fazer uso dela de livre e expontânea vontade.

Resulta evidente que o mais importante é verificar que o agente sabe que a coisa está em sua posse por um título que exija a restituição, apresentação desse objecto (ou de valor equivalente) ou de o aplicar a certo fim. A vontade do agente pode caracterizar-se de várias formas, todavia, fundamental, é que se verifique que o agente tem o propósito de dispor do objecto entregue, como se tratasse de proprietário.

O agente que toma a opção de se apropriar, sabendo que age contra a vontade do proprietário da coisa, deve, e não restam dúvidas, ser condenado pelo crime de abuso de confiança.

Na decisão do Tribunal da Relação do Porto referida supra, concluiu-se que se preenchia o elemento subjectivo, no caso em que o agente considerava que já se encontrava separado do seu cônjuge e, sem autorização deste, deu ordem de venda de uma carteira de acções, que se encontravam depositadas numa conta de depósito à ordem, de que eram ambos co-titulares solidários, e deposita o valor assim realizado numa outra conta bancária de que só ela, juntamente com um terceiro, era titular, desse modo apropriando-se do respectivo valor. O Tribunal entendeu que se verificava a apropriação dolosa pela arguida daqueles títulos, que confessadamente aceita não serem de sua exclusiva propriedade, mas de que voluntariamente se apropriou, para se prevenir na eventualidade do seu divórcio e consequente partilha, deles passando a dispor como coisa exclusivamente sua. Para além disto, atuou no desconhecimento e contra a vontade do cônjuge, isto é, ilegitimamente, sabendo que tais valores lhe não pertenciam, pelo menos na proporção de metade, assim traindo a confiança que em si depositara o recorrente. 99

98 Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 07 de Novembro de 2005, Processo 1631/05-1 99 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Secção Criminal, de 30 Janeiro 2008, Processo 610/07

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Entre nós, o Tribunal decidiu bem, ao considerar que se verificava dolo, dado que o agente atuou no sentido oposto ao pretendido pelo cônjuge, demonstrando vontade em apropriar-se do bem que não lhe pertencia, pensando estar em plena consciência das circunstâncias. Ora, mesmo estando em erro sobre as circunstâncias, atuou no sentido errado se estivesse efetivamente nas circunstâncias que pensava estar, o que nos leva a decidir que houve quebra da confiança, uma má fé do agente, e assim, uma necessidade de condenação do crime de abuso de confiança.

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