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A EMANAÇÃO DO INSÓLITO

No documento INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS (páginas 92-94)

O mito das águas em “A Chuva Pasmada”, de Mia Couto

A EMANAÇÃO DO INSÓLITO

A irrupção do insólito nessa narrativa apresenta-se como um elemento da natureza, visto que as águas revelam um grande mistério em torno da família. Sendo o jovem narrador vítima de comparações:

meus pais sempre me tinham chamado pasmado. Diziam que eu era lento no fazer, demorado no pensar. Eu não tinha vocação para fazer coisa alguma. Talvez não tivesse mesmo vocação para ser. Pois ali estava a chuva, essa clamada e reclamada por todos e, afinal, tão pasmadinha como eu. (COUTO: 2004, p. 7)

Observa-se uma família que, estranha a presença da chuva e, só decide tomar uma posição para combater a água, que não chega a terra, no dia seguinte com o auxilio de ferramentas, como pás, vassouras e panos, porém o que seria uma forma de fazer a chuva cair sobre a terra mostra-se um fracasso, visto que a chuva não tombou, pairando firme no ar.

É evidente que a ancestralidade presente nessa narrativa traz elementos insólitos, pois o avô sentado ao lado de uma cadeira parece conversar com aquele espírito ali fixado, a avó Ntoweni, herdeira de um legado familiar de magia e criação. O menino ao dialogar com seu avô vai descobrindo as causas do que lhes acomete, já que nos capítulos da estória a voz do avô se faz sempre presente, em geral, com explicações extraordinárias para os acontecimentos que os cercam.

A presença do avô é ainda mais forte quando este narra à lenda da família de sua esposa, uma estória permeada por valentia, já que a mulher trouxe água a uma terra inóspita como ele mesmo explica. A lenda dessa mulher remete aos mitos de criação, uma vez que Ntoweni, a avó da avó do menino (Cf. Couto: 2004, p. 39), manteve-se firme em seus propósitos, levar água a seu povoado, mesmo que tivesse que morrer para isso.

Quando ela se aproximava de sua casa, uma azagaia cruzou o espaço e se afundou nas suas costas. A cabaça subiu, desamparada, pelo ar e a água se derramou, desperdiçada. Mas quando a vasilha se quebrou no chão, os céus todos estrondearam e um rasgão se abriu na terra. (COUTO: 2004, p. 40)

Nota-se que o surgimento do rio, a partir da cabaça caída ao chão, indica a força da natureza manifestando-se. A lenda rememora os mitos primordiais, visto que a mulher não aceita permanecer ao lado de um homem que a quer comprar, ela foge e

mesmo morrendo leva ao seu povo o elemento, a matéria perfeita, que é a água. Segundo Eliade

Um sacrifício, por exemplo, não só reproduz com exatidão o sacrifício original, revelado por um deus ab origine, no princípio dos tempos, mas também é realizado naquele mesmo momento mítico primordial; em outras palavras, cada sacrifício realizado repete o sacrifício inicial e coincide com ele. Todos os sacrifícios são levados a cabo no mesmo instante mítico do princípio; por meio do paradoxo do rito, ficam suspensos o tempo e a duração profanos. (ELIADE: 1992, p. 37)

O sacrifício instituído pela ancestral do menino indica uma proximidade entre ela e os deuses, já que esta consegue realizar uma magia de criação fazendo brotar da terra a água que outrora não havia. Da morte de uma mulher nasce um rio, o qual para as personagens tem vida própria “pega no remo mas não rema que é para não ofender o rio” (COUTO: 2004, p. 48) (grifos nossos).

Ainda com base em Eliade nota-se que o ser humano pode reproduzir, sem automatismo, um exemplo mítico, sendo parte de uma realidade transcendental ao passo que repete um ato primordial. O homem é, portanto, capaz de realizar de maneira deliberada atos praticados ab origine por deuses, heróis ou ancestrais como é o caso da mãe na narrativa miacoutiana

à minha cabeça chegava, com clareza, a consumação do presságio. Então era isso: o renascer da lenda. A primeira Ntoweni sacrificara a sua vida para libertar a água e salvar os seus. Esse destino revivia agora em minha mãe. Nada sucede da primeira vez, tudo é reedição de algo já sucedido. Quando pisei a margem, meu corpo pingava como se eu tivesse atravessado um oceano. Exausto, tombei. Escutei, então, uma voz de mulher. Era minha mãe que chamava. Estava ferida, incapaz de se levantar. (COUTO: 2004, p. 60)

Apesar da força da crença e da marcada ancestralidade presente na narrativa, observa-se que a mãe, ao contrário de sua antepassada, não morrera, manteve-se viva para cuidar das feridas de seu homem, dialogando, principalmente, com seu filho sobre seus saberes adquiridos pelos anos de vida.

Eu não lhe saí do ventre. Mas da tristeza. Era por isso que aquela chuva, aquela chuva que não tombava , estava falando fundo em sua alma.

― E diz o quê, mãe?

E ali ficámos falando, como nunca havíamos conversado. O que me dizia, em confissão: nunca ela me dedicara nem mimos nem doçuras. (COUTO: 2004, p. 64)

Observa-se neste trecho uma mãe que se sente culpada por uma ausência derivada do medo de perder mais um de seus filhos, dando indícios de sua jornada pela vida, visto que, se já perdera outros filhos, teria certa idade. Essa mulher de grande força demonstra ainda uma sabedoria indicativa da boa conduta que condiz com o histórico “mítico” de sua família, indicando uma mulher que, assim como seus antepassados, é capaz de reproduzir ou buscar atos semelhantes aos primordiais realizados ab origine.

O insólito irrompe nessa narrativa por meio do grande acontecimento que dá movimento à narrativa, sendo seu mote, a chuva parada no ar e as possíveis explicações para a mesma: a fábrica que polui; o homem que não respeita o rio; e, principalmente; a esposa falecida que deseja que o esposo a encontre no rio, o avô e sua Ntoweni. Porém, as aparentes discussões e esclarecimentos a respeito da chuva pasmada demonstram-se sem respaldo, visto que ao final da narrativa foi um conjunto de elementos e não apenas uma causa isolada que fizeram iniciarem “mágicas tintilações no nosso tecto” (COUTO: 2004, p. 72). Afinal, o avô finalmente desamarrou-se da cadeira e foi para um barco encontrar seu destino, a fábrica parou de funcionar com a falta da água do rio e o homem, sendo parte daquele meio, mostrou respeito pelo fio do tempo, pela água nascente que brotou em suas mãos e voltou a “arregaçar as mangas e os braços” (COUTO: 2004, p. 69).

No documento INSÓLITO, MITOS, LENDAS, CRENÇAS (páginas 92-94)