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3. NO INÍCIO É O SILÊNCIO

3.3. O encontro com o silêncio integral

roupa preta, sendo esta uma cor preponderante em muitos funerais ocidentais. Em outras culturas, o preto pode ter outras representações, como por exemplo o inverno para os chineses, a masculinidade e a maturidade para os africanos, e no Oriente Médio essa cor representa tanto o renascimento quanto o luto. Como a descrição da freira é feita pela Domingas, podemos atribuir à cor negra o tom de medo, sentimento capaz de imprimir sobreposição e domínio.

Além do objetivo de internalizar a prática do silêncio como qualidade pertinente à mulher com o uso do poder, o intuito da Instituição era o de alcançar o silere, o silêncio divino, por intermédio do tacere, o silêncio da voz, da fala ordinária.

3.3. O encontro com o silêncio integral

A abdicação da fala ordinária, não sendo por determinação alheia, pode, além de fundar um signo de sabedoria como observamos no início do presente capítulo, nos elevar ao nível de proximidade com uma unidade. Porém, diante do que foi exposto, somos capazes de afirmar que o silêncio não deveria ser enxergado à luz da palavra, ao contrário, cabe à palavra dizer o que é possível ser dito do indizível e conduzir a ele, como se este fosse o seu centro, uma vez que o silêncio é a origem e o fim, tudo se origina nele: é o ponto de partida, bem como o de chegada. Contudo, nossa experiência da existência apenas nos permite refletir acerca desse signo como sendo algo explicável no que tange a suas intenções, e, ao mesmo tempo, alcançável, porém não há como vivenciá-lo de forma íntegra, uma vez que o silêncio pleno é um desejo que se origina na pulsão de morte – Thanatos14 – e somente se materializará nela. Já que o sujeito é linguagem, se faz e se expressa através dela, o silêncio último da fala interior só pode ser encontrado, buscado, evocado numa zona-limite da experiência humana, na qual o sujeito desliga-se do mundo: a morte.

À vista disso, temos o minuto de silêncio, momento criado para um período de contemplação, oração, reflexão ou meditação silenciosa como um gesto de respeito, diante de situações trágicas, em especial diante da morte. No romance Dois Irmãos, há uma passagem que ilustra esse momento: “Alguém sugeriu um minuto de silêncio em homenagem ao mestre

14 De acordo com o ensaio “A psicanálise e o domínio das paixões”, de Maria Rita Kehl, a matéria prima de que se originam os desejos – a autora trata de paixões, mas podemos ampliar a discussão para os desejos, uma vez que a paixão se trata de uma das variantes de desejos que o sujeito pode desenvolver – humanos são as pulsões em duas grandes vertentes: Eros (pulsão de vida) e Thanatos (pulsão de morte).

imolado” (p. 143). Esse momento de silêncio é o espaço destinado à reflexão e homenagem ao morto ilustre, devido ao silêncio também se aliar a um sentido de respeito pela morte. É o sinal de aproximação com o sagrado, com Deus.

Essa busca pela experiência do silêncio sagrado é a explicação para a taciturnidade ser tão intensa em todas as religiões: o silêncio religioso é um misto de respeito por uma divindade, uma técnica para abrir o ouvido interior e um sentido de inadequação de palavras para descrever as realidades espirituais, porquanto o que não se pode falar, deve-se calar. Nós aprendemos o silêncio com os deuses, e o falar com os homens.

Em virtude disso, a Igreja (como teologia e como instituição criada pelo homem) é substancialmente fala: ela quer linguagem para se constituir, se multiplicar e se conservar, muitas vezes em detrimento do que é místico, e tende a reprimir a linguagem, a parar sua perpetuidade, porque se trata de uma prática social, mundana. Muitos são os patriarcas da igreja que expressam sua ideia de que o silêncio deveria ser aprendido antes de qualquer outra coisa, visto que se não aprendemos a ficar em silêncio, não seremos capazes de falar. Um exemplo foi Santo Agostinho que, paradoxalmente, muito teve a dizer a respeito da oração silenciosa e a eloquência do silêncio. Contudo, outros autores religiosos enfatizavam o valor de palavras edificantes, embora os monges enfatizassem os perigos espirituais da tagarelice, verbosidade e loquacidade.

Muitos são os paradoxos diante do silêncio, enquanto instrumento de alcance do sagrado, no início ou fim da natureza. Diante disso, o silêncio aparece nos escritos de Plotino15 de maneira encoberta, imagem a ser revelada no exercício do próprio silenciar, já que poderíamos entender esse exercício como caminho a ser percorrido pelo Intelecto até a sua própria superação na experiência unitiva, sua meta: o encontro com o silêncio integral. A prontidão para a escuta desse silêncio depende de nossa disponibilidade em nos livrarmos de todos os demais sons, a fim de escutarmos apenas o som que vem do mais alto. Nessa compreensão, Plotino nos encaminha ao silêncio: “É necessário partir em silêncio e, no embaraço em que nos colocaram nossas reflexões, é preciso para de questionar. O que procurar se nós não podemos ir além? Toda busca vai até o princípio, e ali ela para.” (1938, p.

15 Plotino foi um filósofo neoplatônico, autor de Enéadas, discípulo de Amônio Sacas por onze anos e mestre de Portífirio, filósofo neoplatônico conhecido por sua biografia de Plotino, seu papel na edição da obra Eneadas e ajudou a popularizar e difundir o neoplatonismo em todo o Império Romano. A teoria de Plotino consiste na divisão do universo em quatro hipóstases: o uno, o nous, a alma e a matéria. O Uno refere-se a Deus, dado que sua principal característica é a indivisibilidade. Nous, para muitos autores pode ser inteligência, pensamento ou Intelecto, trata da atividade intelecto ou da razão em oposição aos sentimentos materiais. A alma é o elo entre o espírito e o corpo. E a matéria seria a parte concreta dessa teoria que explica a origem de tudo: é qualquer substância que ocupa lugar no espaço, seja no estado sólido, líquido ou gasoso.

146-147). Para Plotino, o silêncio seria a unidade que não alcançamos em vida: e esta é a maior dor da alma e da consciência.

Ao longo dos séculos, pode-se perceber uma ruptura gradual entre religião e moral, um deslocamento da questão do silêncio da fé para os costumes. O silêncio sublimado diante de Deus é substituído progressivamente por uma arte de calar, de conter as palavras e a língua. Os impulsos da fé muda oferecem espaço a um ensinamento de virtudes que devem ser seguidas no campo das práticas sociais e implicam uma disciplina da reserva, um condicionamento à arte da reticência, como bem propõe Abade Dinouart: “o primeiro grau da sabedoria é saber calar; o segundo, saber falar pouco e moderar-se no discurso; o terceiro é saber falar muito sem falar mal e sem falar demais.” (DINOUART, 2001, p. 18). O silêncio direcionado a Deus passa a direcionar-se aos conceitos de civilidade, de comportamentos aceitáveis, e estão a serviço da sociedade.

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