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2 O PROBLEMA DA INVESTIGAÇÃO E OS APONTAMENTOS DO PROJETO

3.1 O EMPIRISMO CONSTRUTIVO

Concernente ao segundo período (1980-1993), foi justamente aqui o momento em que van Fraassen publicou A Imagem Científica. Obra esta que se tornou um clássico da filosofia da ciência por apresentar uma alternativa antirrealista, o empirismo construtivo, ao realismo científico, sem incidir nos mesmos equívocos do empirismo lógico, porém ao mesmo tempo o empirismo construtivo seria o herdeiro desta tradição, em razão da crítica à metafísica na filosofia da ciência. Demais disso, sabidamente o referido texto projetou o debate entre realismo e antirrealismo na década de 80, após o enfraquecimento das discussões entre o falseacionismo de Popper, e seus seguidores, e a teoria da ciência historicamente orientada de Kuhn.

Pois bem, o empirismo construtivo tenciona apresentar sua versão do que seria o objetivo da ciência, neste particular, seria que a ciência busca teorias empiricamente adequadas. Também o empirismo construtivo almeja dar uma explicação para o sucesso da ciência. Sobre isso, van Fraassen inicialmente advogava uma espécie de darwinismo epistemológico, no qual apenas as melhores teorias sobrevivem em uma competição impiedosa. Depois, o filósofo canadense desistiu dessa ideia, uma vez que tal solução não seria uma resposta positiva para o problema do sucesso da ciência, porque esse darwinismo epistemológico trivializa a especificidade do problema. Por outro lado, é sabido que esta questão do sucesso foi bem defendida pelos realistas científicos. Então, van Fraassen posteriormente sustenta que as teorias empiricamente adequadas são um sinal claro do sucesso da ciência, de maneira que essa é uma resposta positiva para o problema do sucesso.

Demais disso, no bojo do tema da escolha das teorias na ciência, outro ponto fundamental é o problema da subdeterminação. Aqui que o empirismo construtivo destaca-se, uma vez que neste a crença envolvida na aceitação de uma teoria é só a crença em sua adequação empírica, quer dizer, o empirista construtivo compromete-se só com a crença de

que os fenômenos observáveis sejam descritos conforme um conjunto de modelos semânticos. Desse modo, no caso de teorias empiricamente equivalentes, cujas ontologias podem ser distintas, não precisamos nos comprometer com as entidades postuladas pelas teorias, dado que podemos aceitar uma teoria por suas virtudes pragmáticas.

Ora, o argumento em defesa da pragmática para o tema da subdeterminação em van Fraassen é um sério desafio para os realistas, uma vez que estes, para dar conta da subdeterminação, recorrem a certa base epistêmica, isto é, a crença de que as teorias possam ser verdadeiras ou aproximadamente verdadeiras, e que podemos aceitar as ontologias dessas teorias. Portanto, fica claro que apelar para algum conjunto de crenças para resolver a subdeterminação pode gerar um impasse insolúvel para o realista, ao passo que lançar mão de elementos não epistêmicos, como no caso das virtudes pragmáticas, é uma resposta positiva para a subdeterminação.

A propósito disso, van Fraassen afirma que o poder explicativo de uma teoria científica não é o critério definitivo e absoluto para a escolha de teorias, a saber, o realismo científico advoga que a capacidade explicativa de uma teoria científica é uma virtude epistêmica, por isso que um dos objetivos da ciência seria dar explicações. No entanto, o antirrealista propõe que a explicação é uma virtude pragmática, já que depende do contexto, e igualmente o antirrealista rechaça a noção de que a explicação implica crença, em especial em entidades inobserváveis.

Isso significa que van Fraassen concebe a explicação como uma relação entre teoria, fato, e contexto, de sorte que uma explicação pode ser boa num contexto, mas não noutro. Dito de outro modo, para o filósofo canadense, a explicação científica está no âmbito da pragmática e das ciências aplicadas, mas não no campo da semântica e das ciências puras, cuja tarefa, conforme o empirismo construtivo, é de elaborar modelos. Por consequência, van Fraassen alega que o poder explicativo de uma teoria não pode ser uma razão para se crer nela (virtude epistêmica), tal como pensam os realistas. Mas sim a explicação é o resultado da aplicação da teoria a certo contexto.

À guisa de síntese, o empirismo construtivo estabelece que o objetivo da ciência é buscar e construir teorias empiricamente adequadas. Às avessas com o positivismo lógico, o empirismo construtivo recomenda uma interpretação literal das teorias científicas, não uma reconstrução racional das teorias em uma linguagem formalizada, tal como pregava o empirismo lógico. Ademais, em oposição ao realismo científico, o empirismo construtivo interpreta as teorias científicas de maneira que essas não precisam ser verdadeiras ou falsas para serem aceitas, porém apenas que as teorias sejam empiricamente adequadas ou

informativas sobre o mundo observável. Em outras palavras, para van Fraassen, uma descrição satisfatória do que é a ciência, conforme o empirismo construtivo, reside no fato de esta ‘salvar os fenômenos’, i.e., uma teoria “possui pelo menos um modelo tal que todos os fenômenos reais a ele se ajustam.” (VAN FRAASSEN, 2007a, p. 34; 1980a, p. 12).

Exposto isso, podemos delimitar o empirismo construtivo de acordo com os seguintes tópicos, que são centrais para uma caracterização mais precisa da referida teoria da ciência, e ao mesmo tempo, tais tópicos servirão como índices para nossa posterior exposição nos capítulos seguintes, ou seja, a revisitação do empirismo construtivo. Com efeito, (i) as questões em torno do conceito de adequação empírica: a noção de verdade subjacente a esta, a abordagem semântica e os modelos semânticos, a equivalência empírica das teorias, e o problema da subdeterminação e do sucesso; (ii) as questões a respeito da observabilidade: os seus limites gerais e específicos, a relação com a comunidade epistêmica e as consequências epistemológicas disso, e a (possível) tensão entre um naturalismo tópico e o pragmatismo concernente à defesa da distinção entre observável e inobservável; (iii) a distinção entre crença e aceitação, em especial, a separação entre virtudes epistêmicas e pragmáticas, e a teoria contextual da explicação, cujas consequências epistemológicas são bastante relevantes.

A título de esclarecimento, os trabalhos de Bueno (1999a) e de Dutra (1993) – referências obrigatórias na literatura nacional acerca de van Fraassen, especialmente no empirismo construtivo54 - serão, por isso, referências constantes e ambos os autores serão interlocutores privilegiados na nossa investigação. De sorte que tais autores versam sobre os referidos temas, ou seja, no tocante ao tópico (i), Dutra (1993, p. 204) trata de examinar pormenorizadamente o problema da subdeterminação das teorias pelas evidências, de forma que seu parecer é favorável ao empirismo construtivo, nesse particular, uma vez que este soube explorar muito bem a subdeterminação em benefício de defesa consistente de uma alternativa antirrealista ao realismo científico. Por outro lado, Dutra (1993) avalia que van Fraassen não apresenta uma resposta satisfatória - em seu chamado ‘darwinismo

54 Não podemos deixar de mencionar, sob pena de grave falta, os trabalhos de Caetano Ernesto Plastino e de

Marcos Rodrigues da Silva, em função de ambos tratarem com profundidade o empirismo construtivo, o debate entre realismo e antirrealismo, e a relação entre a tradição empirista e a teoria da ciência de van Fraassen. Portanto, vide PLASTINO, Caetano Ernesto. Realismo e Anti-realismo acerca da Ciência: Considerações Filosóficas sobre o Valor Cognitivo da Ciência. 1995. Tese (Doutorado em Filosofia) - Universidade de São Paulo, Departamento de Filosofia, São Paulo, 1995. E SILVA, Marcos Rodrigues da. Breve jornada empirismo

adentro. 2003. 244 f. Tese (Doutorado em Filosofia) - Universidade de São Paulo, Departamento de Filosofia,

epistemológico’ (VAN FRAASSEN, 2007a, p. 80-81; 1980a, p. 39-40) - para o ‘argumento do sucesso’55

, que foi defendido às últimas consequências pelos realistas científicos.

Contudo, van Fraassen alegou há pouco que os principais argumentos antirrealistas – a subdeterminação e a metaindução pessimista, sendo que este foi sustentado, em particular, por Laudan – não poderiam ser relacionados de modo apropriado com o empirismo construtivo. A saber, “estou muito orgulhoso de nunca ter contado com a assim chamada Indução Pessimista, nem com o Argumento da Subdeterminação - embora o primeiro algumas vezes fosse equivocadamente associado com [o empirismo construtivo].” (VAN FRAASSEN, 2007b, p. 347, tradução nossa). Posto isso, chamamos a atenção para o seguinte ponto, ora, como mostra Dutra (1993), uma das grandes virtudes do empirismo construtivo de van Fraassen, em face do realismo científico de Boyd reside, grosso modo, na articulação original que o filósofo canadense granjeou através do argumento da subdeterminação. Dessa maneira, pensamos que essa declaração recente de van Fraassen pode colocar em risco um dos aspectos mais fortes do empirismo construtivo56.

3.2 O EMPIRISMO COMO ATITUDE E A EPISTEMOLOGIA VOLUNTARISTA

Em princípio, convém destacar que a relação entre empirismo construtivo e empirismo como atitude. Assim, van Fraassen reconheceu recentemente que foi um erro grave propor primeiro, em A Imagem Científica (1980), uma visão empirista da ciência sem caracterizar o que é o empirismo. Pois em termos cronológicos, o empirismo entendido como atitude - que é a resposta dada por van Fraassen acerca do que seria o empirismo - só foi exposto de maneira mais completa em The Empirical Stance (2002). Embora o autor já tivesse começado a elaborar a concepção de ‘atitude empírica’ (empirical stance) a partir dos artigos Against Transcendental Empiricism (1994b) e Against Naturalized Epistemology (1995).

Exposto isso, a atitude empírica ou empirismo como atitude procuram responder os já citados temas da racionalidade da opinião e a mudança de opinião. Então, van Fraassen (2002a), antes de definir o seu empirismo, recorre à história da tradição empirista, cujo traço distintivo para o filósofo, em relação a outras correntes filosóficas, é a revolta recorrente

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Ou também denominado de ‘argumento do milagre’. Concisamente, este pode ser expresso na afirmação de que o realismo científico é a única solução aceitável para o fato de a ciência ser bem-sucedida em suas explicações e predições. Em outras palavras, seria um legítimo milagre se as teorias científicas fossem instrumentalmente confiáveis, caso não fossem verdadeiras ou aproximadamente verdadeiras. Veja-se Dutra (1993, p. 11-12). Também vide Bueno (1999a, p. 200-218).

56 Sobre tal tema candente, indicamos a leitura de Dutra (1993), van Dyck (2007), Bird (2007), e a posição atual