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1. GIROS E(M) ENCRUZILHADAS: andanças da pesquisa

1.2. Encruzilhada: Laroyê

Olha quem vem lá no portão De capa e cartola e pé no chão Olha quem vem lá no portão De capa e cartola e pé no chão Será seu Tranca rua

Será, será Será Exu Veludo Será, será Será Exu caveira Será, será

Será seu Capa preta Será, será

Será seu Marabô Será, será Será Exu do Lodo Será, será

(...)

Esse ponto de Umbanda reflete o princípio dinâmico de Exu, o Senhor das Encruzilhadas, e inúmeras vezes foi cantado na Tenda de Umbanda Pai Domingos de Guiné24.

O ponto cantado dá margem para inserir os diversos nomes que recebe a entidade, em vários ciclos musicais e ilustrando sua dinamicidade, tais como: Exu Calunguinha, Exu Campina, Exu Caveirinha, Exu da Calunga, Exu da Madrugada, Exu da Mata, Exu da Meia Noite, Exu da Praia, Exu do Cruzeiro, Exu do Lodo, Exu dos Rios, Exu Gira Mundo, Exu Lalu, Exu Nova, Exu Malandrinho, Exu Mangueira, Exu Mulambinho, Exu Mulambo, Exu Pinga Fogo, Exu Pino da Meia Noite, Exu Quebra Galho, Exu Quebra Osso, Exu Rola Rola, Exu Sete Catacumbas, Exu Sete

23 Saudação a Exus e Pombagiras realizada com os dedos entrecruzados. A tradução de origem Nagô/Yorubá não

tem tradução literal e seria algo como ‘vamos juntos”, vamos trabalhar”, especialmente, porque Exu é a figura com a qual os trabalhos em um terreiro de Umbanda são abertos.

Chaves, Exu Sete Covas, Exu Sete da Lira, Exu Sete Giras, Exu Sete Luas, Exu Sete Ossos, Exu Sete Sombras, Exu Tatá Caveira, Exu Tira Teima, Exu Toco Preto, Exu Toquinho de Ouro, Exu Toquinho, Exu Tranca Gira, Exu Tranca Tudo, Exu Trinca Ferro, Exu Tronqueira.

Imagem 8: Esu Amuniwá (1982), de Mestre Didi. Barro, cimento e pigmento, 67x20x18 cm.

Fonte: Museu Afro-Brasil, São Paulo.

Imagem 9: Representação de Exu, de Rubens Caribé.

É para Exu que se canta e pede licença e comunhão para que qualquer gira de Umbanda possa acontecer. Para esse orixá é oferecida a saudação primeira, como forma de abrir os caminhos e seguir juntos. A deidade referida traz uma personalidade atrevida e agressiva. Seu elemento é o fogo e seu símbolo, um Ogó (bastão adornado com cabaças e búzios, por vezes, representada por um falo). Suas cores características são vermelha e preta e no sincretismo católico associa-se a Santo Antônio. Seu dia da semana é segunda-feira e as oferendas são farofa com dendê, feijão, inhame, água, mel e aguardente. Os seus animais de sacrifício são o bode e o galo preto. Nas imagens acima, Exu carrega no corpo alguns de seus elementos característicos e é através deles que poderemos trazer à tona uma possível imagem arquetípica do mito.

São bastante populares as imagens escultóricas para representar as nuances de capa tipo de orixá, nos terreiros e em casas de umbanda (de cunho comercial). Nessas imagens, algumas características se fazem presentes: - o tipo da vestimenta, o gesto e a expressão corporal, o elemento emblemático que segue na extensão do corpo – tridente, capas, ervas, garrafas, chaves, caveiras, porteiras, cabaças, ogó (bastão) etc. A imagem 10 mostra cinco imagens: Exu Sete Porteiras, Exu do Lodo, Exu Tiriri, Exu Tranca Rua das Almas, Exu Veludo:

Imagem 10: Representações escultóricas de Exu.

Fonte: https://goo.gl/eZJAT8. Acesso em: 31 mar. 2019.

Figura dúbia, Exu apresenta seu lado “feminino” que vibra na mesma frequência da astúcia, a pomba-gira. A entidade geralmente trata de problemas de amor e representa o avesso do mundo. É explosão da sexualidade reprimida pelo patriarcado. É mãe e amante, é carinhosa e agressiva, acolhe, mas repele. É figura do jogo e, assim como Exu, possui vastas representações e nuances como mostram as imagens seguintes, Pombagira Sete Encruzilhadas,

Pombagira Mirongueira, Pombagira Rosinha Exu Gira Mundo, Pombagira Cigana, Pombagira Mulambo.

Imagem 11: Representações escultóricas de Pombagiras.

Fonte: https://goo.gl/eZJAT8. Acesso em: 31 mar. 2019.

Um dos mitos sobre Exu, abordados por Prandi (2001) sobre como este se tornou o dono das encruzilhadas, demostra um caráter faceiro e astuto do anti-herói (desherói):

Exu não tinha riqueza, não tinha fazenda, não tinha rio, não tinha profissão, nem artes, nem missão. Exu vagabundeava pelo mundo, sem paradeiro. Então um dia, Exu passou a ir à casa de Oxalá. Ia à casa de Oxalá todos os dias. Na casa de Oxalá, Exu se distraía, vendo o velho fabricando os seres humanos. Muitos e muitos também vinham visitar Oxalá, mas ali ficavam pouco, quatro dias, oito dias, e nada aprendiam. Traziam oferendas, viam o velho orixá, apreciavam sua obra e partiam. Exu ficou na casa de Oxalá dezesseis anos. Exu prestava muita atenção na modelagem e aprendeu como Oxalá fabricava as mãos, os pés, a boca, os olhos e os genitais. Durante dezesseis anos, ali ficou ajudando o velho orixá. Exu não perguntava. Exu observava. Exu prestava atenção. Exu aprendeu tudo. Um dia, Oxalá disse a Exu para ir se postar na encruzilhada por onde passavam os que vinham à sua casa. Para ficar ali e não deixar passar quem não trouxesse uma oferenda a Oxalá. Cada vez mais, havia mais humanos para Oxalá fazer. Oxalá não queria perder tempo recolhendo os presentes que todos lhe ofereciam. Oxalá nem tinha tempo para as visitas. Exu tinha aprendido tudo e agora podia ajudar Oxalá. Ele coletava os ebós para Oxalá. Ele recebia as oferendas e as entregava a Oxalá. Exu fazia bem o seu trabalho e Oxalá decidiu recompensá-lo. Assim, quem viesse à casa de Oxalá teria que pagar também alguma coisa a Exu. Quem estivesse voltando da casa de Oxalá também pagaria alguma coisa a Exu. Exu mantinha-se sempre a postos guardando a casa de Oxalá. Armado de um ogó, afastava os indesejáveis e punia quem tentasse burlar sua vigilância. Exu trabalhava demais e fez ali a sua casa, ali na encruzilhada da casa de Oxalá. Ganhou uma rentosa profissão, ganhou seu lugar, ficou rico e poderoso. Ninguém pode mais passar pela encruzilhada sem pagar alguma coisa a Exu. (PRANDI, 2002, pp. 43-44)

A encruzilhada é, portanto, o lugar de Exu, princípio dinâmico, terreno este que consideramos, território da criação, do conhecimento e da comunicação. Entroncamento de

caminhos que operam modos singulares de viver e de ver o mundo, a respectiva metáfora é trazida para essa tecedura, como um espaço que dá possibilidade de pensar tais confrontos e suas elaborações estéticas e discursivas.

Presente no imaginário da cultura brasileira, a encruzilhada é lugar de desterritorialização, de encontros e de conflitos, lugar do sincretismo, da mestiçagem, e é vista em nossa peregrinação como a profusão de outros olhares, da desestabilização do pensamento no advento da experiência do acontecimento. Desse lugar, intersecionamos propostas de caminhares, que pautadas pelo caráter processual, que dilui a fronteira entre sujeito-objeto e propõem um pensamento sempre em movimento. Na astucia de seus guardiões, Exus e Pombagiras, propõem-nos olhar além da casca.

Leda Maria Martins (1997), num olhar atento sobre a Congada, em uma das irmandades do Rosário, localizado em Minas Gerais, aborda a encruzilhada como um sistema filosófico-religioso de origem iorubá, espaço físico e também metafórico em que se fazem oferendas a Exu e suas falanges.

É pela via dessas encruzilhadas que também se tece a identidade afro brasileira, num processo vital móvel, identidade esta que pode ser pensada como um tecido e uma textura, em que as falas e os gestos mnemônicos dos arquivos orais africanos, no processo dinâmico de interação com o outo, transformam-se e reatualizam-se, continuamente, em novos e diferentes rituais de linguagem e de expressão, coreografando a singularidade e alteridades negras. (MARTINS, 1997, p. 26)

Com isso, dispara a dimensão espaçotemporal, marcada por uma forma de conhecimento, uma epistemologia própria, intersecionada pela ancestralidade africana. Lugar da crise, da interrogação, propensa ao surgimento do novo, de novos caminhos, de novos espaços e atravessamentos. Desse cruzamento, enuncia-se um pensamento sempre movente como o próprio princípio dinâmico de seu panteão simbólico, Exu.

A artista da dança senegalesa, Germaine Acogny, na entrevista La danse d'être25

elucida o lugar da dança como uma oração diária, revelando que tal oração é dedicação aos seus (nossos) ancestrais, pedindo a Legba (uma das formas como exu é conhecido), segundo ela, protetor das casas de mensageiro de Deus, pedindo autorização e ajuda para poder dançar. Evocar a encruzilhada demarca uma possibilidade física e imaginal que, de um modo ou de outro, reflete as coexistências presentes na trama sociocultural brasileira, é também buscar “reativar o desejo, a alegria, o ímpeto, a festa e o instinto”, conforme articula

o baraperspectivismo26 de Santos (2015, p. 49) para impor um “basta” aos desmandos de uma

realidade que ainda tentam imperar na sociedade ocidental, na qual “as chagas do século XIX continuam abertas”. Bará quer dizer, Rei do Corpo, portanto, essa ideia a partir do simbolismo de Exu, figura trickster vem aprofundar uma perspectiva sobre o acontecimento que se dá por meio e no corpo e sua possibilidade de existência na sociedade contemporânea, ou seja, o corpo como encruzilhada. Tal ideia “é o princípio dinâmico que mobiliza o desenvolvimento, o devir das existências individualizadas e da existência de todas as unidades do sistema (SANTOS, 2006, pp. 180-181). Ou seja, a característica desse panteão trickster está relacionado ao humor, à trapaça, à arte, ao incômodo, ao diálogo entre lados opostos, à comunicação.

Assim como o/a giro/a, a encruzilhada, além de um espaço físico, conflita-se no corpo. Lugar de centramentos e descentramentos, multiplicidade, da profusão mestiça que nos constitui, das diásporas ancestrais e cotidianas incrustradas, da negociação das identidades e da transculturação. Pensar na encruzilhada é, então, pensar no ponto explosivo do acontecimento. Os fluxos dos caminhos, presentes nos giros, dão vazão a esse lugar de encontro, síntese para pensar o acontecimento.

Enquanto espaço limiar da profusão de uma nova possibilidade de ruptura epistemológica, a encruzilhada tem sido tensionada com bastante ímpeto nos estudos acadêmicos nas artes da cena como observamos em Lima (2012), Navarro, Kopelman e Sobrinho (2013), Soares (2018) e Ramos (2018) e na produção artística, a exemplo do Grupo Corpo com o espetáculo Gira27, o coletivo Fragmento Urbano, com o espetáculo Encruzilhada28,

o artista Luiz Ferron com o espetáculo Baderna29, a antropóloga e artista Luciane Ramos, com

sua produção artística30, a produção do grupo Pindorama31, sob direção de Grácia Navarro e

26 Rodrigo dos Santos (2015) apresenta baraperspectivismo como uma luta contra o logocentrismo. Dessa

perspectiva, tal conceito está vinculado aos dispositivos do pensamento trágico que se encontram, por um lado, com a filosofia de Nietzsche e, por outro nascem da experiência provocada pelo ritual trágico yorùbá, a partir da obra do teatrólogo nigeriano, Wole Soyinka. Cabe ressaltar que, barra trata-se de umas das falanges de exus, considerado nas umbandas e candomblés do senhor das encruzilhadas, guardião dos caminhos.

27 Disponível em: <http://www.grupocorpo.com.br/obras/gira>. Acesso em: 13 fev. 2019.

28 Disponível em: <https://www.fragmentourbano.com.br/encruzilhada>. Acesso em: 13 fev. 2019. 29 Disponível em: < http://luisferron.com/projetos-e-obras/12-projetos/36-baderna>. 13 fev. 2019. 30 Disponível em: https://vimeo.com/lucianeramoss. Acesso em: 13 fev. 2019.

atomização de muitos outros fazeres em dança e teatro, na perspectiva da encruzilhada como o próprio lugar de fala de artistas e coletivos dos mais distintos pontos do Brasil.

Nas encruzilhadas, portanto, há a possibilidade do acontecimento advindo da experiência, a qual, nesse lugar, não é um acontecimento comum, pois nos atravessa, forma e transforma. A perspectiva da experiência de Larrosa (2014b, p. 43), “não como o que é, e sim como o que acontece, não a partir de uma ontologia do ser e sim de uma lógica de acontecimento(s), através de um logos do acontecimento”. Nas encruzilhadas, em seus múltiplos entroncamentos, haverá a possibilidade de maior expressão política de saberes e práticas sociais negadas ou negligenciadas pela ciência moderna ocidental, que acusa de ignorante, residual, localista ou inferior as formas de espaço que não se pautam na racionalidade ocidental moderna, que desconfia sempre da experiência, tentando convertê-las em métodos.

Delimitamos, então, um Corpo Mnemônico entoado de giros e encruzilhadas, no qual, de uma perspectiva autoral, poderá ser possível potencializar a produção do conhecimento que advém da experiência, nos dizeres de Larrosa (2014b) “é isso que me passa e que supõe, em primeiro lugar, um acontecimento”. A experiência tida como acontecimento (no corpo) propõe uma relação de reflexividade, subjetividade e transformação.

O percurso da experiência considera um olhar em movimento, um pensamento que se dá em ação, abrindo f(r)estas e muitas fissuras. O movimento, nesse girar, busca, de algum modo, interrogar a multiplicidade de discursos que regem padrões, modelos, estéticas. Na contemporaneidade, movimentamos espaços das singularidades de um modo de fazer relacional, entrelaçando, interligando ideias, experiências, transitando entre fronteiras possibilitando a construção de sentidos em práticas dialógicas, elementos essenciais que nos fazem aproximar de uma possível Ecologia de Saberes (SANTOS, 2010a). O entrecruzamento com as corporalidade popular brasileira nos permite olhar essas aberturas para provocar outras produções de sentido e vida, num profícuo diálogo intercultural, um lugar onde estratégias diáfanas são lançadas, dia a dia, em prol da manutenção de suas ações performativas.

Ao nos posicionar mediante as encruzilhadas, previstas e tantas outras achadas, ao longo do caminho, desnudamos o olhar das premissas que, muitas vezes, nos aprisionam e seguimos na perspectiva da soma, dos atravessamentos, o que possibilitará uma caminhada singular atada aos sentidos e pertinências dos estudos das artes da cena contemporânea, clamando um lugar que este posicionamento poderá fissurar.

Por fim, para sincopar esse momento, apropriamo-nos deste lugar de pensamento, por perceber que o mito é a lógica que opera nas tradições da oralidade popular brasileira, sendo essa aproximação com os processos e experiências de criação performativas, pulsões para a abertura de novos caminhos. A encruzilhada, local de despacho nas manifestações de Umbanda, é também lugar onde despachamos nossos processos de criações reverberados num espaçotemporal sempre aberto aos encontros.