• Nenhum resultado encontrado

Embasamento jurídico do “aborto eugênico”

No documento Aborto eugênico (páginas 63-66)

2 O “ABORTO EUGÊNICO”

2.6 Embasamento jurídico do “aborto eugênico”

O embasamento jurídico da indicação eugenésica é outra questão que demanda atenção. Necessita-se saber se o caso traduz uma causa de exclusão da pena, uma causa de pura exculpação ou uma causa excludente da ilicitude.

Conforme alguns doutrinadores, a situação traduz uma hipótese de causa de exclusão da pena. Admitir tal fato, entretanto, significaria manter ilícita a conduta do médico, o que seria inadmissível.

Para outros autores, por sua vez, o fato significaria uma causa de exclusão da culpabilidade. A interrupção da gravidez, em consonância com esta corrente, não seria punida quando a criança pudesse nascer com graves danos físicos e psíquicos, pois não se poderia exigir da gestante, nestes casos, que desse continuidade à gravidez. Na interpretação de Alberto Silva Franco, “esta posição jurídica, não deve, contudo, ter acolhida porque a exculpação tem um caráter pessoal e somente poderia redundar em proveito da grávida, que é quem se encontra na situação excepcional mas não no do médico. E não é provável que esta conseqüência tenha sido querida pelo legislador” .52

Grande parte dos doutrinadores, entretanto, repelem a hipótese de inexigibilidade e se manifestam, abertamente, pelo reconhecimento de uma causa de justificação que apresenta semelhança com o estado de necessidade, pois consideram,

51 CRUZ, A. Idem, ibidem.

FRANCO. Alberto Silva. Aborto por indicação eugênica. in Estudos jurídicos em homenagem a Manoel Pedro Pimentel. São Paulo : Revista dos Tribunais. 1992. p. 98.

para tal conclusão, o fato de que todos que participam de uma interrupção da gravidez legalmente permitida, atuam de modo legítimo.

Demonstrada qual é a orientação adotada por grande parte da doutrina é salutar, ainda, definir quem representa o ponto central da prática eugênica: a mãe ou o feto que não nasceu. Se considerarmos a mãe, tudo resumiria-se no conflito entre a vida em formação e a saúde da gestante, o que se resolve na primazia desta em relação àquela. Nas palavras de Alberto Silva Franco “nessa situação, a indicação eugênica não seria mais do que uma variante da indicação terapêutica em que teria prevalência a saúde psíquica da mãe habitualmente posta em perigo em tais situações, frente à vida do nascituro”.53 No caso de considerarmos o não nascido, o fundamento da indicação eugênica, na linguagem do mesmo autor “é garantir a todo nascituro o desenvolvimento de uma vida sã e normal, de forma que resulte aceitável eliminar seres humanos com uma ínfima qualidade de vida. Se se atua de forma diversa, dá-se chance ao nascimento de seres infelizes, presos a uma existência penosa e miserável”.

Pelo que denota-se, não podemos encontrar a justificativa do aborto por indicação eugenésica no confronto entre a vida daquele que está para nascer e a saúde psíquica de quem o está gerando. Permitir tal situação traduziria, claramente, uma manifestação da indicação terapêutica. Conforme refere Alberto Silva Franco, a diferença entre uma e outra indicação “não estaria no fundamento, que seria o mesmo, mas apenas no fato de que, na indicação terapêutica, a saúde da mulher deve passar, necessariamente, por um perigo grave enquanto que, na indicação eugênica, o legislador se conforma com a referência ao processo patológico no ser em formação, presumindo a partir dele que a saúde da mãe será afetada, ao enfrentar tal situação” . O autor continua seu ensinamento pronunciando que “a realidade evidencia, no entanto, que atinge mais a saúde psíquica da mãe uma enfermidade suscetível eventualmente de cura após um processo prolongado e custoso de atenção constante à criança do que a enfermidade incurável que dá lugar à morte da criança de forma irremediável, com poucos dias ou meses de vida”.54

Também não se deve concentrar unicamente no feto o motivo da indicação eugênica. O direito à existência e à vida, em princípio, deve ser preservado

53 FRANCO. A. Idem. p. 99. 54 FRANCO, A. Idem, p. 100.

acima de tudo. Além disso, “não se conhece a vontade do ser humano afetado, não cabendo presunções dada a dificuldade de predizer, como a experiência ensina, se esse ser vai ser infeliz ou, pelo contrário, dará sentido à sua vida, pese embora o seu defeituoso ponto de partida”.55

Entretanto, no momento em que passamos observar o bem jurídico da vida do nascituro não mais tendo como ponto de partida um direito próprio, mas sim da sociedade, tudo se modifica. Desta forma, no momento em que se encara o feto como o sujeito passivo único do aborto eugênico, depara-se frente a um enorme despautério, na medida em que se decide sobre a vida de outrem, cuja vontade ainda não se manifesta, presumindo que aquele ser não teria uma vida independente e feliz.

Mas, em verdade, “a questão da indicação eugênica deve ser analisada sob ótica diversa, a partir do reconhecimento de um conflito de interesses, de caráter social: trata-se de eleger entre o interesse social na qualidade de vida independente de todo ser humano que se disponha a nascer e integrar-se numa comunidade e o interesse social em assegurar a existência de qualquer um desses seres e em quaisquer condições”. De acordo com o autor, “seria errôneo afirmar que a vida humana deixa de ter valor quando carece de determinadas condições de qualidade”, pois “a existência humana enquanto tal merece uma consideração valiosa mas do que se cuida é de ponderar quando o valor consistente na qualidade de vida prepondera sobre o da própria existência”.56 Pelo que se expõe, deve-se observar o aborto não mais de uma visão extremamente maternal, mas sim de novas perspectivas, em que o interesse da sociedade em assegurar a todos seus futuros cidadãos as mínimas garantias de bem- estar, constitui a marca maior. Em conformidade com a idéia lançada pelo autor citado, o que se pretende garantir, além do mero direito de nascer, é o nascimento de quem possua, ao menos, a mínima qualidade de vida.

Considerando todos esses aspectos, o “aborto eugênico” “tem, por fundamento, o interesse social na qualidade de vida independente de todo ser humano e não o interesse em assegurar a existência de qualquer um desses seres em quaisquer

■5 FRANCO, A. Idem. ibidem. 56 FRANCO, A. Idem, p. 101.

condições”, sendo que “traduz-se, como as demais hipóteses do sistema de indicações, em causa excludente da ilicitude”.57

Outra situação merecedora de atenção é a de que jamais se poderá cogitar na realização de um “aborto eugenésico” contra a vontade da gestante, uma vez que este processo de interrupção da gravidez traduz-se numa manifestação de caráter personalíssimo da mãe, o que aliás, é marca de todas modalidades de aborto. No “aborto eugênico”, entretanto, tal consentimento significa “um papel especialmente transcendente: o conflito não se resolve no sentido preconizado pela sociedade até que a mãe, no exercício de sua liberdade, manifeste expressamente seu consentimento”58. Assim, é essencial que o consentimento esteja presente para possibilitar a prática eugênica, mas tal consentimento tem apenas eficácia para impedir o aborto, e jamais para justificá-lo, de modo que o consentimento, isolado, nunca poderá autorizar o aborto.

No documento Aborto eugênico (páginas 63-66)

Documentos relacionados