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CAPÍTULO 3 – VISTO, LOGO EXISTO!

3.7 Emperiquitadas

No final de uma das manhãs de observação, quando o sinal de término das aulas tocou, percebi um tumulto em frente à escola. Apressei o passo, enquanto os estudantes corriam em direção à rua. Quando cheguei perto, vi que duas garotas discutiam; não demorou muito para que cada uma delas grudasse no cabelo da outra, iniciando uma briga. Em segundos, elas estavam caídas no chão, atacando sua oponente com unhadas, mordidas, chutes e puxões de cabelo. O guarda municipal, com muita desenvoltura, conseguiu apartar a briga, para a tristeza da plateia de estudantes que formava um círculo em torno das briguentas, gritando: Porrada! Porrada!

Voltando para buscar meu material, encontrei com uma das diretoras da escola, que me confidenciou que estava muito preocupada com a mudança de atitude das estudantes. A cada ano que passava, elas ficavam mais indisciplinadas,

48 Emperiquitar é um regionalismo do Pará. Significa enfeitar-se ou trajar-se com apuro exagerado.

emperiquitadas; ainda muito jovens, vinham maquiadas e com roupas sexys para a escola, dançavam funk e provocavam os garotos e outras garotas. Segundo ela, as brigas que ocorriam no término das aulas eram quase sempre entre garotas e o motivo sempre era o mesmo: garotos.

Associei imediatamente a fala da diretora com os relatos dos estudantes que, independentemente do sexo, possuíam em suas narrativas um caráter sexista, assumindo um discurso conservador em relação à mulher e ao seu corpo, revelados nos posicionamentos frente ao estilo de roupas das meninas.

Como afirma Peter Mclaren, “(...) a escola transmite e reforça as ideologias que refletem os valores predominantes e ethos de uma estrutura social dominada pelos homens e hierarquizada e de classe média” (1997, p. 237), reproduzindo também os estereótipos que são construídos culturalmente. Em um de seus relatos, Mclaren conta que suas alunas estavam preocupadas com:

“(...) sua popularidade e poder de atração física – áreas que de longe superam as aspirações acadêmicas, uma reação contra o policiamento do corpo e as regras morais, (...) as garotas desenvolveram atributos encontrados na cultura operária em geral; dureza, sexualidade agressiva, desconfiança, da autoridade, espírito de rebelião”. (1997, p. 239).

A descrição das estudantes de Mclaren lembra-me as garotas da escola pesquisada de Curitiba. Aponto para uma mudança de postura dessas jovens que transgride o consenso escolar, os valores estéticos do feminino, a versão convencional da feminilidade, provocando admiração e reprovação entre os colegas.

Os princípios fundamentais da visão androcêntrica do mundo são naturalizados sob a forma de posições e disposições elementares do corpo que são percebidas como expressões naturais de tendências naturais. O corpo é onde as desigualdades entre os sexos são naturalizadas, como relata Gabriel:

Bom, se eu vejo uma menina na rua de calça apertada e bem pequenininha assim, um shortinho, pra mim ela é uma funkeira. Tem umas meninas que andam quase igual a gente, que eu gosto dessas meninas, prefiro elas que são skatistas também. Tipo, as funkeiras, até numa festa toca um funk, tudo bem. Pra ficar até vai, mas para namorar não.

Os jovens consideram o uso de roupas femininas curtas e justas inapropriadas ao ambiente escolar, tanto nas narrativas das garotas quanto nas dos garotos. Eles apontam que as roupas que revelam o corpo interferem na aprendizagem e/ou na aula, como afirma a estudante:

Daniela – Claro que atrapalha, elas recebem muito assédio. As meninas falam que não gostam isso e aquilo, mas eu acho que quando a pessoa está usando esse tipo de roupa ela quer ser assediada. Uma hora ou outra isso vai acabar acontecendo.

Renato – Interfere, não só a gente, mas o professor também. O professor, eu não sei, mas parece uma afronta da sociedade. É que a menina fica se exibindo. E a maioria dos meninos fica olhando. Depende da pessoa tira a concentração.

As regras de conduta corporal e estética são formas de dominação social, como princípio de atuação do poder. As narrativas dos estudantes, ao serem indagados sobre se a vestimenta interfere na escolha de possíveis namoradas, contêm posicionamentos sexistas repletos de convenções sociais, principalmente contra as garotas que assumem um papel de protagonista no domínio de seu corpo e de suas relações, como as chamadas piriguetes:

Marcos – Geralmente importa a aparência, sim, mas nem sempre é a qualidade das roupas, mas sim as qualidades dela. Mas se ela se vestisse muito piriguete, aí seria difícil.

Ademir – Acho que menina é mais ligada com a moda, acho que elas sempre estão querendo estar bem vestida. Acho que isso nãos seria problema. Pra mim o que tem importar é o que a pessoa é por dentro e não por fora. Se fosse uma menina piriguete eu nem me interessaria, por essas pessoas.

Quanto à indagação sobre se o tipo de roupa interfere na escolha dos namorados, as garotas têm um posicionamento mais flexível, mesmo que com algumas ressalvas, como demonstram seus relatos:

Ana – Se eu gostasse de verdade, não estaria nem aí. Não que interferiria, nem olho muito para a aparência. Quando gosto de uma pessoa, gosto de verdade...

Greiciane – A química é que importa (risos). Tem que ser normal calça jeans, meu pai não aceita calçudo.

Stephany – Um pouquinho. Eu não namoraria um roqueiro, porque eles usam preto, alargador e eu não gosto.

Daniela – Acho que conta, porque eu não iria querer passar a minha vida com uma pessoa que se veste mal, uma pessoa que não se cuida. Para a pessoa estar bonita, ela não precisa estar na moda, precisa se cuidar, se gostar, não precisa estar na moda, precisa estar com uma aparência boa.

Para os estudantes “ficar” é essencialmente beijar, ato este que, por mais proibido que seja no interior da escola, é regularmente praticado por muitos jovens. Observei os casais, nos horários dos recreios, nos intervalos das aulas; e o local preferido para os encontros era atrás do ginásio de esportes. Mesmo sob o olhar atento das inspetoras, os alunos sempre arranjavam um jeitinho de burlar as regras. Mas, se os limites dos muros da escola eram demasiadamente coercitivos, os jovens se encontravam nas redondezas, depois da saída das aulas. Era comum ver garotos e garotas abraçados próximos dos muros da vizinhança e nos pontos de ônibus.

A prática do “ficar” não deixa de ser atravessada por processos de diferenciação entre os gêneros, principalmente no modo pelo qual garotos e garotas encaram as distinções e as preferências entre “namorar” e “ficar”. Sendo praticamente unânime entre as garotas a preferência por namorar, elas encaram o “ficar” como uma experimentação, conforme me confidenciou Greiciane: – Ficar é bom, porque vai que a gente começa a namorar e não rola química, o beijo não é bom, daí não dá!

O “ficar” traduz os envolvimentos afetivos na pós-modernidade, compreende uma prática caracterizada pela instantaneidade, em seu traço efêmero e seriado, em intensidade volátil. O “ficar” assume a condição de performance, arma corporal, descarga rápida de emoções e de maturidade entre os estudantes.