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Noiva havia quase cinco anos, Ismênia já se sentia meio casa- da. Esse sentimento junto à sua natureza pobre fê-la não sen- tir um pouco mais de alegria. Ficou no mesmo. Casar, para ela, não era negócio de paixão, nem se inseria no sentimento ou nos sentidos: era uma ideia, uma pura ideia. Aquela sua inteli- gência rudimentar tinha separado da ideia de casar o amor, o prazer dos sentidos, uma tal ou qual liberdade, a maternidade, até o noivo. Desde menina, ouvia a mamãe dizer: “Aprenda a fazer isso, porque quando você se casar”... ou senão “Você pre- cisa aprender a pregar botões, porque quando você se casar”... A todo instante e a toda a hora, lá vinha aquele – “porque quando você se casar”... – e a menina foi-se convencendo de que toda a existência só tendia para o casamento. A instrução, as satisfações íntimas, a alegria, tudo isso era inútil; a vida se resumia numa cousa: casar. De resto, não era só dentro de sua família que ela encontrava aquela preocupação. No colégio, na rua, em casa das famílias conhecidas, só se falava em casar. “Sabe, Dona Maricota, a Lili casou-se; não fez grande negó- cio, pois parece que o noivo não é lá grande cousa”; ou então: “A Zezé está doida para arranjar casamento, mas é tão feia, meu Deus!”... A vida, o mundo, a variedade intensa dos senti- mentos, das ideias, o nosso próprio direito à felicidade, foram parecendo ninharias para aquele cerebrozinho; e, de tal forma casar-se se lhe representou cousa importante, uma espécie de dever, que não se casar, ficar solteira, “tia”, parecia-lhe um cri- me, uma vergonha (BARRETO, 2018, p. 59-61).

O excerto descreve uma cena presente na literatura de Lima Barreto, a qual permite situar padrões socialmente vigentes cuja sus- tentação no determinismo biológico imputa a delimitação de papeis, desejos, formas de viver em relação a nossos corpos e sexualidade. Tal concepção, conforme viemos argumentando, passa a ser colocada em xeque, o que nos convoca a problematizar a emergência de uma nova terminologia: Gênero. Admitindo que as palavras possuam história, como nos incita a pensar Louro (2000), passamos a questionar que sentidos assumem a palavra Gênero e qual sua relação a palavra Sexo.

O temo sexo em sua maneira usual, conforme Barsa (2004, p. 960) seria “O conjunto de caracteres estruturais e funcionais que determinam a classificação de um ser vivo como macho ou fêmea. Os órgãos genitais externos”. Aqui nos chama a atenção para a forma simplista que o dicionário relaciona um vocábulo que merece uma melhor complementação, que é discorrida nos parágrafos seguintes, trazendo a história como forma de aprofundar a reflexão.

Conforme tratado anteriormente, Weeks (2000) nos permite compreender que anteriormente ao século XVIII, sexo era uma no- ção difusa. É somente no final do século XIX e início do século XX que temos sexo como uma referência natural, concebida no nasci- mento, marcando os corpos como “feminino” e “masculino” através de suas genitálias visíveis.

Logo, sexo passa a ser limitado a uma concepção biológica, composta por apenas duas formas: “macho” e “fêmea”. Portanto, apresentando como único fator determinante nascer portador de órgão reprodutor masculino ou feminino, excluindo qualquer ou- tra forma que não se enquadre nesta classificação, tendo em vista, a não aceitação da permanente mudança do corpo humano e suas diferentes formas de desenvolvimento. Pode-se assim afirmar que a concepção dualista biológica de sexo é predominante, assumindo o sexo feminino e masculino, como única possibilidade de ser e viver sem ser excluído socialmente (COLLING e TEDESCHI, 2015).

Tratado como algo fixo e acabado, a terminologia sobre o sexo, começa a ser colocada em pauta, sobremaneira na década de 1980 por integrantes de movimentos feministas, como nos aponta Piscitelli (2009) sobre reflexão histórica feita pelas integrantes dos movimentos feministas no que tange aos grupos de inter sexos, transexuais e trans- gêneros. Como vimos, até então, os pressupostos de sexo nos remetiam a uma ideia fixa, natural e acabada, como se fossem anteriores a cultura e a sociedade. Logo, os arranjos que se relocam para as fronteiras dos comportamentos sexuais tidos como “adequados” seriam inexistentes, ou ao menos, seriam redirecionados ao sistema binário homem-mulher. Para Pichetti (2014), trata-se de uma marcação tendo como referência a heterossexualidade relocando as orientações sexuais, bem como gru- pos que habitam as fronteiras entre masculino e feminino para uma domesticação de comportamento e identidade dentro do sistema “ade- quado” para ser homem ou mulher, conforme a norma.

Gender assume visibilidade a partir de sua distinção do termo sex junto a feministas anglo-saxãs, colocando em xeque o determi-

nismo biológico implícito nos termos sexo e diferença sexual, vi- sando marcar, através da linguagem, o caráter social presente nas distinções baseadas no sexo, conforme argumenta Louro (2003) a partir de Scott (1995).

Guizzo, Beck e Felipe (2014) argumentam que a necessidade de um novo conceito de sexo, neste caso a conceituação de gêne- ro, vem para quebrar paradigmas dos seguimentos de diferencia- ção da dicotomia “homem-mulher”, justamente, retirar a hierarquia que havia sido pré-estabelecida no conceito tradicional como vimos anteriormente. Podemos então considerar a palavra gênero como a percepção social e cultural do indivíduo sobre si mesmo e não mera- mente algo determinado pela concepção biológica de seu nascimen- to (GUIZZO, BECK e FELIPE, 2014).

Ao assumir o caráter social, cultural e histórico sobre o concei- to, passamos então a romper com concepções historicamente consti- tuídas, permitindo (re)pensar outras formas viver e outras maneiras de conceber nossos corpos e sexualidades, à medida que tomamos por forma principal o inacabamento dos seres humanos, a infindável experiência humana com suas diferentes identidades e comporta- mentos (GUIZZO, BECK e FELIPE, 2014; LOURO, 2003).

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