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4 ARTE DA PERFEIÇÃO: ESTUDO DA DIVISÃO DE SUPERFÍCIES NAS OBRAS

4.1 Embasamento Histórico e Conceitual

Para se estudar a simetria nas obras de Escher é fundamental que tenhamos em mente a sua trajetória de vida, a fim de entendermos o porquê deste gosto particular em trabalhar com gravuras desta natureza. Antes de eclodir a Segunda Guerra Mundial, ele viajou para diferentes lugares do sul da Europa, e ficou encantado por dois países em particular: Itália e Espanha. O primeiro o fascinou pelas belezas naturais e pelo clima mais quente do que a sua terra natal, a Holanda. Já no caso da Espanha o que mais chamou a atenção dele foi a arquitetura de várias construções e palácios antigos, herança da dominação moura no século VIII principalmente. Nestas construções ele encontrou uma farta utilização dos mosaicos, nos quais figuras geométricas se encaixavam perfeitamente, já que a religião mulçumana não permitia a representação de figuras humanas.

Segundo Boyer (1974) os primeiros mosaicos foram feitos pelos sumérios por volta de 4 mil anos antes de Cristo na Mesopotâmia. Eram de terracota e serviam para reforçar e adornar as paredes. Na Grécia Antiga surgiram os primeiros mosaicos com padrões geomé- tricos precisos, coloridos retratando cenas do cotidiano e motivos mitológicos. A expansão

do Império Romano levou a arte do mosaico para muitas regiões do Velho Mundo, sendo que a Itália a partir de 40 a.C. tornou-se o maior centro de produção de mosaicos.

Com a ascensão do Império Bizantino e a decadência do Império Romano, a partir do século V, a arte dos mosaicos sofreu influências orientais, com a utilização de outros materiais que não fossem apenas rochas, como por exemplo o vidro esmaltado. Neste período os mosaicos começaram a ser utilizados mais para enfeitar paredes do que adornar pisos, geralmente com motivos religiosos. No século VIII, os invasores mulçumanos levaram para a Península Ibérica a arte do ladrilhamento.

Diferentemente do mosaico bizantino, os islâmicos trabalhavam apenas com formas geométricas como já dissemos anteriormente. Ao observarmos estes mosaicos, vemos que para haver um encaixe perfeito é necessário que os lados e os ângulos fiquem bem ajustados, sendo que os retângulos, os quadrados, os hexágonos regulares, e os triângulos eqüiláteros aparecem com mais freqüência em mosaicos, já que os ângulos desses polígonos são divisores de 360°.

Escher, desde a época que freqüentou a Escola de Arquitetura e Artes Decorativas, tinha interesse em estudar a divisão regular de superfícies. Ele acreditava que ela fazia parte das leis matemáticas e não era nenhuma invenção ou criação do homem, existindo independente da mente humana. Após conhecer o palácio de Alhambra, em Granada, sul da Espanha, motivado pelos painéis com preenchimento regular do plano que por lá observou, se aprofundou no estudo do tema, copiando em suas anotações alguns ornamentos dos mouriscos. Quando ele comparou aquilo que desenhou com livros de decoração e de matemática, achou tudo de difícil compreensão. Restou a ele criar um sistema prático para fazer a divisão de superfícies que ele próprio criou, formalizando este estudo em 1942, a partir de desenhos. Ernst relata que a grande proeza de Escher é que ele descobriu por si só quais são os movimentos que levam um desenho ou uma figura a cobrir-se a si mesmo. Sabe-se hoje que existem 17 grupos diferentes através dos quais se pode transferir uma figura em si mesma.

O estudo das transformações do plano através de movimentos de tal forma que não ocorra distorção de formas e tamanhos dá-se o nome de isometria. Pertencem a esta categoria todos os movimentos que conservam a distância e a posição relativa entre pontos. São elas a translação, a rotação, a reflexão e a reflexão com deslizamento.

Na isometria por translação, todos os pontos de uma figura sofrem um deslocamento na mesma intensidade e na mesma direção, de tal forma que a figura transformada conserva a sua forma e tamanho. Isto significa basicamente que os todos os pontos do objeto mudam de posição, como mostra a figura abaixo:

FIGURA 22 - ISOMETRIA POR TRANSLAÇÃO

Um outro tipo de isometria bastante utilizada é a rotação, que diferentemente da translação, que possui um ponto fixo. Na rotação todos os pontos do plano se movimentam, girando em torno de um ponto ou de eixo, aqui designados, ponto central ou eixo de rotação. O fato de o movimento possuir ou não este ponto central ou eixo de rotação diferencia estes dois tipos de isometria.

FIGURA 23 - ISOMETRIA POR ROTAÇÃO

Existem isometrias que possuem uma maior quantidade de pontos fixos. Na isometria por reflexão, tomando como base uma linha ou um espelho imaginário, teremos uma infinidade de pontos que coincidem com essa linha. A reflexão é, também, conhecida por simetria axial dado que é determinada por um eixo. Este movimento verifica as seguintes propriedades:

- os pontos do espelho não se movem por efeito da reflexão;

- a distância de um ponto ao espelho é igual á distância da imagem desse ponto ao espelho.

Verificamos, ainda, que ao designarmos na figura original um determinado sentido ele aparece invertido na figura final, ou seja, a reflexão altera a orientação dos pontos do plano como podemos observar na figura seguinte:

FIGURA 24 - ISOMETRIA POR REFLEXÃO

Podemos dizer que a inversão da orientação é simplesmente um reflexo do processo de construção, já que para produzir a reflexão temos que levantar a figura e girá-la. Já na trans- lação ou rotação faz-se apenas um arrastamento da figura original, sem que ela saia do plano.

O último tipo de isometria que podemos constatar é a reflexão deslizante, na qual se combina um movimento de reflexão com um movimento de translação na direção do eixo de reflexão. Assim, podemos observar que a reflexão deslizante não pode ser distinguida das outras isometrias partindo, somente, do número de pontos fixos dado que, identicamente à translação, este movimento não tem pontos fixos. De modo análogo, não podemos fazer distinção das isometrias considerando, somente, o fato de o movimento preservar ou não a orientação da figura. Efetivamente, sendo a reflexão deslizante uma composição das isometrias reflexão e translação, este movimento vai alterar a orientação da figura no plano e não vai fixar pontos, como ilustra a figura a seguir:

Contudo se considerarmos ambos os aspectos cada isometria, isto é a presença ou não de pontos fixos e ainda a pretensa preservação da orientação, pode ser montada a seguinte tabela para se comparar os principais tipos de isometrias:

Isometria Pontos fixos Orientação

Translação Não há Preserva

Rotação Um [ponto central] Preserva

Reflexão Infinitos [linha de espelho] Inverte

Reflexão deslizante Não há Inverte

A partir da utilização de softwares matemáticos como o programa Cabri-Géomètre pode-se construir uma combinação de movimentos ou isometrias, obtendo os 17 grupos diferentes de movimentos já citados anteriormente. Facilmente verifica-se que ao final do processo obtemos sempre um movimento da lista inicial. Conclui-se que qualquer isometria do plano é uma translação, rotação, reflexão ou reflexão deslizante dado que qualquer combinação destes movimentos produz um deles.

Não se pretende aqui mostrar os grupos citados acima, mas sim destacar que Escher, sem o auxílio de conhecimentos matemáticos ou de qualquer recurso tecnológico de Informática, ciência esta que ainda estava dando os primeiros passos no auge da produção do artista, descobriu todas estas possibilidades, a fim de se obter a divisão regular das superfícies.

Segundo Ernst, uma característica especial e única da divisão de superfícies de Escher é que ele escolhe sempre motivos que representam alguma coisa de concreto e que lamentava o fato dos artistas árabes, mestres na arte de preencher superfícies sem lacunas tivessem que usar, por causa da religião, figuras geométricas abstratas. Escher considerava a divisão de superfícies como um instrumento, ou meio, e nunca fazia um desenho que tivesse como tema principal a divisão regular de superfícies. Em dois temas estritamente relacionados, ele usou de forma bastante explícita a divisão regular de superfícies: quando trabalhou com metamorfoses e ciclos. Na metamorfose vemos formas abstratas indeterminadas transformarem-se em formas concretas nitidamente limitadas e, de novo, em formas abstratas. Assim uma ave pode se tornar um peixe ou vice-versa, de tal forma que isso caracterizará uma metamorfose típica. Nas gravuras cíclicas também pode-se observar metamorfoses, porém a ênfase se dá na continuidade e no regresso ao ponto de partida