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Emprestando cultura: o decalque semântico

2.3 NEOLOGISMOS: ASPECTOS GERAIS

2.3.2 Emprestando cultura: o decalque semântico

Assim como a variação cultural da metáfora ocorre nos níveis in- tracultural e intercultural, também os neologismos semânticos refletem a variação interna de uma língua – extensões de sentido, transferências de um vocabulário específico para outro, generalizações, gírias, etc. – e a variação entre duas línguas. O decalque semântico ou empréstimo se- mântico é um tipo de empréstimo que produz um neologismo semântico a partir da transferência de um sema estrangeiro, de caráter figurado, que passa a compor nova acepção em uma unidade lexical já existente na língua que o recebe (CAPUZ, 2005). Como um caso de neologia semântica, o decalque semântico altera as funções e o significado de uma palavra já existente na língua. Os decalques semânticos refletem o movimento de troca entre culturas linguísticas diferentes e requer a exis- tência de uma semelhança conceptual prévia entre os significados bási- cos ou literais das palavras em relação (CAPUZ, 2005, p.43). Um dos significados adicionais da unidade lexical estrangeira – geralmente a acepção figurada – passa ao seu equivalente conceptual na língua recep- tora. Segundo Capuz (2005, p.51), pode-se considerar esse tipo de neo- logismo como “metáforas emprestadas”. Por exemplo, a palavra latina “casus” e a palavra grega “ptosis” tinham o valor de “caído”. Por in- fluência do sentido extra de “ptosis” significando “caso gramatical”, a palavra latina “casus” recebeu o significado de “caso gramatical”. Os exemplos mais recentes provêm, em boa parte, da língua inglesa, que, como vimos, é principalmente da onde as culturas ocidentais recebem nomenclaturas para novas ferramentas e novos conhecimentos. Por exemplo: do inglês, “mouse”, no sentido de (1) pequeno roedor e (2) peça de informática, adicionou-se, no espanhol, a “ratón”, que tinha o sentido de (1) pequeno roedor, o sentido correspondente a (2) “peça de informática”. São vários os exemplos dessa natureza no vocabulário da informática, como “arquivo”, “janela”, “ferramentas”, “baixar”.

Dado que a única novidade é a nova acepção, é preciso identificar se a procedência do novo sentido é via modelo estrangeiro ou se é caso de polissemia interna, o que não é tarefa fácil. A estratégia para a com- preensão do mecanismo é a análise da “distância semântica” (CAPUZ, 2005, p.44) entre o significado tradicional e o novo. Em outras palavras,

é preciso verificar se a mudança de sentido é gradual e lógica ou se é extrema e incompatível. Sob a ótica da semântica cognitiva, vemos que a natureza de tais transações precisa ser analisada dentro de uma pers- pectiva de modelos cognitivos idealizados ou de frames. No caso do verbo “ignorar”, que recebeu de seu correlato inglês “to ignore” o senti- do de “não fazer caso”, adicionado ao sentido básico de “não saber”, a identificação do modelo conceptual de cada língua pode revelar áreas em comum que permitem a transferência do sentido.

O empréstimo semântico é bastante comum em áreas de bilin- guismo e quando há grande interferência linguística por questões co- merciais e/ou culturais entre povos de línguas diferentes. Atualmente a força política, econômica e cultural dos Estados Unidos sobre os outros países constitui um fator de influência linguística que faz com que o empréstimo semântico seja algo bastante comum, como no caso, por exemplo, da influência das traduções e/ou as dublagens do material cultural americano, que chega a outras línguas em grande quantidade e de maneira muito veloz:

[...] através dos anglicismos semânticos a cultura norte-americana nos transmite valores, nuances e atitudes da vida capitalista e urbana moderna re- presentada pelo “modo de vida americano” (CA- PUZ, 2005, p. 45, tradução nossa).6

No caso de línguas aparentadas, o candidato a empréstimo se- mântico pode apresentar semelhança formal e semântica, e nas línguas não aparentadas, a semelhança pode ser apenas entre os sentidos literais do sema. A palavra “peça”, por exemplo, é semelhante entre as línguas românicas como espanhol (pieza), francês (piece) e português (peça) e elas possuem um significado literal em comum, no sentido de “parte que compõe um artefato”. Com a influência da França nas artes no século XIX e no início do século XX, essa palavra recebeu nessas línguas uma segunda acepção, originada na França, para peça como “obra literária ou musical”. Cabe ressaltar que o empréstimo semântico de palavras com semelhança formal e diferenças semânticas pode criar “falsos amigos” ou “falsos cognatos” (DURÃO et al, 2014, p.19-20).

6 No original: “[...] a través de los anglicismos semânticos la cultura norteamericana nos transmite los valores, matices y actitudes de la vida capitalista y urbana moderna representada por el “modo de vida americano”.

Muitas vezes a chamada “distancia semântica” entre o conceito recebido do modelo estrangeiro e aquele original da língua é pequena a ponto de parecer um caso de evolução interna, tanto que alguns autores chamam esses casos de “polissemia por empréstimo” (CAPUZ, 2005, p.49), porque o resultado é precisamente uma polissemia induzida pelo modelo estrangeiro. São exemplos o conceito de “heróis e vilões” como correlatos antagônicos por conta da influência da televisão norte- americana; “vegetais” no sentido de “verduras e legumes” (para além do sentido básico de seres vivos não animados). E, por outro lado, também há casos em que a grande “distância semântica” verificada entre o con- ceito emprestado do modelo estrangeiro e o conceito de origem da lín- gua receptora podem ser incompatíveis. Por exemplo, dos empréstimos semânticos originados de anglicismos, o conceito de “América” no sen- tido de “continente americano” rivaliza com o conceito de “América” no sentido de “Estados Unidos”; o conceito de “inteligência” no sentido de “capacidade de aprender” opõe-se a “inteligência” significando “serviço de espionagem”; o adjetivo “agressivo” como “violento” não se funde com o sentido de “agressivo” como “empreendedor”. Vemos que, da mesma forma que os outros neologismos, os empréstimos semânticos podem passar por transformações, organizando-se em famílias e espa- lhando o saber novo para outras classes de palavras, como no exemplo de “América” como referência aos Estados Unidos: “americanizar-se” e “americanização” são conceitos relacionados ao modo de vida norte- americano.

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