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“O senhor tolere, isto é o sertão. [...] é onde os pastos carecem de fechos. [...] O sertão está em toda a parte” (ROSA, 2019a, p. 13).

Nesta segunda cena, estabelecemos alguns encontros dos nossos três participantes com o homem que por três dias ocupou a cadeira de número dois da Academia Brasileira de Letras, merecido posto de onde foi destituído pelo seu falecimento. Um intelectual, médico, diplomata e poliglota que escreveu livros que, “em essência, são anti-intelectuais”33.

Mas de onde surge essa força encantadora que fez e ainda faz tantas pessoas quererem conhecer o grande sertão e seus próprios sertões?

A busca pela “grandeza cantável” do sertão, pela “música subjacente” das palavras e por aquilo que a canção representa para construção da memória, da sensibilidade e da imaginação do Brasil – as três formas de musicalidade que, combinadas, sustentam seu projeto literário –, explica muita coisa (STARLING, 2017, p. 162).

Se Guimarães Rosa buscou a grandeza cantável do sertão pela música subjacente das palavras, pelas palavras de Guimarães Rosa os violeiros Ivan Vilela, Paulo Freire e Nélio Spréa encontraram as essências de suas músicas.

Quando Guimarães Rosa escreve Grande Sertão: Veredas, teria ele dimensão dos efeitos na vida das pessoas, o tamanho das consequências que essa obra de arte produziria? [...] O Paulo Freire,

violeiro de campinas, que ao ler a obra vai para o Urucuia e, que depois de passar anos vivendo um pouco lá, mas também indo e voltando lá, começa a traduzir toda a sua experiência em música. [...] E aí a obra de arte do Guimarães Rosa que arrastou Paulo Freire pro sertão, faz com que Paulo Freire leve o sertão para a sua obra. E aí através da obra do Paulo Freire, outras pessoas retornam ao sertão (CANDEEIRO MUSICAL, 2021c).

O próprio Paulo Freire confirma seu ciclo formativo infinito: “é a viola me jogando para o livro e o livro me devolvendo para a viola” (Paulo Freire apud TAUBKIN, 2008, p. 78-79). Nélio Spréa foi uma das pessoas que “retornaram ao sertão” em busca de suas próprias experiências, inspirado nas experiências de Freire e sua viola. De lá, Nélio pôde confirmar que o desenvolvimento da musicalidade se dá muito além do estudo da música em si, mas também pelo encontro com as pessoas.

Embora não soubesse o que fazer quando chegou no sertão, assim como outros, conhecidos como o “povo de Paulo”, lá no sertão no Urucuia, Nélio conseguiu se religar com a nova-antiga forma de se fazer música. A forma primordial e primeira de se fazer música, estabelecida no tempo em que duram os encontros, quer dizer, o “não tempo” é a forma. Fazer música pela música, pela fé e pela festa, em um lugar onde os relógios, cronômetros e máquinas gravadoras não ditam a duração do tempo musical. Algo que também nos sinaliza Renata Amaral no relato de seu encontro com o povo Guarani. Uma relação que “para além dos códigos musicais” lhe “permitiriam vislumbrar essa humanidade mais sensível e volátil” (AMARAL, 2018, p. 10).

A grandeza do sertão de Rosa em sua obra contribuiu para que o professor e o musicólogo que existem em Ivan Vilela enxergassem que onde se criam “fechamentos” regionais se instituem também separações em categorias qualitativas. Para o território da cultura popular brasileira, segmentar-se por regiões, significa consequentemente estabelecer padrões de qualidade onde algumas obras, normalmente circunscritas aos eixos de domínio político-econômico, se estabeleçam como arte nacional, enquanto as demais precisam superar determinado nível ou chamar muita atenção para se elevar a partir da categoria menor de música ou arte regional34.

Com Vilela e sua música, que embora seja majoritariamente instrumental, podemos perceber como a força das paisagens35 e das crônicas das vidas sertanejas

materializadas artisticamente em forma de literatura em Rosa, terminam em povoar criativamente sua arte musical.

É sabido que há um traço peculiar no exercício criativo com as palavras na literatura de Guimarães Rosa36. Característica admirada por uns e refutada por outros,

originada também a partir de suas memórias e experiências da infância e juventude mineira, de estudar outras línguas ainda muito criança. Diz Rosa:

Acho [...] que as palavras devem fornecer mais do que significam. As palavras devem funcionar também por sua forma gráfica, sugestiva e por sua sonoridade, contribuindo para criar uma espécie de ‘música subjacente’. Daí o recuso às rimas, à assonância e, principalmente, às aliterações. Formas curtas, rápidas, enérgicas. Força, principalmente (ROSA apud STARLING, 2017, p. 157).

Se para Rosa, seu material de trabalho é a palavra na busca de sonoridades, Ivan parte das sonoridades em busca de texturas musicais em seu processo criativo. Algo diretamente similar do ponto de vista artístico na tentativa mimética de representação criativa da realidade que se avista. Como diz Ivan, “ler o mundo pela micro-história” (CANDEEIRO MUSICAL, 2021b). Como confirma Rosa, “todos os meus livros são simples tentativas de rodear e devassar um pouquinho o mistério cósmico, esta coisa movente, impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, que é a chamada ‘realidade’, que é a gente mesmo, o mundo, a vida” (ROSA, 2019a, p. 539). Ou como ratifica a obra de Elomar Figueira Mello, “assim como os jagunços de Guimarães Rosa falam a língua de Dante e Dostoiévski, os cantos populares de Elomar ecoam árias de óperas; do mesmo modo que suas antífonas brotam do sal da terra” (CUNHA, 2008, p. 13).

Um ponto de interseção entre as apropriações das vidas-obra de Mário de Andrade e Guimarães Rosa é o hábito de ler e reler seus textos. Tanto Nélio e Renata que leem “com gosto” diversas vezes os textos de Mário, como Ivan Vilela e Paulo

35 Referência à música “Paisagens” de Ivan Vilela, lançada no álbum homônimo em 1998. 36 Ver, TATIT, 2010.

Freire, que assumiram o compromisso pessoal de ler anualmente a obra prima Grande

Sertão: Veredas.

Surge desta constatação que seus processos formativos se dão, pela leitura sensível das obras, em forma circular espiral, onde a cada ano surgem coisas novas das mesmas obras, refigurações de si. Como diz Ivan Vilela: “a cada ano era um livro novo que eu lia. Porque eu estava diferente e aquele livro você pode ler de várias maneiras” (CANDEEIRO MUSICAL, 2021b). Contudo, para a formação da obra musical, especialmente em Ivan Vilela, essa revisita, torna-se processo criativo. Suas músicas, segundo ele, vão por elas mesmas aos poucos se cristalizando, num sentido de que seu exercício criativo extrapola sensações físicas e, de uma forma um tanto mediúnica, incluindo-se também erros e acertos, a música vai se estabelecendo. Processos estes que por vezes se estendem durante muitos anos até que se dê por concluída uma composição.

Viver a obra de Guimarães Rosa é também, em certa medida, ser uma pessoa em constante movimento, com extensa produção e com olhos atentos ao que pode vir a ser. A exemplo de Rosa, que se formou e experimentou a medicina, mas foi um diplomata que alcançou o topo da carreira e, que ainda assim, publicou no mesmo ano de 1956 os largos e profundos livros, Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas.

Encontramos Ivan Vilela, que estudou História, composição, tocou violão, mas se apaixonou pela viola, tornou-se professor universitário e torrente pesquisador e, que ainda assim, mantém cheia agenda de shows e concertos.

Encontramos Nélio Spréa, que se interessou pelo direito, filosofia e antropologia, mas formou-se em educação musical e, que ainda assim, tornou-se um brincante, transitando pelos teatros, terreiros e escolas, produziu diversos espetáculos e se encantou pela educação e sobre ela fala às crianças e professores.

Encontramos Renata Amaral, que sempre foi ávida leitora, uma criança e uma mulher que se dedicou a estudar, conhecer de tudo um pouco, que se formou em composição e regência musical, mas que se encantou pela música das comunidades indígenas e também dos povos pretos e, que ainda assim, encontra em sua curiosidade, espaço para criar um acervo de memórias da cultura popular e mantém farta agenda de apresentações musicais e visitas aos seus parceiros de cultura e arte por todo o Brasil.

Não se trata aqui de simples e rasa comparação, ou pura louvação de feitos. Ouvir as narrativas e ter a oportunidade de dialogar com cada um dos três participantes, me mostra muito claramente que nenhum deles, nem mesmo Guimarães Rosa, se sente bem-sucedido, no sentido de pôr termo às suas carreiras profissionais em vistas ao volume e densidade de suas produções. Podemos sentir e compartilhar de suas emoções ao narrarem suas experiências com seus novos projetos, essa contínua e eterna busca de si. Fazer as malas para uma viagem de encontros musicais e pensar como Renata Amaral, “ôba”.

“Ah, esta vida, às não vezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande. [...] O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais” (ROSA, 2019a, p. 304). “No Todo-Fim-É-Bom” (ROSA, 2017, p. 212).

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