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Encenação de Julia Rodrigues

4 O LIMIAR ENTRE LITERATURA E ENCENAÇÃO

4.3 Encenação de Julia Rodrigues

O espetáculo apresentado por Júlia Rodrigues apreendeu o texto por uma via pessoal utilizando o elemento literário de forma mais ativa. A textualidade escrita é interpretada em uma relação, ao mesmo tempo, dramática, épica e lírica na interpretação das atrizes.

Aqui já cabe demonstrar como sua opção de elenco afeta toda a obra cênica e como “deslê” a narrativa. Sua cena utiliza duas atrizes, reduzindo a importância do elemento masculino que o conto propõe gramaticalmente e ao mesmo tempo apropria-se do texto por um sentido original. As atrizes transformam-se em narradoras, tomando para si o ponto de vista do personagem-narrador que observa alguém correndo. Esse deslocamento de “voz narrativa” traz significados novos que poderiam passar despercebidos por leituras apressadas.

Inicialmente o conto refere sua narração a primeira pessoa do plural: nós. Diferente da terceira pessoa que pode receber claramente um gênero, o “nós” abriria espaço para que a narração fosse contada por um ponto de vista feminino, ou pelo menos de um feminino junto a um masculino, relativizando a voz narradora, tornando-a quase impessoal. Um recurso que permite convidar o leitor, quem quer que seja, a participar dos eventos que o texto conta.

Não se esquece, no entanto, que existe uma palavra que denuncia o aspecto feminino como improvável, ou pelo menos não poderia ser entendido como uma confidência entre duas mulheres. Um dos adjetivos utilizados no texto é voltado para o gênero masculino, tornando fundamental pensar que a narração é executada por pelo menos um homem: “não temos o direito de estar cansados” (Sem grifo no original).

Este elemento precisa ser discutido, porque é uma das chaves da transformação do texto em espetáculo. A diretora poderia ter deixado a narração impessoal fazendo com que as atrizes tornassem a plateia cúmplice do que

acontecia, ninguém estranharia se elas utilizassem a palavra no masculino, contudo, não foi assim que se procedeu. As atrizes transformaram a palavra no feminino: “não temos o direito de estar cansadas”.

A literatura de Kafka não se caracteriza pela exploração de personagens femininas. Na verdade, as mulheres que aparecem em seus livros caracterizam-se por relações que vão da lascívia desmesurada até quase sadomasoquismo, como a secretária Leni em “O Processo” e Clara em “América”. Por outro lado, também se pode citar um texto como “A Metamorfose”, em que a irmã de Gregor Samsa, Grete, não se insere no contexto anterior, mas ela acaba sendo tratada com uma bondade quase impotente em relação ao irmão. O que interessa afirmar é que o feminino não é um dos objetos privilegiados da prosa do autor. Seus protagonistas são geralmente homens ou animais, mas sempre se usa um ponto de vista masculino para apresentá-los. Não se deseja fazer uma crítica feminista sobre o autor tcheco, mas mostrar como a leitura da encenadora pode transformar o texto cenicamente, de uma forma que seria inesperada até mesmo para o próprio autor.

Talvez este seja o grande desvio que coordene as demais relações entre obra literária e cena, a feminilização do texto. A narração feita não por uma, mas por duas mulheres altera violentamente o seu significado. As mulheres tornam-se testemunhas de uma corrida, seus olhares funcionam em conjunto, conduzindo o espectador a imaginar o que acontece em um palco vazio. As duas vozes femininas transformam a efemeridade tematizada no conto em um evento absolutamente singular.

O texto literário é utilizado dentro da encenação, mesclando características narrativas e intersubjetivas. O conto é desmembrado em diversos fragmentos, e esse deslocamento cria novas instâncias de sentido. São ao mesmo tempo narradoras, mas usam o texto de forma dramática como falas entre si. Contam a história da corrida, mas em alguns momentos trocam não apenas a palavra, mas olhares confidentes, criando a sensação de que falam uma para a outra, além de falar com o público.

Mais interessante é que no conjunto do espetáculo nem o elemento narrativo, nem o elemento épico tem prevalência em sua identidade. A fragmentação do texto em duas vozes parece ferir o nexo lógico do conto, não o suficiente para que se perca sua estrutura, mas ainda assim faltando elementos de subordinação entre as frases. O texto flutuou nas bocas das atrizes, principalmente porque seus

corpos combinavam imagens quase abstratas, quase concretas. A sensação oferecida para a cena parece o derramamento interior de versos, tangenciando o sentimento obtido na leitura de um poema. O resultado desta alquimia não é uma desordem de linguagens, mas uma cena lírica.

Para Emil Staiger, som e imagem são, em sua origem, “enigmaticamente uma só coisa”(1993, p. 21); a ligação destes dois elemento não pode ser dissolvida na obtenção de um poema. De alguma maneira, a diretora transmutou o conto em uma encenação em que o texto ficou conectado no uso do espaço e do tempo pelas atrizes. Não se pode dizer que o espetáculo tenha o exato efeito da leitura de um poema preconizado por Staiger, mas sem dúvida que a cena apresenta-se mais como clima do que como uma tensão ou um conto narrado. Principalmente porque a diretora não apresentou nenhuma música senão o movimento dos corpos do seu elenco aliado a recitação entrecortada do texto.

Para isso o espetáculo também faz uso de um objeto: uma cadeira. Em nenhum momento a cadeira funciona como o bastão da cena de Leônidas Rubenich. Não há muitas transformações em seu uso, sua materialidade não é completamente alterada pela ação das atrizes, mas ainda assim, seu uso permite a composição visual já mencionada.

Uma das atrizes passa pelas pernas da cadeira ou ambas apóiam-se nela, sem com isso desenvolver nenhuma linha narrativa específica. Não se configura nenhum tipo de ilustração nesses movimentos, não ajudam a contar a estória daqueles que passam correndo. Os corpos do elenco aliados ao objeto compõem imagens independentes. Cria-se um poema cênico no qual a literatura é transformada em voz e a escrita se faz com a corporeidade das atrizes.

A relação de influência como apropriação torna-se evidente nesta pequena cena. Apostando em uma mescla de gêneros a encenadora compõe um espetáculo singular re-interpretando o conto de Kafka. A relação entre “texto literário” e “texto cênico”, sem dúvida ocorre por um grande desvio. A literatura transforma-se em um mapa provocativo e criativo para a encenação. Desobedece-se sua gramática, sua ordem narrativa, seus personagens e suas descrições embaralhando-os em uma ordenação diferente, mas própria.

A peça distorce o conto para que a visão da diretora possa prevalecer criando seu próprio espaço. As inversões e alterações marcam claramente a luta por prioridade textual, suas imagens são novos tropos que surgiram das figuras de

linguagem de Kafka. O clima de efemeridade acompanha a encenação, mostrando que o tema mantém-se, mas apenas como uma forma de exercício estético. No entanto existe algo de sentimental e até mesmo sexual nesta versão.

Nesta versão são duas mulheres, em alguns momentos, dialogando sobre homens que passam correndo. Impossível não pensar na possibilidade do desejo das mulheres que poderiam agarrar um desses homens que passam, mas preferem deixá-lo partir. O sentimento de inadequação que poderia ser encontrado em uma primeira leitura do conto tomou a dimensão do relacionamento homem e mulher. A observação das mulheres na cena pode representar uma espera de um acontecimento afetivo ou até uma auto-satisfação solitária.

O que interessa registrar é que existem significados, que dificilmente poderiam ser encontrados no conto se não houvesse a interpretação específica de Júlia Rodrigues. A diretora impôs sua significação pessoal naquilo que o texto não apresentava explicitamente. Ela estabeleceu em cena sua relação com aquilo que foi lido e marcou sua identidade através de Kafka.