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ENCENAÇÕES: SER-NOTA, SER-OUTROS

A literatura é um lugar autônomo de experimentações, "um exer- cício de reflexão e experiência de escrita" que "responde a um projeto de conhecimento do homem e do mundo", diz Compagnon102. Ela é obra de imaginação, desinteressada, descompromissada, "um saber de singulari- dades"103 , mas também é de oposição, "tem o poder de contestar a sub- missão ao poder"104. Por isso, ainsistência da ficção sobre o uso das no- tas de rodapé igualmente responde a um projeto estético que visa com- pensar ausências e realçar onipresenças. As notas trabalham na contra- mão das possíveis fronteiras a elas impostas, aproximando e tornando nebulosas essas barreiras, atentando-se contra as táticas de ilusão da verdade. Elas rompem, cortam laços fixos e engendram os móveis. E se a canonicidade contempla a linearidade e a monoliticidade, de forma di- ferente, os rodapés provocam fricções, dissipando-se em várias direções. As notas demarcam bem suas singularidades, suas diferenças, produzindo uma série de efeitos nas narrativas ficcionais, já que elas se comportam como textos que encenam e "encenar" corresponde a "esca- lonar suportes, dispersar papéis, estabelecer níveis e no final das contas: fazer da ribalta uma barra incerta"105. Aliás, como diz Barthes, "não de- vemos espantar-nos, no horizonte impossível da anarquia linguageira - alí onde a língua tenta escapar ao seu próprio poder, à sua servidão -, encontramos algo que se relaciona com o teatro"106 . Texto e teatro, nas suas intrínsecas relações, enquanto processo dinâmico de percepções, para lembrar, nesse debate, a reflexão nietzchiana de que as palavras "são exércitos móveis" e "as verdades são ilusões"107, sobretudo quando estamos lidando com os movimentos performáticos e dissimuladores linguagem.

102

COMPAGNON, Antonie. Literatura para quê? Belo Horizonte: Editora: UFMG, 2009. p. 31.

103 Ibid., p. 59. 104 Ibid., p. 42.

105 BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes, 2003, p. 121 106 BARTHES, Roland. Aula, 2007, p. 27.

107 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. Organi-

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Então, se a literatura é um jogo performativo, é teatralidade, en- cenação do ser, dos espaços, do mundo, as notas são, portanto, a incor- poração desse papel sempre heterogêneo que insiste em fazer da ribalta um lugar das incertezas. Se há na literatura, segundo Barthes, uma força de "instituir no próprio seio da linguagem servil uma verdadeira hetero- nímia das coisas"108, logo, há nas notas vários afloramentos, ressurgên- cias - um jogo mais ativo e teatral. Daí as notas nas ficções contemporâ- neas serem interpretadas como uma experiência que leva o limite ao ex- tremo, que desmorona tempos e espaços, criando dispersões, vazios, va- riadas encenações. Ora, jogar com os signos, "colocá-los numa maqui- naria de linguagem", arrebentar breques e travas de segurança essa é uma das forças da literatura 109.

Por essas razões, neste capítulo, veremos especificamente nos contos Pierre Menard: autor de Quixote e em A biblioteca de Babel 110 de Borges, no romance Bartleby e companhia de Vila-Matas e, posteri- ormente, nas narrativas Notal al pie de Rodolfo Walsh e Notas ao pé de

página de Moacyr Scliar, algumas motivações pelas quais a literatura

contemporânea encena o uso das notas de rodapé e como esses textos estabelecem interlocuções que também contribuem para pensarmos as discussões postas até aqui e o movimento próprio de Odorico Mendes. São diálogos possíveis? Certamente; pois são leituras que não preveem horizontalidade, nem um conjunto sistemático de ideias com amarras definitivas, mas sim modulações, confluências. Os itinerários desses tex- tos convocados ao debate provocam reflexões sobre importantes mu- danças de paradigmas. Neles, há vários indícios que nos levam a refletir sobre o caráter performativo das notas e sobre a mobilidade dessas for- mas de narratividade. Encontraremos, portanto, na dispersão desses cru- zamentos, denominadores comuns, significativos traços de união.

108

BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes, 2003, p. 27.

109 BARTHES, Roland. Aula, 2007, p. 28.

110 Os contos citados foram publicados originalmente em 1944, na coletânea do livro Ficções.

Borges maneja esteticamente as notas de rodapé em outros contos, particularmente nestas ou- tras narrativas do livro Ficções: Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, Exame da obra de Herbert Quain,

O jardim de veredas que se bifurcam, Funes, o memorioso, Três versões de Judas e O Sul. Em O Aleph igualmente encontramos contos com as performáticas notas de rodapé. São eles: O imortal, História do guerreiro e da cativa, A casa de Astérion, Deutsches Requiem, O Zahir, Os dois reis e os dois labirintos e O Aleph. Vejamos então que assim como os enredos de seus

contos recorrem ao debate sobre o tempo, a infinitude, suas narrativas também se lançam ao jogo labiríntico das notas. Ver em: Cf. BORGES, Ficções, 2007. BORGES, Jorge Luis. O

67 Veremos no descolamento espacial e discursivo das notas como elas deslocam o papel "central" do texto, atribuindo para si mesmas uma visibilidade, ainda que por um instante. Instante muitas vezes insistente, passível de prolongamento. Nesses textos, as notas se transfiguram, re- cebem uma nova aparência, certificam um lugar de destaque. Podemos até considerar que em seus múltiplos processos de enunciação as notas se transformam em personagens, em protagonistas. Nas ficções destaca- das adiante, as notas, a priori, imperceptíveis, se abrem por expansão em quatro movimentos topográficos distintos e estão imbricadas umas às outras em suas sensíveis mobilidades, percepções e solicitações.

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