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Encenações soberanas do Bem: “As maiores ruindades calmas”

3. CAPÍTULO 3 – (DES)NARRAR A VIOLÊNCIA E A MALDADE NA REVERSIBILIDADE DE

3.1. Encenações soberanas do Bem: “As maiores ruindades calmas”

Em sua recorrência no romance de Rosa, os termos ―morte, violência e mal‖ não devem ser tomados em sua acepção puramente temática, uma vez que, na fatura poética, o princípio temático do texto se organiza como miríades de significações e relações semânticas. Ou seja, o enunciado está disposto como um feixe de significados e significantes que se amalgamam

constantemente, criando novas (des)configurações de sentido. Esses termos são, antes, dispositivos, agenciadores que, no equacionamento geral do texto, desempenham a função de criar indecidibilidade e desestabilização de categorias racionais do pensamento, mas em torno do quê o narrador re- organiza constantemente não apenas sua narrativa, mas as suas concepções de mundo, vida e morte. Nesses termos, na (des)organização geral da história que conta, tais palavras ganham figurações conceituais as quais a um só tempo permitem e não permitem classificá-las histórica e politicamente. Desde que não se deixem distinguir através de categorizações racionalizantes estanques, esses termos funcionam, muitas vezes, como sinônimos, contaminam-se entre si, como fatores de indeterminação e indecidibilidade. São conceitos afins aos que se enunciam versos de Cecília Meireles, no

Romanceiro da inconfidência, ou seja, ―que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda‖164 o que seja a morte violenta, a violência e o mal

praticado ou recebido, todos eles, de algum modo, amalgamados.

O relato de Riobaldo é tomado aqui como uma intensa e incansável busca por certeza e segurança. Como afirma Guilherme Zubarán de Azevedo, há em Riobaldo um ―desejo de ordenação do mundo por meio de figuras jurìdicas, polìticas e religiosas, como, principalmente, Deus‖.165 Em sua

angústia da certeza perdida, o narrador rosiano busca, dentre outras coisas, alguma explicação, alguma razão objetiva para a existência do mal e da violência no mundo. A dinâmica pragmática do bem e do mal no mundo, no entanto, traçam um cenário em que os conceitos do bem, do mal e da própria razão fazem ―balancê‖. Como sói ocorrer em diversas partes da narrativa, o narrador formula questões pontuais a fim de sistematizar alguma razão pretendida, cujas respostas, também sempre provisórias, desestabilizam essa mesma razão. Em um ponto situado entre o sequestro da mulher do Hermógenes e o confronto final entre este e Diadorim, Riobaldo pergunta a um velho: - ―Mano velho, tu é nado aqui, ou de donde? Acha mesmo assim que o sertão é bom?...‖. Longe de se poder categorizar o bem e o mal, a contestação recebida instabiliza a certeza do narrador: ―- ―Sertão não é malino nem

164 MEIRELES. Romanceiro da Inconfidência, p. 70.

165 AZEVEDO. Encenações da lei - Memória e violência em Grande Sertão: veredas e A

caridoso, mano oh mano!: –... ele tira ou dá, ou agrada ou amarga, ao senhor, conforme o senhor mesmo‖. E prossegue: ―Respondeu com uma insensatez, ar de ir me ferir, por tanto; jacaré já! Dele o dito, eu não decifrava. Sertanejo sem remanso.‖166

Essa derradeira frase, ―Sertanejo sem remanso‖, pode ser lida como uma espécie de chave para a questão do mal, da violência a ele associada e da reversibilidade ou contaminação do mal em bem e vice-versa. O sertão, geográfico e conceitual, ao qual o narrador se refere, é o espaço para o qual não há remanso, ou seja, não há cessação de movimento, pausa, repouso, não há, sobretudo, paz, sossego, tranquilidade ou quietação. Não sendo ―malino‖ nem ―caridoso‖, o sertão rosiano pode ser as duas coisas. Paradoxo. A carência de quietação e certeza é uma forma de força motriz da busca incessante de Riobaldo pela categorização racionalizante, cujas razões mais viáveis encontram-se em momentos de demonização do mal, ou seja, a associação da maldade humana e do mal no mundo ao diabo é uma forma de dar remanso, dar paragem e explicação à existência do mal e da violência a ele associada. Uma forma de, através do sobrenatural, dar sentido à existência do mal, por assim dizer, real. Contudo, os leitores já o sabemos, é tudo muito provisório.

Marcus Mazzari, em estudo sobre os aspectos do romance de formação e do pacto fáustico no Grande sertão: veredas, afirma que, assim como Ludwig Feuerbach formula o pensamento segundo o qual ―O homem é o Deus do homem‖, Riobaldo, a seu termo, não teria muito a objetar sobre o reverso da afirmativa, ou seja, ―também o diabo não representaria outra coisa senão a catalisação personificada da maldade humana ou [...] dos males que se observam no mundo e se atribuem às esferas fìsica, metafìsica e moral.‖167 Ou

seja, segundo o pesquisador, há uma persona sobrenatural, o diabo, que catalisa, personifica todas as atualizações do mal em um único ser.

Mas a estruturação do texto é paradoxal e as ideias e significações estão em constante balancê. Pensar a violência, o mal e a maldade está no ponto onde se entrecruzam suas significações, as mais diversas figurações do

166 ROSA. Grande Sertão: Veredas, p. 537. (Grifos meus)

167 MAZZARI. Labirintos de aprendizagem: pacto fáustico, romance de formação e outros temas de literatura comparada, p. 30.

mal, da maldade e da violência. Anita Moraes sugere que a ―narrativa de Riobaldo pode ser compreendida como esforço de dizer o mal sem atribuir a ele sentido‖; é nesses termos que o leitor, continua Moraes, assim como o próprio narrador, ―é levado a defrontar-se com as múltiplas faces do mal em inúmeras narrativas que tratam do mal sofrido [...] e do mal cometido –, assassinato, tortura, estupro, escravidão, miséria, humilhação, guerra, traição etc.‖168

No romance rosiano abundam tais figurações do mal. Dentre as tantas micro histórias que atualizam os seus sentidos, o primeiro caso de mal/violência cometido/sofrido, em análise aqui, é o do Aleixo e seus filhinhos. Sigamo-lo, portanto:

Mas, em verdade, filho, também, abranda. Olhe: um chamado Aleixo, residente a légua do Passo do Pubo, no da-Areia, era o homem de maiores ruindades calmas que já se viu. [...] Um dia, só por graça rústica, ele matou um velhinho que por lá passou, desvalido rogando esmola. O senhor não duvide – tem gente, neste aborrecido mundo, que matam só para ver alguém fazer careta... [...] Aleixo era homem afamilhado, tinha filhos pequenos; aqueles eram o amor dele, todo, despropósito. Dê bem, que não nem um ano estava passado, de se matar o velhinho pobre, e os meninos do Aleixo aí adoeceram. Andaço de sarampão, se disse, mas complicado; eles nunca saravam. Quando, então, sararam. Mas os olhos deles vermelhavam altos, numa inflama de sapiranga à rebelde; e susseguinte – o que não sei é se foram todos duma vez, ou um logo e logo outro e outro – eles restaram cegos. Cegos, sem remissão dum favinho de luz dessa nossa! O senhor imagine: uma escadinha – três meninos e uma menina – todos cegados. Sem remediável. O Aleixo não perdeu o juízo; mas mudou: ah, demudou completo – agora vive da banda de Deus, suando para ser bom e caridoso em todas suas horas da noite e do dia. Parece até que ficou o feliz, que antes não era. Ele mesmo diz que foi um homem de sorte, porque Deus quis ter pena dele, transformar para lá o rumo de sua alma. Isso eu ouvi, e me deu raiva. Razão das crianças. Se sendo castigo, que culpa das hajas do Aleixo aqueles meninozinhos tinham?!

Compadre meu Quelemém reprovou minhas incertezas. Que, por certo, noutra vida revirada, os meninos também tinham sido os mais malvados, da massa e peça do pai, demônios do mesmo caldeirão de lugar. Senhor o que acha? E o velhinho assassinado? – eu sei que o senhor vai discutir. Pois, também. Em ordem que ele tinha um pecado de crime, no corpo, por pagar.169

168 MORAES. Às voltas com a aporia do mal, o redemunho, p. 96. 169 ROSA. Grande sertão: veredas, p. 28-29.

A lógica da religiosidade popularesca que rege o causo do Aleixo e seus filhos (assim como no caso que se seguirá, de Pedro Pindó e o menino Valtêi), como aponta Anita Moraes no estudo supracitado, é a da ―resposta da retribuição‖. Como no dito popular, ―aqui se faz, aqui se paga‖, nos dois causos, afirma, atribui-se sentido à doença ou ao sofrimento das vítimas pela ótica compensatória e, no primeiro caso, ―o próprio Aleixo atribui sentido à doença dos filhos‖. Riobaldo, ainda que sedento por atribuir sentido ao mundo, resiste à significação dada por Aleixo/Quelemém.

A lei compensatória através de uma recorrência à ótica da justiça divina, ou sobrenatural, portanto, responde a uma necessidade marcadamente presente na hermenêutica tradicional (e também em uma hermenêutica popular)170, cujos esforços se concentram fundamentalmente em categorizar racionalmente todo e qualquer acontecimento. A postura de Riobaldo, contudo, situada entre o constante desejo de sentido e a dúvida sistemática diante da lei da retribuição, atualiza constantemente o mal através dos pequenos casos paradoxais. E é também com esta postura que recebe com ressalvas a explicação de Quelemém de Góis, o amigo kardecista, segundo a qual, ―por certo, noutra vida revirada, os meninos também tinham sido os mais malvados, da massa e peça do pai, demônios do mesmo caldeirão de lugar‖.171 Em casos

tais, a justiça divina, atravessando reencarnações diferentes, age por um caminho enviesado, posto que atinge não o Aleixo, ele mesmo, mas aos filhos que, a princípio, não eram bons nem maus, existiam apenas, aparentemente sem imputação de culpa ou pena. Riobaldo busca uma razão, aparente que seja, para essa forma de atualização do mal e da crueldade, assim como para a maneira como a culpabilidade é transferida, através de uma explicação

170 O que é, na verdade, uma ótica do próprio pensamento, que atua por mimetismo e associação e que tem como necessidade a categorização, a classificação e a separação o que, acredita-se, didaticamente auxilia nos mecanismos de compreensão e entendimento. A esse respeito, Bauman afirma: ―A linguagem esforça-se em sustentar a ordem e negar ou suprimir o acaso e a contingência. Um mundo ordeiro é um mundo no qual ‗a gente sabe como ir adiante‘ (ou, o que vem a dar no mesmo, um mundo no qual sabemos como descobrir – com toda

certeza – de que modo prosseguir), um mundo no qual sabemos como calcular a probabilidade de um evento e como aumentar ou diminuir tal probabilidade; um mundo no qual as ligações entre certas situações e a eficiência de certas ações permanecem no geral constantes, de forma que podemos nos basear em sucessos passados como guias para outro futuros. Por causa da nossa capacidade de aprender/memorizar, temos um profundo interesse em manter a ordem do mundo. A ambivalência confunde o cálculo dos eventos e a relevância dos

padrões de ação memorizados.‖ BAUMAN. Modernidade e Ambivalência, p. 10. (grifos meus).

racional do sobrenatural, revertendo o mal em bem e o bem em mal, ou seja, trocando-os de lugar. Tem-se, então, através da lógica da ―resposta da retribuição‖, uma pista, uma ―luzinha dividida‖ que pode ser lida como um exercício de soberania172 do bem.

Sigamos, portanto, esta pista.

Nessa atualização e devir constantes do mal, duas palavras-conceito reclamam também explicação/atualização, quais sejam: crueldade e soberania. Mediante as quais uma pergunta se pergunta: A reversibilidade do mal em

bem, a busca intensa do bem através do mal praticado/sofrido não seria, ao modo de pensar derridiano, uma maneira de “estar mal de soberania”? E,

partindo desta questão, uma afirmação: A porosidade/inseparabilidade entre

bem e mal constitui, paradoxalmente, um caráter aporético da soberania.173

172 A noção de soberania foi trabalhada em diferentes tempos por diferentes pensadores, dentre os modernos, citamos Benjamin e Schmidt, os quais são retomados, a seu tempo, por Derrida, Foucault, Agamben, Esposito etc. O conceito, contudo, é cercado de dificuldades hermenêuticas, pois, assim como as noções de violência, mal, bem e poder, são noções/conceitos que se realizam enquanto ações, ou, dito de outro modo, enquanto práticas, as quais se materializam e atualizam infinitas vezes e nas mais diversas ocasiões. Sobre o poder, p.e., afirma Roberto Machado em introdução ao Microfísica do Poder, de Foucault, que não ―existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente formas dìspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder não é um objeto natural, uma coisa, é uma prática social e, como tal, constituìda socialmente‖ (MACHADO. ―Introdução. Por uma genealogia do poder‖, p. 12). Em Foucault, p.e., a soberania se dá na lógica de uma biopolìtica do poder estatal que assume o direito e o (bio)controle das vidas biológicas, por assim dizer, de indivíduos e coletividades. Agamben, que também lê a tradição sobre a soberania, a situa em uma zona de exceção, a qual, mantendo uma indiferença entre violência e direito (Schmidt e Benjamin), ―encontra-se na relação mais ìntima com a soberania‖ (AGAMBEN. Homo sacer, p. 71). Derrida, por sua vez, irá tratar da soberania em diferentes trabalhos/conferências (Vadios;

O soberano Bem; A besta e o soberano; Força de lei; Dar a morte etc.). O filósofo franco-

argelino compartilha com os demais pensadores a noção de que a soberania situa-se em uma zona paradoxal, mas aponta justamente nessa paradoxalidade aquilo que ele chama de ―estar mal de soberania‖ (subtìtulo da conferência O soberano Bem). Da nossa parte, situamo-nos nesse ponto em que a soberania vai mal e, a partir da leitura desconstrucionista de Derrida, lemos aquilo a que chamamos encenações soberanas do Bem como o ponto em que o Bem, de algum modo, vai Mal.

173 É importante ressaltar que Guilherme Zubaran de Azevedo, em tese defendida nessa casa em 2016, também trabalha com as noções de soberania na leitura comparada que faz de

Grande sertão: veredas e A menina morta. Vale ressaltar, ainda, que, neste trabalho, o autor

pauta-se por uma noção que liga a soberania necessariamente ao político ou, mais precisamente, ao ―caráter biopolìtico da soberania‖. Segundo Azevedo: ―A relação entre animal e soberano também será o foco da leitura das manifestações da soberania em ambos os romances. O objetivo é pensar não apenas o espelhamento entre o soberano e o animal, mas principalmente a característica bestial e fálica da atuação do poder soberano. Por fim, o poder soberano passa a ser pensado a partir da sua estrutura de exceção. Assim, o Comendador, Joca Ramiro, Medeiro Vaz, Zé Bebelo e Urutu- Branco evidenciam o estado de exceção subjacente à criação de qualquer espaço político. O Grotão e o sertão representam uma ordem jurídica baseada no permanente estado de exceção, cuja vigência transforma a vida no domínio de aplicação da lei, o que mostra o caráter biopolítico da soberania. Os estados de exceção, mobilizados pelos soberanos em questão, revelam outra perspectiva sobre a realidade política do Império e da Primeira República no Brasil. Há, portanto, um

Tateemos um pouco algumas formas de determinação, para, depois, arriscarmo-nos pelas formas de indeterminação da violência nos casos em análise. O caso seguinte, como bem observa Anita de Moraes, é iluminado pela parábola do Aleixo e, de algum modo, lança luz sobre outros pontos da narrativa global.

A história de Pedro Pindó é contígua à do Aleixo e a ela ligada temática e estruturalmente. A citação é longa, mas necessária:

Se a gente – conforme compadre meu Quelemém é quem diz – se a gente torna a encarnar renovado, eu cismo até que inimigo de morte pode vir como filho do inimigo. Mire veja: se me digo, tem um sujeito Pedro Pindó, vizinho daqui mais seis léguas, homem de bem por tudo em tudo, ele e a mulher dele, sempre sidos bons, de bem. Eles têm um filho duns dez anos, chamado Valtêi [...]. Pois essezinho, essezim, desde que algum entendimento alumiou nele, feito mostrou o que é: pedido madrasto, azedo queimador, gostoso de ruim de dentro do fundo das espécies de sua natureza. Em qual que judia, ao devagar, de todo bicho ou criaçãozinha pequena que pega; uma vez, encontrou uma crioula benta bêbada dormindo, arranjou um caco de garrafa, lanhou em três pontos a popa da perna dela. O que esse menino babeja vendo, é sangrarem galinha ou esfaquear porco. – ―Eu gosto de matar...‖ – uma ocasião ele pequenino me disse. Abriu em mim um susto; porque: passarinho que se debruça – o voo já está pronto! Pois, o senhor vigie: o pai, Pedro Pindó, modo de corrigir isso, e a mãe, dão nele, de miséria e mastro – botam o menino sem comer, amarram em árvores no terreiro, ele nu nuelo, mesmo em junho frio, lavram o corpinho dele na peia e na taca, depois limpam a pele do sangue, com cuia de salmoura. A gente sabe, espia, fica gasturado. O menino já rebaixou de magreza, os olhos entrando, carinha de ossos, encaveirada, e entisicou, o tempo todo tosse, tossura da que puxa secos peitos. Arre, que agora, visível, o Pindó e a mulher se habituaram de nele bater, de pouquinho em pouquim foram criando nisso um prazer feio de diversão – como regulam as sovas em horas certas confortáveis, até chamam gente para ver o exemplo

tensionamento entre as obras ficcionais e os conceitos de favor, coronelismo e patrimonialismo utilizados em obras da sociologia e da história brasileira, como se verá.‖ (AZEVEDO.

Encenações da lei - Memória e violência em Grande Sertão: veredas e A menina morta, p. 15).

Este trabalho, como afirmamos, é de grande contribuição para a fortuna crítica tanto de Guimarães Rosa quanto de Cornélio Penna. Em nosso trabalho, no entanto, optamos por uma leitura bem próxima ao que diz Derrida da soberania em O soberano Bem, especialmente, mas também em Vadios e, de algum modo, em Dar a morte. Desse modo, lemos soberano todo aquele que, assumindo para si violentamente o poder, arroga-se o direito de decisão sobre a vida de quem quer que seja. O soberano é, então, não somente a figura do Estado, do povo, do direito e da lei ou de Deus, mas a figura masculina do pai, do marido ou do patrão, o que nos leva a crer que toda e qualquer relação entre sujeitos e alteridades, toda e qualquer relação entre pessoas possam ser lidas como relações (im)políticas de poder e de violência mobilizadas pela figura do soberano.

bom. Acho que esse menino não dura, já está no blimbilim, não chega para a quaresma que vem... Uê-uê, então?! Não sendo como compadre meu Quelemém quer, que explicação é que o senhor dava? Aquele menino tinha sido homem. Devia, em balanço, terríveis perversidades. Alma dele estava no breu. Mostrava. E, agora, pagava. Ah, mas, acontece, quando está chorando e penando, ele sofre igual que se fosse um menino bonzinho... Ave, vi de tudo, neste mundo! lá vi até cavalo com soluço... – o que é a coisa mais custosa que há.174

Ambas as histórias, a de Aleixo e a de Pedro Pindó, são dispostas em forma de parábola e em ambas o narrador recebe e duvida da explicação kardecista. O cerne da indeterminação e da suscitação da dúvida riobaldiana parece estar na contaminação, em ambos os casos, do bem pelo mal e do mal pelo bem. A complexidade da violência encerrada na atualização do mal em ambos os casos obriga o intérprete/leitor não a abandonar ―campo abstrato dos conceitos‖ 175, como afirma Eduardo Veras em estudo sobre a simbólica do mal

em Baudelaire, mas a enfrentar com dificuldade esse campo.

Anita de Moraes, em artigo anteriormente citado, apoia-se na hermenêutica ricoeuriana sobre o mal para fazer sua incursão pelos dois casos em análise. Segundo a pesquisadora: ―A maldade em Valtêi, não como desvio decorrente de frustração ou dor sofrida, mas como própria de sua natureza – como o mal e não como a falta do bem –, assusta‖. De certo modo, a afirmação de Marques situa o mal do menino in illo tempore, o mal está nele como mal unicamente, não como falta ou oposição ao bem.176 A autora prossegue em sua análise ressaltando a ―gastura‖ suscitada pelo prazer dos pais em ―punir‖ a maldade do filho. Segundo ela:

Nesta atitude, revestida da intenção de pôr fim às crueldades de Valtêi, não há outra coisa senão a mesma fruição no mal, própria do menino. Tendo, Pindó e a mulher, encontrado no filho um pequeno demônio, não apenas estariam dele

174 ROSA. Grande sertão: veredas, p. 29-30. (Grifos meus)

175 RICOEUR apud VERAS. Baudelaire e a simbólica do mal, p. 41.

176 Nesse sentido, a autora chama a atenção para uma possível relação entre a maldade de Valtêi e a de Hermógenes, segundo ela: ―Poderìamos pensar que a inocência da maldade de Valtêi remete a Hermógenes, a ―maldade pura‖? O causo ressoaria a cruzada contra Hermógenes – esse ser misturado, rosnador, de grandes orelhas, pés de pubo, traiçoeiro, cão tigre jiboia –, sugerindo a fruição no mal de Riobaldo e seus homens que, ao encontrarem a