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10/05/2010 – Teresa lançou algo invisível e propôs que eu pegasse. Passamos a brincar de lançamentos (lançando algo invisível). Perguntei: “O que é isso que estamos lançando?” e ela prontamente respondeu: “memória”. Teresa é minha filha e tinha dois anos e nove meses.

Alphonsus de Guimaraens (1870-1921). Com este homem quero me encontrar na memória invisível do jogo infantil.

Afonso Guimarães, Alfonso Guy, Affonso Guimaraens, Alfonso Guimaraens, Alphonsus de Guymar, Dom Alphonsus, Alphonsus de Vimaraens, depois Alphonsus de Guimaraens... Mas quando do teu nascimento, em 24 de julho de 1870, em Ouro Preto, eras Afonso Henriques da Costa Guimarães, que, em 1894, mudarias ainda para Afonso Henriques de Guimarães. (Guimaraens Filho, 1995, p.31)

Poeta do amor e da dor, Alphonsus de Guimaraens, não mudaria mais. Não arredaria mais seu corpo da sombra das lembranças de Constança Guimarães, a prima amada morta aos dezessete anos. E assim fez-se sua poesia, de sonho de uma vida não vivida, da morte almejada, de melancolia e tristeza.

Pobre Alphonsus!

Poesia incompreendida enquanto de sua vida produtiva, a atenção à sua arte veio a posteriori, em 1938, com a publicação das Poesias, edição organizada por seu filho João Alphonsus e revista por Manuel Bandeira.

O amor ideal se confunde com a mística do catolicismo e ambos são incorporados em sua poesia como símbolo de enormes monumentos santificados, que dançam uma conjunção de recursos que transitam por imagens glorificadas do amor perdido, dos templos grandiosos, da lua que resguarda seus graves sentimentos.

Pobre Alphonsus!

Fez poesia e fez musical a sua poesia. Musicou o imponderável e se comunicou através das imagens dos sonhos, parecendo querer que viajássemos com ele por caminhos sensoriais para, quiçá, compreendê-lo.

Às minhas impressões de leiga somei alguns estudos sobre o Simbolismo e sobre o poeta, mas encontrei grande parte de minha inspiração em um belo relato de seu filho, o também poeta Alphonsus de Guimaraens Filho (03/06/1918 – 27/08/2008).

A inspiração fez-se corpo e dancei, entre as brumas da memória, a ladainha contemplativa de si mesmo: “Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!”.

A Catedral

Entre brumas, ao longe, surge a aurora. O hialino orvalho aos poucos se evapora, Agoniza o arrebol.

A catedral ebúrnea do meu sonho Aparece, na paz do céu risonho, Tôda branca de sol.

E o sino canta em lúgubres responsos: "Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!" O astro glorioso segue a eterna estrada. Uma áurea seta lhe cintila em cada Refulgente raio de luz.

A catedral ebúrnea do meu sonho,

Onde os meus olhos tão cansados ponho, Recebe a benção de Jesus.

E o sino clama em lúgubres responsos: "Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

Por entre lírios e lilases desce A tarde esquiva: amargurada prece Põe-se a lua a rezar.

A catedral ebúrnea do meu sonho Aparece, na paz do céu tristonho, Tôda branca de luar.

E o sino chora em lúgubres responsos: "Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!" O céu é todo trevas: o vento uiva. Do relâmpago a cabeleira ruiva Vem açoitar o rosto meu.

E a catedral ebúrnea do meu sonho Afunda-se no caos do céu medonho Como um astro que já morreu.

E o sino geme em lúgubres responsos: "Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

(GUIMARAENS, 1960, p.289)

Quando a palavra enlouqueceu, ela de espaços se encheu. A palavra enlouqueceu na ponta da pena do poeta e abriu portas para o desconhecido, o imaginário do próprio poeta que lhe deu asas. E como um anjo, pendeu as asas para voar. O leitor a capturou e em suas asas se agarrou. Voou e viu luas no céu e luas no mar. Era uma atriz e... Fez de seu corpo céu e mar. Foi asa, torre, lua, foi Ismália até. Imagens tomaram seu corpo e a fizeram deslizar sobre a vida do chão de madeira. E ali ela recriou o céu e o mar. Seu corpo enlouqueceu.

Ismália

Quando Ismália enlouqueceu Pôs-se na torre a sonhar... Viu uma lua no céu,

Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu, Banhou-se tôda em luar...

Queria subir ao céu, Queria descer ao mar... E, no desvario seu,

Na tôrre pôs-se a cantar... Estava perto do céu, Estava longe do mar... E como um anjo pendeu As asas para voar... Queria a lua do céu, Queria a lua do mar... As asas que Deus lhe deu Ruflaram de par em par... Sua alma subiu ao céu, Seu corpo desceu ao mar... (GUIMARAENS, 1960, p.231)5

Ismália tantas vezes dos lábios de minha mãe, meu pai, tia Acidália, tio Guy. Quem é Ismália, pensava eu aos seis, sete anos de idade – quem é Alphonsus? O orgulho familiar nem mesmo os deixava pronunciar o nome Alphonsus sem o rebuscado tom de quem fala com uma laranja na boca:

Aullphounnnsus de Guimaraenns. Caso tivesse eu que dizer de quem era bisneta,

como viria a sair de mim essa sonoridade? Aufonsudiguimarães, Aufonsus de Gui- marães. Que vergonha dizer esse nome estranho! A menina diz: - “acho que você não o conhece; ele foi um poeta simbolista”.

Tampouco eu o conhecia. Na solidão daquele vasto mundo da poesia e dos antepassados, vivi a infância me perguntando por que era tudo tão incompreensível para mim; tão próximo e ao mesmo tempo tão distante. O passar dos anos e a distância da família me agraciaram com a proximidade da poesia e

5 Publ. In A Gazeta (SP, 21 nov. 1910), O Germinal (Mariana, 4 dez. 1910) e Jornal do Comércio (Juiz de Fora, 4 dez. 1910) com o título “Ofélia” [...]. O nome de “Ofélia” – observa João Alphonsus – foi transformado depois em “Ismália”, diante talvez da possibilidade de ser a canção tomada como referente à Ofélia shakespeareana. (GUIMARAENS, 1960, p. 696)

do poeta e me trouxeram “um amontoado de recordações”, ou seja, memórias de uma infância que pode ser re-imaginada, revivida em poesia da vida e em poesia corporal e artística. O devaneio da artista se confunde com os devaneios da criança que podia, à sua maneira, ser Ismália e imaginá-la saltando rumo ao precipício em busca de uma lua enorme e brilhante que a devorava e tomava de paixão. O voo de Ismália em direção à lua não me parecia diferente das brincadeiras que me levavam a ser outras figuras; também eu me lançava em direção à lua imaginária de um mundo de sonhos. Ismália não era triste; era sonho de sonhadora.

A poesia, agora, se propõe corpo. Poesia corporificada em forma de ações físicas. Para que a poesia seja recriada, a imagem da infância deve ser igualmente recriada e revivida em abundantes sensações que vêm e vão, em vetores de direções diversas, em saltos no tempo e na memória. Como diz Bachelard: “Um excesso de infância é um germe de poema”. Neste caso, o artista deve ser tomado de infância e se perder nas dimensões da lua para ser lançado a ela com toda a paixão de Ismália; imagem vivida e transformada, transposta para a linguagem do corpo. Virtualidades que se presentificam na recriação da infância, nas imagens da infância, nas palavras do poeta que se nos tornam ausentes a cada vez que fechamos o livro, mas que se atualizam em nossas memórias e imaginação, ou a cada nova leitura. A palavra agora é corpo-em-ação em nosso trabalho. O corpo-em-ação como recriação de virtualidades. A poesia se torna

palavra, no corpo.

Na poesia encontro fissuras por onde quero penetrar e me deixar penetrar, em um emaranhado de memórias que podem ser fusão das minhas com as do poeta, que são simplesmente minhas, suscitadas pelo poeta, que são memórias daquilo que nos devaneios da infância registrei a respeito de quem foi o homem Alphonsus, o que viveu, passou e de como criou suas relações e laços familiares, memórias das palavras, cheiros, sons, símbolos que emanam da poesia e me reportam ao passado ou simplesmente não, não me reportam a parte

alguma, mas me impulsionam a adentrar em um campo de imagens recônditas, conhecidas ou não, vividas ou não, simplesmente imagens.

Mas temos também as imagens da memória. Em devaneio poético do corpo, adentro em estados de percepção aguçados e entro em um fluxo que conflui pensamento, ação, músculo, memória, fantasia, imagens enfim. O pré- impulso, o desejo (antes mesmo do impulso muscular), desencadeia esta totalidade e emerge feroz no campo do devaneio, que não produz mais somente recordações, mas sonho. A memória salta descontinuamente e produz imagens, em constante recriação e valoração. A recriação é reencontro com o passado, mas de um passado incompleto na memória datada, que pode, portanto, ser recriado em novos voos através de imagens, que completam as lacunas da memória. Na ação física acontece o percurso, no meu caso, por exercitar em meu ofício a recriação de imagens a partir do corpo, é claro. A dança da musculatura e da respiração pressiona a atualização de imagens que dançam na mente-corpo e produzem memória de imagem e sensação, até mesmo sem nome conhecido ou data. São fantasmas que invadem o corpo físico e o conduzem no espaço.

A Cabeça de Corvo

Ao Dr. Edmundo Lins Na mesa, quando em meio à noite lenta Escrevo antes que o sono me adormeça, Tenho o negro tinteiro que a cabeça De um corvo representa.

A contemplá-lo mudamente fico E numa dor atroz mais me concentro: E entreabrindo-lhe o grande e fino bico, Meto-lhe a pena pela goela a dentro.

E solitàriamente, pouco a pouco, Do bojo tiro a pena, rasa em tinta... E a minha mão, que treme tôda, pinta Versos próprios de um louco.

E o aberto olhar vidrado da funesta Ave que representa o meu tinteiro,

Vai-me seguindo a mão, que corre lesta, Tôda a tremer pelo papel inteiro.

Dizem-me todos que atirar eu devo Trevas em fora êste agoirento corvo, Pois dele sangra o desespêro tôrvo Destes versos que escrevo. (GUIMARAENS, 1960, p.54)

Meu tinteiro é o ser-corpo-em-ação. Não de “agoirento” corvo, mas de virtualidades que não param de pulsar, as quais exploro a cada vez que minha pena toca o tinteiro, ou melhor, a cada vez que me coloco no espaço de criação. Essas ações tem inspirações no universo e nos poemas de Alphonsus de Guimaraens; recriam, no corpo, outra poesia.

Não se trata em absoluto de representar a poesia e sim de recriá-la, em um fazer teatral não-representativo. Desta forma adentro em uma questão diferencial da mímesis corpórea: a mímesis da palavra. A palavra em ação pode conter todas as dimensões das conexões de imagens que detona e ainda as dimensões do corpo, jogando com espaço e tempo. A palavra poetizada sugere sons, tensões, ações que tomam outras formas e sugerem novas poesias quando corporificadas. Um emaranhado de recriações que afeta a mim como leitora, que afeta e gera reatualizações de dimensões poéticas, afeta o observador, que por sua vez recria sua poesia. A palavra, assim trabalhada, vem tomando corpo em minha pesquisa desde o ano 2000, quando da criação do espetáculo “Um Dia...”, no qual buscamos dançar contos e poemas que nos remetessem ao corpo em trauma, objeto de nossa busca naquele momento.

Um fio tênue separa mímesis corpórea de dança pessoal. Mímesis da palavra ou dança da palavra? As nomenclaturas escolhidas dizem respeito à fragmentação inicial das metodologias de pesquisa do Lume em linhas paralelas de pesquisa que acabaram por se confluir, entrecruzando-se em diversos pontos. Pode-se, por exemplo, dançar a sonoridade de um poema, a música que ele sugere ou imagens dessa música-sonoridade. É nessa dança que começo a me encontrar com Alphonsus.