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Capítulo 3. Crise e ruptura: o neoconcretismo e a relação entre arte e vida

3.1 A emergência do neoconcretismo

Sabe-se que tanto o movimento concretista como o movimento neoconcretista faziam parte de uma mesma estratégia cultural – a tendência construtiva brasileira. Contudo, eles não formavam um único bloco de ação, pois se distinguiam profundamente no modo como se inscreviam no contexto brasileiro de então e no que projetavam como princípios e valores estético-artísticos. Mesmo filiados a um mesmo quadro de referências (o construtivismo), concretismo e neoconcretismo apresentaram questões diferentes e opostas, produções divergentes e promoveram a abertura de direcionamentos diversos.

O neoconcretismo é declaradamente o segundo movimento de um mesmo projeto, o que faz considerar seu estudo como a investigação do par do concretismo na inserção da tendência construtiva no Brasil. Como afirmou Ronaldo Brito (1985), “o concretismo seria a fase dogmática, o neoconcretismo, a fase de ruptura; o concretismo, a fase de implantação, o neoconcretismo, os choques da adaptação local” (p. 55).

Isso, contudo, não deve produzir a equivocada ideia de que o concretismo e o neoconcretismo estabeleceram entre si uma relação de sincronia, reduzindo este último a um movimento de continuidade do projeto da arte concreta brasileira. Desconsiderar que o movimento neoconcreto foi exatamente o ponto de ruptura da ideologia construtiva no Brasil é esquecer o que pode ter sido seu maior interesse, que era o de ser um pensamento da crise, um movimento produzido pela crise do projeto construtivo e que acreditava na “... impossibilidade do ambiente cultural brasileiro seguir o sonho construtivo, a utopia reformista, a ‘estetização’ do meio industrial contemporâneo” (BRITO, 1985, pp. 94/95).

Assim, o neoconcretismo surge como uma saída para o esgotamento do projeto concretista. Apesar de ele agrupar elementos sofisticados da tradição construtiva, o movimento apresenta, principalmente, uma incisiva crítica da impossibilidade de realização do caráter racional da arte concreta, bem como de sua tendência tecnicista da vida cotidiana, como um projeto de vanguarda cultural brasileira.

Após o rompimento entre os artistas concretistas paulistas e cariocas, estes não viam sentido em continuar adotando a denominação “arte concreta”, porque suas

produções dos últimos anos (de meados da década de 1950) distinguiam-se bastante do que se compreendia por arte concreta. Em seguida ao momento oficial da ruptura entre os dois grupos – ocorrida, segundo Gullar (1998), em junho de 1957 –, os ainda denominados artistas concretos do grupo carioca não cogitaram a criação de um novo movimento. Foi quando, em 1959, surgiu a ideia de se fazer uma exposição com a reunião dos trabalhos desses referidos artistas – pintores, escultores e poetas – e Ferreira Gullar levantou a questão do quão pertinente era a constituição de um novo grupo de artistas, entendido enquanto configuração de um movimento artístico propriamente dito. Realizando trabalhos a partir de experiências pessoais relativamente isoladas, dentro de um quadro de referências gerais da arte construtiva, os artistas que formariam o grupo neoconcreto se reuniram pela afinidade encontrada em suas produções através da convergência de elementos plásticos e formais que vinham sendo trabalhados entre eles. Foram essas elaborações que os direcionaram para o caminho em que as ideias e os valores formulados pela arte concreta não encontravam espaço algum em que pudessem ecoar seus propósitos, além de não mais serem suficientes para o entendimento da arte que se vinha construindo.

Foi assim, sem a defesa de uma única perspectiva estilística, num contexto em que os artistas criavam se influenciando mutuamente e mantendo suas particularidades, a partir de um conjunto de descobertas e criações circunscritas no desejo comum de novas buscas para o cenário artístico brasileiro de então, que se realizou, em março de 1959, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, a exposição à qual nos referimos acima, denominada de I Exposição de Arte Neoconcreta.

Por mais que tivessem se distanciado da perspectiva teórica dos concretistas da Escola de Ulm, como também dos concretistas paulistas e argentinos, Ferreira Gullar (2007) sugeriu que esse grupo de artistas – ao qual também se vinculava – passasse a se chamar de neoconcretos por se erguerem enquanto um movimento que continha elementos oriundos e apresentava descobertas decorridas da arte concreta, ainda que se definissem como uma negação dela.

O neoconcretismo, desse modo, nasceu do esforço de um grupo de artistas, ainda inseridos no quadro de referências construtivas, em tentar retomar e assumir características completamente negligenciadas pela arte concreta. Como movimento que se formou nos alcances da penetração da tendência construtiva no país, o neoconcretismo surgiu com o objetivo de renovação da linguagem geométrica,

enfatizada no caráter racionalista que dominava o meio de arte de então e, por isso, logrou desenvolver os aspectos experimentais da prática artística. O movimento neoconcreto foi, podemos afirmar, uma incisiva reação ao autoritarismo concretista.

Essa dimensão negativa do neoconcretismo, que lhe é fundante, percebida, principalmente, no processo de rompimento com os esquemas formais da arte concreta e no modo como a arte se estrutura através de uma nova relação com o espectador, marcou-o, em relação à tradição construtiva, como um movimento que se colocou, de acordo com Ronaldo Brito (1985), num lugar paradoxal: o “de um movimento construtivo mais ou menos ‘maldito’” (p. 89), na medida em que, mesmo erguido sobre elementos sofisticados da arte construtiva, se definia a partir de um radical questionamento de seus postulados.

Não por coincidência, os artistas neoconcretos insistiam na arte enquanto prática experimental autônoma, por mais que, de certa forma, projetassem transformações sociais pontuais e específicas a partir dela. Para Ronaldo Brito (1985), com o movimento neoconcreto, “ocorreu, então, esse paradoxo tão brasileiro e tão próprio do subdesenvolvimento: uma vanguarda construtiva que não se guiava diretamente por nenhum plano de transformação social e que operava de um modo quase marginal” (p. 61).

Essa característica de marginalidade, ou lateralidade, como afirmam alguns (BRITO, 1985), é uma das suas principais especificidades enquanto movimento artístico vinculado à tendência construtiva. Foi esse aspecto que possibilitou ao neoconcretismo um grande questionamento dos postulados construtivos e abriu caminho à crítica ao próprio estatuto social da arte, ausente (de modo sistemático e claro) nos demais movimentos construtivos. Mais que um elemento do movimento neoconcreto, a marginalidade era um componente mesmo da ideologia desse movimento.

O neoconcretismo apresentava, assim,

... uma ação residual intensa, decisiva mesmo para um setor da produção contemporânea. É possível até situá-lo como um corte,

ponto de ruptura da arte moderna no país. (...). Tanto pelas questões

que levantou como pelo seu próprio modo de inserção na instituição- arte, e pela maneira como evoluiu enquanto estratégia de grupo, o neoconcretismo marcou um tipo de indagação nova e diferente no campo cultural brasileiro do final dos anos 50 (BRITO, 1985, p. 94).

3.2 O movimento neoconcreto se fundamenta