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Capítulo 2 Crise Capitalista e ampliação do espaço de vida da emigração haitiana

2.2 A Emigração do Haiti

O primeiro grande fluxo componente da tradição migrante haitiana e que forma o seu espaço de vida parte rumo ao país vizinho, a República Dominicana (CASTOR, 1978), em busca essencialmente de trabalho (COTINGUIBA, 2014). Este fluxo inaugura a formação de um espaço de vida inicialmente circunscrito ao Caribe

18 “Ampliación del espacio migratório tradicional”.

19 “Paralelamente, los espacios migratórios se disponen de ahora en adelante según una geometría

variable: la distancia se transforma en um parámetro secundário; las fronteras del ‘espacio de vida’ se han modificado, y el processo migratório comienza de hecho mucho antes que el desplazamiento físico, con la toma de conciencia por parte del individuo de un espacio ensanchado que le es accesible”.

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(DOMENACH e PICOUET, 1987) mas que, como veremos, amplia-se gradativamente a Estados Unidos, Canadá, França e, atualmente, Brasil. Contribuíram para a constituição deste movimento migratório o crescimento demográfico rural haitiano, que transbordava os limites do sistema agrário e comprometia ainda mais a subsistência das famílias, e as necessidades de mão-de-obra para a indústria açucareira na República Dominicana, em processo de expansão. Estes primeiros “migrantes” deslocavam-se inicialmente para estadias muito curtas no país vizinho (CASTOR, 1978), inicialmente definindo-se, portanto, como um fluxo de reversibilidade renovada estacional (DOMENACH e PICOUET, 1987), isto é, um fluxo fronteiriço que, embora se renove no tempo, é caracterizado pelo retorno, pela reversibilidade.

É a partir, no entanto, do desenvolvimento da indústria açucareira dominicana, que desta mobilidade caracterizada pela reversibilidade renovada estacional (DOMENACH e PICOUET, 1987) passa-se à ocupação mesma das regiões fronteiriças, constituindo um processo de consolidação da presença haitiana no território dominicano (CASTOR, 1978).

Para Castor (1978), a constituição deste fluxo se dá como expressão de uma inversão nas relações entre Haiti e República Dominicana, inversão esta operada pela Grande Indústria Moderna. Enquanto o Haiti havia sido condenado a uma posição de marginalidade na divisão internacional do trabalho e sofria com as graves consequências agrárias deixadas no país e os limites econômicos e sociais impetrados pelo embargo econômico, a República Dominicana, por outro lado, associava-se aos Estados Unidos, experimentava os efeitos de uma euforia causada pela expansão norte- americana no Caribe (que ainda não acontecia com o Haiti) e desenvolvia com isto a produção de açúcar para exportação, com trabalho remunerado. Ambos desenvolviam- se de forma dependente, é verdade, mas havia maiores possibilidades de emprego na República Dominicana. E isto motivou milhares de haitianos a cruzar a fronteira. O desenvolvimento desigual operava entre os dois países, e ademais havia entre eles uma

fronteira cujos contornos nunca haviam sido objeto de consenso20. Para o

desenvolvimento, no entanto, da indústria açucareira dominicana, era necessário superar

20 Para maiores informações sobre a constituição da fronteira entre Haiti e República Dominicana e os

conflitos dela decorrentes, consultar CASTOR, Suzy. Migración y Relaciones Internacionales (el caso haitiano-dominicano). México, D.F: Editora de la UNAM, 1978.

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a baixa densidade demográfica nas regiões produtoras, algumas das quais situadas à fronteira com o Haiti. Segundo Castor (1978), “as autoridades consideravam tal vazio como um obstáculo ao progresso” (CASTOR, 1978, p. 56) e por isto faziam vistas grossas e mesmo estimulavam a migração indocumentada de haitianos. De modo que, segundo fontes oficiais, em 1935 havia mais de 200.000 haitianos residentes na República Dominicana (CASTOR, 1978). Sua concentração espacial nas regiões fronteiriças era tida, pelas autoridades dominicanas, como uma ameaça; de mesmo modo, não se enquadravam nas exigências imigratórias dominicanas, a quem “a condição indispensável para qualquer imigrante é que fosse de raça branca” (CASTOR, 1978, p. 56).

O histórico agravamento das condições de vida e de trabalho à imigração haitiana na República Dominicana (CASTOR, 1978) enraíza-se nas relações de trabalho e no reconhecimento civil condenavam os imigrantes haitianos a uma condição subalterna no país. Um dos resultados deste agravamento foi a criação de uma grande tensão social nas regiões fronteiriças, onde a “haitianização” enquanto perigo era mais concentrada (CASTOR, 1978).

O grau de exploração da força de trabalho que se abatia sobre o trabalhador imigrante haitiano na República Dominicana era ainda maior, justificando inclusive a realização de uma campanha, no Haiti, de denúncia e de defesa dos trabalhadores haitianos residentes no país vizinho.

Em 1926, os setores nacionalistas haitianos empreenderam uma grande campanha de denúncias contra o que chamaram ‘tráfico moderno de escravos’. Certas medidas administrativas tiveram que ser adotadas para limitar e regularizar essa emigração, medidas que não foram efetivas. Apesar de não produzir-se nenhuma melhoria nas condições de trabalho, o fluxo de imigrantes haitianos não cessou de aumentar (CASTOR, 1978, p. 59).

A elevação crescente do fluxo, que reforçava o sentimento e a prática xenófobas na República Dominicana21, beneficiava, pela superexploração da força de trabalho haitiana, a indústria açucareira dominicana. Segundo Castor (1978), “a voracidade das companhias açucareiras alentava a chegada desta mão de obra ilegal praticamente

21 Enquanto prática, esta xenofobia atinge seu ápice no dramático episódio do genocídio de 1937, em que

forças militares dominicanas assassinam um número entre 18.000 e 25.000 imigrantes haitianos (CASTOR, 1978).

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submetida a um regime de trabalho forçado” (CASTOR, 1978, p. 60). No mesmo ano de 1935, o equivalente a 83% da força de trabalho empregado na indústria açucareira era de imigrantes haitianos. Este regime de trabalho, definido como forçado, expressa com clareza a apropriação que o sistema capitalista faz da mobilidade da força de trabalho. Esta apropriação tem múltiplos níveis: no mais amplo e abstrato, reside na política migratória que, ao privilegiar determinado perfil social, econômico e étnico de migrante, condena os demais perfis a uma condição de subalternidade (COVARRUBIAS, 2010); no mais local e concreto, reside no empregador que incentiva a imigração como forma de contratar trabalhadores imigrantes e remunerá-los abaixo do valor médio da força de trabalho no país – ou abaixo mesmo do valor necessário à reprodução desta força de trabalho (GAUDEMAR, 1977; MAGALHÃES, 2013).

O agravamento das condições de vida e de trabalho e mesmo a ampliação da repressão aos haitianos na República Dominicana forçou os Estados Unidos (CASTOR, 1978), presente econômica, política e militarmente em ambos os países no início do século XX, e tutor, por fim, do sistema econômico e político caribenho, a direcionar o excedente migratório haitiano à produção açucareira em Cuba. Deste modo, primeiro de maneira forçada mas logo enquanto processo social, formava-se um segundo processo histórico de emigração haitiana. “Em Cuba, durante este período – 1917 a 1920 – se estimava a média anual de imigrantes adultos entre 30.000 e 40.000. De 1915 a 1928, mais de 200.000 haitianos ingressaram a Cuba (...), sobretudo da Província do Oriente” do Haiti (CASTOR, 1978, p. 59).

A migração de haitianos a Cuba, para o trabalho na indústria açucareira da ilha, sob o controle rígido das empresas norte-americanas tem sido tema de leituras teóricas (CASTOR, 1978; SEGUY, 2014) e cinematográficas. Como parte de nosso trabalho de campo realizado em Porto Príncipe, no Haiti, entre 31 de Maio e 16 de Junho de 2016, pudemos entrevistar Glória Rolando, cineasta cubana e documentarista, autoria do filme “Reembarque”, sobre a migração haitiana no Caribe. Sobre este processo histórico de emigração haitiana ainda circunscrito a um espaço de vida caribenho, Glória Rolando destaca a gestão da mobilidade operada pelos interesses da indústria açucareira, expressa no ir e vir forçado de haitianos de uma ilha à outra, condicionado mais pelo valor do açúcar que por suas próprias vontades.

Mas bem, me chamava a atenção a migração esta do braceiro antillano, as pessoas que foram cortar cana e o interessante é que este personagem estava

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na literatura, e de pronto comecei a encontrá-los na realidade. Foi o processo mais fascinante, foi assim como surgiu a ideia de fazer o documentário “Haiti na Memória”, nos anos 80. Este que se chama “Reembarque” é o mais recente. O vídeo “Haiti na Memória” se fez em celulóide, “Reembarque” se fez em vídeo. É mais largo, um pouco mais complexo, mas “Haiti na Memória” foi um antecedente muito importante para mim, pois aí, bom, entrevistamos a muitos haitianos que hoje em dia não vivem mais e que em geral os dois documentários têm em comum a voz dessa gente pobre, humilde, que teria grandes sonhos quando foram a Cuba e que muitos morreram com a desesperança e de novo não regressaram nunca a seu país de origem. Mas no caso de “Reembarque”, que é uma produção do Instituto do Cine, eu pude filmar aqui no Haiti e em Cuba. No caso de “Haiti na Memória”, somente se fez lá em Cuba. E “Reembarque”, bom, tive a oportunidade de encontrar pessoas do Haiti que vivem no Haiti. Pessoas muito mais velhas, que nasceram ou se criaram em Cuba e depois durante o processo de “Reembarque” do ano 1937, por exemplo, foram obrigados eles, que eram pequenos, e sua família a regressar aqui ao Haiti. Então o interessante: o filme fiz primeiro em Cuba e depois vim e filmei aqui em Haiti e, claro, já tinha a ideia do processo de reembarque. Então por isso que busquei a imprensa e, sobretudo, me dei conta da injustiça tão grande desses obreiros que haviam dado tanto no mundo da indústria açucareira e que de pronto, quando os preços do açúcar baixavam ou não era necessário lhes expulsava. Inclusive na imprensa do ano 1933, 1937... porque houve vários reembarques, aparece uma foto onde se via eles com o buque de trás, com seu pequeno pacote, porque bom, isso não era uma coisa organizada, às vezes a guarda rural tocava e gritava “Haiti!”, e ao Haiti se os levava. Não importava se tinham filhos e aí se romperam muitas famílias, outra vez se corria ao pai, à mãe dos filhos, ao pai... para se esconder.. se deu toda a tragédia que houve nestes anos, quem os protegia? Ninguém! (Glória Rolando, 2016).

O registro cinematográfico, enunciado na fala de Glória Rolando, reforça o exposto por Castor (1978), a quem o fluxo migratório a Cuba se desacelera com a crise de 1930, que produzia efeitos restritivos à produção do açúcar na medida em que o preço internacional desta mercadoria se reduzia (CASTOR, 1978). Esta redução denota que Cuba – assim como a República Dominicana – embora situada em um nível superior de desenvolvimento, naquelas décadas, que o Haiti, era também um país dependente. A crise açucareira em Cuba reforçou a seletividade imigratória e reorientou os destinos da imigração haitiana, que passaram a concentrar-se, pela proximidade geográfica e fluxos já constituídos, na própria República Dominicana (CASTOR, 1978).

Décadas seguintes, no entanto, com o agravamento da situação política haitiana e o governo ditatorial de François Duvalier no país, ocorre um “reembarque” da emigração haitiana à Cuba. Segundo destacam Baptiste e Vieira,

Uma nova onda migratória internacional com características distintas surgiu depois da chegada de François Duvalier ao poder em 1957. Este movimento foi composto de refugiados políticos da classe alta, de intelectuais e estudantes que eram contrários à ditadura. Nesta fase, o fluxo migratório para Cuba se intensificou. Cuba recebeu o maior número de migrantes perseguidos pela elite haitiana e pressionados pelo regime ditatorial. É neste

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momento de instabilidade política e econômica que se inicia também a migração para os Estados Unidos (BAPTISTE e VIEIRA, 2016, p. 588).

Nas décadas seguintes, o fluxo migratório haitiano à República Dominicana se expande, e as razões desta expansão residem, segundo Castor (1978), no agravamento das desigualdades econômicas e sociais existentes entre os dois países e a facilidade de se transpor a fronteira.

Aqui temos que assinalar que desde o ponto de vista econômico, se bem que Haiti e República Dominicana padeçam da mesma situação de países subdesenvolvidos e dependentes, há sem embargo uma diferença bastante notória entre ambos quanto ao grau de subdesenvolvimento. Em qualquer tipologia de desenvolvimento dos países da América Latina, se coloca a República Dominicana em uma categoria mais avançada que o Haiti. Ademais, enquanto a economia dominicana durante estes últimos anos se caracterizou por um grande dinamismo, a situação econômica haitiana manifestava, pelo contrário, uma deterioração que durante os anos 1960- 1968, se refletiu em uma regressão em todos os índices (CASTOR, 1978, p. 95).

Segundo o último Censo Demográfico da República Dominicana (ONE, 2016), realizado em 2012, são atualmente 534.632 imigrantes no país, dos quais 87,3%, ou seja, 458.233 são haitianos. Destes, 299.619 (65,4% do total) são homens e 158.614 (34,6% do total) são mulheres. Por outro lado, 209.912 dominicanos são descendentes de dominicanos. Não obstante esta intensa participação da imigração haitiana na população dominicana, a xenofobia enquanto discurso e prática no país ainda persiste, como pudemos concluir na análise da Sentença 168-13 do Tribunal Constitucional da República Dominicana.

Mas já na década de 1960, República Dominicana e Cuba não eram os únicos destinos da imigração haitiana (MPI, 2013). A emergência dos Estados Unidos como um importante destino para milhares destes migrantes é um processo derivado, no entanto, de causas específicas, gestadas no interior da sociedade haitiana e das relações entre Haiti e Estados Unidos pelo menos desde 1915 (CASTOR, 1971). O desenvolvimento industrial dos Estados Unidos levara o país a uma condição de centralidade no sistema capitalista mundial. Se a miséria histórica do Haiti originou-se de sua riqueza em matérias-primas e recursos naturais e a sua exploração colonial, nos Estados Unidos, por outro lado, o desenvolvimento autônomo erigiu-se da escassez destes recursos, que constitui o país inicialmente como colônia de povoamento e não de exploração, e que impulsiona nele a criação de um sistema de produção e de circulação pautados na satisfação de suas próprias necessidades. Referindo-se à esta variação do sistema colonial – as colônias de povoamento –, Ribeiro (1985) afirma que

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Uma destas colônias de povoamento, que crescera como economia ancilar dos ricos empreendimentos escravistas coloniais das Antilhas, amadureceria, pouco mais tarde, para o Capitalismo Mercantil. Era a América do Norte, onde uma ordenação capitalista incipiente, fundada nos próprios princípios que regeram a colonização, se fortificaria no curso da guerra de emancipação. Estas características se acentuariam ali de forma mais radical que em qualquer outra área colonial, em virtude do caráter singular de sua implantação como uma extensão ultramarina da sociedade inglesa. Assim é que, na América do Norte, se erige o modelo básico de República federativa moderna, estruturada como uma formação capitalista mercantil, tendente à industrialização. Contando com enorme áreas desertas para a autocolonização, a América do norte só tardiamente se lança à expansão colonialista, mas o faz, também pela apropriação de antigas áreas de domínio ibérico, como as Antilhas e as Filipinas, além de algumas ilhas do Pacífico (RIBEIRO, 1985, pp. 141-142).

Esta área de expansão e de influência do capitalismo industrial norte-americano incluía o Haiti (CECADE e CIDE, 1982; RIBEIRO, 1985). Com a presença norte- americana no Caribe, os Estados Unidos tinham acesso a fontes de matérias-primas e de recursos naturais e físicos que não contavam em seu território, além de trazer para si, seja pela imigração de haitianos, seja pela instalação das empresas norte-americanas nestes países, um amplo e superexplorado proletariado externo (CASTOR, 1978; SEGUY, 2014).

O Haiti entra, com isto, em um novo ciclo de sua dependência. Se durante o período colonial fora objeto de dominação espanhola e francesa, na primeira etapa do capitalismo industrial, viu o sistema colonial ruir e expandir-se na região a influência inglesa, nesta passagem do século XIX ao XX serão os Estados Unidos a nova potência imperialista atuante no país e sua região. Este processo, iniciado já ao longo do século XIX, passa a desenvolver-se com mais ímpeto a partir do início do século XX, e no caso haitiano a presença norte-americana não seria apenas econômica mas também militar.

O imperialismo nascente leva os Estados Unidos a considerarem toda a América Latina como sua zona de expansão natural e o Caribe como seu quintal. Assim, em 1915, o desembarque dos marines estadunidenses inicia a ocupação mais longa (1915 – 1934) na zona do Carine e América Central. A crise de hegemonia se resolve de fato e a modernidade procurada se traduz na ordem estabelecida pelo ocupante a partir de uma reacomodação do poder político com o exército, recém-criado como coluna vertebral (CASTOR, 2008, p. 12).

A ocupação norte-americana no Haiti entre 1915 e 1934 encerra um período de 111 anos de uma independência que, ainda que formal (PIERRE-CHARLES, 1990) e abalada economicamente pelo embargo (CASTOR, 1971), representava o resultado de um processo histórico de luta e conquistas populares no país (JAMES, 2010). Neste período de ocupação, as estruturas e instituições econômicas, políticas e administrativas

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haitianas ficam então sob domínio norte-americano22. Com isto, os Estados Unidos passam a, das mais distintas formas e com os mais variados meios, definir a política nacional no Haiti à imagem e semelhança dos interesses das empresas imperialistas instaladas no país (CASTOR, 1971). Segundo Pierre-Charles (1990), “a dependência do Haiti em relação aos Estados Unidos tinha aumentado em todas as áreas” (PIERRE- CHARLES, 1990, p. 199). A ocupação acarreta, portanto, uma “distorção sem precedente do desenvolvimento social do país. [Ela] reformou os grupos sociais dominantes, renovando seus meios de controle e dominação e introduzindo novos instrumentos no aparato político que coadjuvaram a estabelecer a hegemonia desta elite e a neutralizar a resistência popular” (PIERRE-CHARLES, 1990, p. 183).

As múltiplas dimensões desta presença condicionaram a formação, particularmente após o fim da ocupação militar no país, de um intenso fluxo emigratório de haitianos para os Estados Unidos (COTINGUIBA, 2014; GLICK-SCHILLER e FOURON, 1999; LAGUERRE, 1984). A força deste condicionamento, que ademais é produto e produtora do desenvolvimento desigual existente entre os dois países e do agravamento constante das condições sociais em que vive a população haitiana, operou a constituição dos Estados Unidos como destino preferencial das emigrações haitianas até o momento atual. Contribuíram para tal, além dos fatores expostos acima, a proximidade entre os dois países, a atuação das redes sociais construídas pelos imigrantes haitianos e a influência mesma da presença militar norte-americana no Haiti em definir no imaginário migratório deste país a ideia de um país próspero, repleto de oportunidades, “logo ali ao norte” (DURAND, 2014).

Enquanto fluxo migratório massivo, a presença haitiana nos Estados Unidos existe desde a primeira metade do século XX (CASTOR, 1978; DURAND, 2014), não obstante haver relatos de emigração de haitianos para o país do norte durante a luta de independência negra no Haiti, entre o século XVIII e XIX (JAMES, 2010). Entre os anos de 1960 e 2014, a população imigrante nascida no Haiti e residente nos Estados Unidos passa de 5.000 para 628.000 pessoas, constituindo com isto 1,5% de toda a

22 Segundo Cotinguiba (2014), há ainda uma influência da ocupação militar norte-americana no Haiti no

campo da religiosidade: “a partir do século XX, outra vertente cristã passou a concorrer pela conversão dos haitianos, o protestantismo, especialmente com a invasão estadunidense a partir de 1919” (p. 32). Desde então, o protestantismo tem disputado o campo do sagrado no Haiti com o Vodu e o Catolicismo. Embora o tema da religião possua uma complexidade que escapa aos objetivos desta tese, veremos no capítulo 3 que muitos dos imigrantes haitianos na região de análise declaram-se protestantes.

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população imigrante norte-americana (MPI, 2016). A evolução desta presença pode ser vista no Gráfico 2.

Gráfico 2 – População imigrante nascida no Haiti e residente nos Estados Unidos

Fonte: MPI, 2016.

O crescimento da presença haitiana nos Estados Unidos, descrito no Gráfico 2, constitui objeto de extensa e fértil literatura, centrada especialmente na análise do “boat

people”23. Segundo Cotinguiba (2014), “este fluxo migratório para os Estados Unidos

teve expressividade a partir da década de 1970, quando se lançaram ao mar os boat

people. Essa expressão remete a um conjunto de significados, podendo referir-se ao

processo da viagem, às pessoas, à embarcação e ao seu destino” (COTINGUIBA, 2014, p. 84). O crescimento do fluxo entre 1960 e 1970 se explica fundamentalmente pela crise econômica e instabilidade política promovidas pela ditadura de Fraçois Duvalier.

A década de 60 é de decadência absoluta e relativa em todos os setores da atividade econômica (...). Tal situação, reforçada pelo fenômeno do terror, provocava o êxodo em massa rumo ao exterior (...). O Haiti começou a oferecer o espetáculo de ser um dos maiores exportadores de cérebros do Terceiro Mundo, em relação a seu tamanho, sua população e nível de desenvolvimento. Na década de 1960, profissionais de todas as categorias, médicos, engenheiros, enfermeiros, professores, operários especializados, expulsos pelo terror político e econômico, emigraram para os Estados Unidos, Canadá e Congo (PIERRE-CHARLES, 1990, p. 216).

Nos anos seguintes (precisamente, até 1986) o Haiti veria o poder passar de François Duvalier, que, controlando o legislativo e o judiciário por meio de um regime de terror (PIERRE-CHARLES, 1990) havia logrado aprovar não apenas a presidência vitalícia como também a hereditária, para seu filho, Jean Claude Duvalier. O resultado