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O trabalho de luto consiste menos em afastar o morto (matá-lo definitivamente; um indivíduo só está morto quando é completamente esquecido) do que em tentar fazê-lo (sobre)viver em imagem.

Louis-Vincent Thomas260

A morte de um homem deixa traços. Um corpo, restos, cinzas; nome, fotografias, objetos; espaços esvaziados; os sobreviventes. Do desaparecimento de um sujeito, outra história começa: a história das coisas, desses restos deixados, inventados, imaginados. Paul Auster reflete sobre o processo de arrumar a casa do pai, que acaba de morrer:

Não há nada mais terrível, aprendi então, do que ter de encarar objetos de um morto. Coisas são inertes: só têm sentido em função da vida que faz uso delas. Quando essa vida termina, as coisas mudam, embora permaneçam iguais. Estão ali e no entanto não estão mais: fantasmas tangíveis, condenados a sobreviver em um mundo ao qual já não pertencem. O que se pode pensar, por exemplo, de um armário cheio de roupas silenciosamente à espera de serem usadas de novo por um homem que não virá mais abrir a porta? (...) Há nisso uma comoção, e também uma espécie de horror. Em si mesmas, as coisas nada significam, como os utensílios de cozinha de alguma civilização desaparecida. E no entanto elas ainda nos dizem algo, dispostas ali não como objetos mas como vestígios do pensamento, da consciência, emblemas da solidão em que um homem toma decisões sobre si mesmo (...).261

Os objetos do morto possuem uma vida própria e particular, instaurada, paradoxalmente, pela morte. Na ausência da pessoa, os objetos que lhe constituíam o cotidiano – roupas, sapatos, acessórios, brinquedos, utensílios – tornam-se o vestígio de sua passagem, algo que confirma, em materiais tangíveis, que ela esteve ali. Esses objetos, tais como relíquias de segundo e terceiro graus262, transformam-se imediatamente em objetos sacros, consagrados de forma espontânea no instante mesmo da morte do sujeito.

Um soldado morre em batalha. Ele está longe de casa. Enterrado em um cemitério local, seu túmulo é fotografado e a imagem é enviada à família, com os dados de onde encontrá-lo. Assim, o homem morto, ainda que sem corpo visível, possui um lugar preciso. Os dados e a fotografia marcam a localização desse corpo, instaurada pela morte e pela imagem. Mas outro

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“Le travail du deuil consiste moins à mettre à l’écart le mort (le tuer définitivement; un sujet n’est mort que s’il est complètement oublié) qu’à tenter de le faire (sur)vivre en image.” THOMAS. La mort en question, p. 511. 261 AUSTER. A invenção da solidão, p. 17.

262 Classificação criada pela igreja católica, para a qual existem três tipos de relíquias: as de primeiro grau (o corpo ou parte dele – ossos, unhas, cabelos); as de segundo grau (objetos pessoais, roupas); e as de terceiro grau (coisas que tocaram momentaneamente o corpo: tecido, pedra, caixão).

elemento torna-se também a potência do novo corpo: trata-se da placa de identificação que ele usara durante a guerra e, portanto, no instante de sua morte, que, para além de um artigo pessoal, estava em contato direto com o corpo vivo. De um homem morto, restaram: a fotografia de sua sepultura e um pequeno objeto, elementos que tomam, agora, a forma de um novo corpo, animado e presentificado para a constituição desse rastro físico e visível do soldado desaparecido.

Fig. 121 - WWI Grave registration card & dog tags of british medic killed in France, 1915 [The Burns Archive].

Uma fotografia do século XIX guarda um menino, morto ainda criança, que não completara sequer os seus cinco anos de idade. Richard Nicholls Millinken era o terceiro filho da família e jamais havia posado para um retrato fotográfico. Depois de sua morte, no desejo de uma recordação tangível, sua tia Anne escolhera um de seus objetos – um chapéu –, mandando-lhe gravar uma inscrição com nome, datas de nascimento e morte, e o fez fotografar. O menino está brutalmente ausente da imagem, mas na pequena sombra que faz o chapéu, onde falta o menino, algo dele reaparece, convocado pelo nome, pelas datas, pelo objeto agora sem sua função prática, pela memória amorosa. O que chama particularmente a atenção é o gesto mesmo de fazer fotografar o chapéu quando ele poderia, simplesmente, ter sido destacado, por exemplo, como uma peça especial em um pedestal familiar. O chapéu, com suas inscrições post-mortem, objeto tangível e real, que foi de fato usado pelo menino, tocado por ele, teria sido o lugar ideal da reinvenção de seu corpo. Talvez, sim, ele tenha sido parte de um altar de

objetos especiais, para além da fotografia que lhe fora feita. E a ela, à imagem, talvez tivesse sido confiado o poder mágico de tornar novamente presente, na multiplicação dos objetos ligados ao menino. Mas resta a ironia da fotografia que, guardando a imagem do objeto, afasta-o, e torna o menino, uma vez mais, ausente.

Fig. 122 - Lupson, In affectionate remembrance, carte-de-visite, Inglaterra, déc.1860 [Paul Frecker Collection].

É curioso notar a força dos objetos de um morto, especialmente quando voltamos a pensar no cadáver como aquela ambiguidade inconciliável entre sujeito e objeto. O cadáver, ele mesmo, é também uma espécie de objeto do morto, algo que dele sobra. Se pudesse ser guardado, resguardado, emoldurado, possivelmente seria ele, o corpo – ao invés de placas de identificação, chapéus, roupas, acessórios, fotografias –, que estaria ali, na proximidade do vivo. Mas ele precisa desaparecer. David Le Breton, pensando sobre o horror que seria ver o ente querido em decomposição, fala que somos protegidos disso – e de sua imaginação – ao ver corpos e rostos ainda numa ordem de semelhança muito próxima do vivo:

Em nossas sociedades, o apodrecimento do corpo, quando acessível ao olhar, é algo impensável, pois dissipa todas as significações, deixando apenas a física dos elementos orgânicos (...). A sepultura ou a cremação são a preservação simbólica que protege as famílias do inominável, e torna passível de pensamento o desaparecimento do defunto.263

263 “Dans nos sociétés le pourrissement du corps, s’il est accessible au regard, est un impensable car il dissipe toutes les significations, ne laissant que la physique des éléments organiques (...). La sépulture ou la crémation sont la sauvegarde symbolique qui protège les familles de l’innommable et rend pensable la disparition du défunt.” LE BRETON. Liminalités du cadavre: quelques réflexions anthropologiques, p. 42.

Algumas culturas têm uma relação de maior proximidade com a transformação do cadáver, assistindo, de forma ritual, à sua decomposição.264 Mas a nossa, certamente, não suportaria esse espetáculo. Ver o morto inteiro – reconhecível como humano – é essencial para o nosso imaginário, porque ali somos capazes de ver, ainda, a pessoa. Diante de um resto decomposto, não há pessoa. É interessante observar que mesmo as cinzas provenientes da cremação podem guardar uma proximidade com essa concepção de pessoa, já que, estando tão transformada, a identificação não passa mais pela semelhança, torna-se uma espécie de fé, de um contrato firmado com o nosso imaginário de que um rastro ainda está ali. Mas um cadáver em decomposição, entre o que lhe era humano e o que é pura matéria orgânica, parece-nos a verdadeira cena de horror; a desfiguração, a desumanização. Quem amamos não se decompõe.

Partimos, então, para uma outra ordem de imagens, fotografias de cadáveres onde o que se deseja fotografar é a pessoa. Gestos familiares e amorosos trouxeram esses corpos para diante do dispositivo fotográfico, que lhes respondeu a demanda de guardar o ser amado. A fotografia participa, portanto, como uma das etapas de despedida do corpo original, inventando, de agora em diante, um outro corpo. Fazer a imagem de um cadáver – mas ainda em sua potência de vivo, com os traços e a semelhança do vivo – é manter-lhe imóvel neste ponto do processo: tornando o cadáver estático, ele não perecerá. Fotografar o corpo na latência de sua perda é instituir-lhe um lugar preciso onde ele permanece.

Pensemos no morto, esse corpo que é feito da mesma matéria que em vida, porém, imobilizado. O tempo continua a nele atuar, em decomposição, como também continua em nós, os vivos, em vida. Só a imagem permanece estática. Fotografar o morto é, portanto, uma interrupção do apagamento da pessoa, instância que, perdendo-se progressivamente na imagem do cadáver, parece retornar na fotografia. Nas imagens a seguir, duas crianças estão como que adormecidas, em ambientes familiares e afetuosos. Na primeira, a criança tem os sapatinhos e as meias ao lado do corpo, como se há pouco os tivesse tirado para descansar no sofá. Rosto sereno, mãos colocadas sobre o peito, sobre o ventre, ela mergulha numa imensidão branca, de onde emerge delicadamente o pequeno corpo. A criança ao lado também

264 “[Nos Dayaks de Bornéu] convém passar ao rito definitivo, que libera o morto dos vivos, apenas depois que a carne encontra-se completamente decomposta. Esse tempo de degradação do cadáver é perigoso para o morto e para os vivos, e certos ritualismos procuram conter as ameaças. (...) A dessecação do cadáver altera radicalmente seu papel, já que a partir de então ele não se encontra mais infestado pela imundície; o segundo funeral finalmente o afasta dos vivos, desta vez ele está morto e se reúne à ‘sociedade invisível dos ancestrais’, e os enlutados retomam sua vida ordinária.” LE BRETON. Liminalités du cadavre: quelques réflexions anthropologiques, p. 40.

dorme, depois de beber leite na mamadeira que escorregara da boca no momento do sono. Um travesseiro macio e uma colcha xadrez produzem uma cena de conforto familiar; ela dorme profundamente. Nas duas cenas, os objetos das crianças participam com elas da última imagem, do último momento em que tiveram uma função – ainda que ficcional – ligada ao corpo. Todos estão sem vida na imagem: crianças e objetos; mas a própria fotografia, curiosamente, é a que lhes restitui vida e função, como se de fato víssemos a encenação do vivo na imagem. Mas nada resta: as crianças estão mortas e a fotografia é uma ficção.

Fig. 123 - J. T. Simms, Empty Shoes, EUA, c.1890 [Thanatos Archive]; Fig. 124 - Child on couch posed with milk bottle that may have killed her, carte-de-visite, EUA, c.1874 [The Burns Archive].

A morte do outro (só o outro morre, não vivemos a experiência de nossa própria morte) – pensando em seu caráter de fazer desaparecer o sujeito – é uma experiência desestruturadora da concepção que temos da pessoa. Resta um corpo. Ele está ali, presente, mas não responde às nossas ações sobre ele. É tangível, é material; beijo-lhe, toco-lhe; ele não responde. O corpo, a pele, esse lugar de relação, ainda serve como um meio de contato, mas ele não recebe o gesto. O gesto parte do vivo e a ele volta. Não há resposta. Nada mais estrangeiro do que a presença-ausência de um cadáver. Para os antropólogos, os ritos funerários constituem um lugar de re-presentação do morto para que a ideia e imagem do cadáver sejam suportáveis.265 Isso significa que o vivo procede às suas ritualizações sagradas em direção ao morto como uma alternativa de reinventar o corpo morto, constituí-lo de outra matéria que não o vazio absoluto que se apresenta na forma do cadáver. Segundo Louis-Vincent Thomas, no plano do real, nada seria mais natural do que um corpo morto, objeto neutro submetido às leis da bioquímica, sofrendo as transformações da matéria orgânica, como a putrefação e a mineralização. Contudo, para que possa persistir algo da pessoa após o encontro com o nada,

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“O cadáver é esta apresentação do limite, e a ritualidade consiste na possibilidade de uma representação do insuportável.” BAUDRY. Devant le cadavre, p. 6.

(...) o imaginário se dedica a construir um sistema simbólico mais confortável, a fim de amenizar a falta pela reintegração da morte na vida. Longe de ser nulo, o corpo morto, enquanto objeto sociocultural, torna-se então o suporte positivo de um culto para os vivos. Através dos ritos e das crenças, as práticas funerárias ambicionam, de fato, abolir a perturbação e reparar a desordem provocadas pela intrusão da morte. Essas práticas constituem, de certo modo, uma tentativa desesperada de atenuar a morte, ultrapassá-la e, no final das contas, negá-la.266

A fotografia post-mortem é também parte desses ritos, colocar o morto diante da câmera é dar-lhe, ainda, um lugar preciso e visível. É mostrar-lhe, dar-lhe um gesto, uma ação, um rosto. Mas, se o cadáver é o insuportável, seu registro – a fotografia – não seria também dessa mesma ordem? Porém, há algo que acontece na fotografia mortuária que parece fazer, de uma estranha forma, o tempo retroceder. De repente, o que vemos não é mais o cadáver. A fotografia o transforma novamente em pessoa, ela mostra seus traços, seu rosto, devolve algo ao homem morto, identidade e pertencimento a um meio social e familiar determinado.

Fig. 125 - Sisters, double post-mortem, ambrótipo, c.1860 [Thanatos Archive].

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“(...) l’imaginaire s’applique à construire une symbolique plus confortable afin de pallier les manques en réintégrant la mort dans la vie. Loin d’être rien, le corps morts, en tant qu’objet socio-culturel devient donc le support positif d’un culte qui sert les vivants. Par le biais des rites et des croyances, les pratiques funéraires visent en effet à conjurer le désarroi et à réparer le désordre que l’intrusion de la mort a provoqués. Elles constituent en quelque sorte une tentative désespérée de pallier la mort, de la dépasser, somme toute, de la nier.” THOMAS. Rites de mort, p. 120.

Duas meninas estão mortas, repetem a cena, o mesmo lugar. Aparentemente são irmãs, podem ter morrido da mesma doença, na proximidade dos dias. Seus corpos ocuparam o sofá de casa para a última imagem e, agora, os corpos fotográficos preenchem os espaços emoldurados do pequeno estojo. Corpos unidos na morte, na repetição da imagem dentro do dispositivo que os guarda, ligados pela dobradiça da caixa, inalteráveis, perpétuos. Elas dormem.

O sono foi sempre uma das representações mais comuns da morte. Segundo Philippe Ariès, “acreditava-se que os mortos dormiam. Essa crença é antiga e constante.”267 Podemos facilmente identificar essa concepção pela habitual expressão descanse em paz, como se, de fato, a morte não tratasse de um fim absoluto, mas de um sono, o maior dos sonos, o repouso eterno. É ainda Ariès quem dirá: “até os nossos dias, as orações pela intenção dos defuntos serão ditas pelo repouso das almas. O repouso é, ao mesmo tempo, a imagem mais antiga, mais popular e mais constante do além.”268 O mito da ressurreição da carne para os cristãos, sono que será despertado no dia do Juízo Final, é o de uma imortalidade; portanto, a recusa da morte. O corpo que dorme não está morto. Segundo Audrey Linkman, a representação do sono revela também uma instância íntima e familiar, pois “ele acontece dentro do ambiente protegido e seguro da casa e da família. Ao contrário dele, a morte é um mistério além da esfera do conhecimento humano.”269 A imagem de alguém adormecido fala, portanto, de uma intimidade, de um estado privado do corpo, e de uma vida em ligeira suspensão.

Fig. 126 - Southworth & Hawes, Post-mortem, unidentified young girl, daguerreótipo, EUA, c.1850 [George Eastman House]; Fig. 127 - Fotografía Rodríguez, Gabriel Rodríguez, Colômbia, 1908 [Biblioteca Pública Piloto, Medellín].

267 ARIÈS. O homem diante da morte, p. 25. 268 ARIÈS. O homem diante da morte, p. 27. 269

“(...) it takes place within the safe, protected environment of the home and family. Unlike sleep, death is a mystery beyond the sphere of human knowledge.” LINKMAN. Photography and death, p. 21.