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Enfrentamento ao Crack: Por que seus dependentes ganharam evidência?

Capítulo IV DESCORTINANDO O CENÁRIO DE IMPLANTAÇÃO DA

4.2 O processo de implantação da Política de drogas no Município do Rio de

4.2.2 Enfrentamento ao Crack: Por que seus dependentes ganharam evidência?

Inicialmente, vale salientar os eventos internacionais ocorridos na cidade do Rio de Janeiro: a Rio + 20 (realizada em 2012); a Copa das Confederações (junho de 2013); a Jornada Mundial da Juventude (julho de 2013) e o Rock in Rio (setembro de 2013 e 2015); a Copa do Mundo, em 2014 e os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos, em 2016, advindo com os mesmos uma extrema necessidade de uma “maquiagem” da cidade do Rio de Janeiro

para as suas realizações, onde as cracolândias não poderiam fazer parte do cenário da “cidade maravilhosa”.

A Prefeitura do Rio de Janeiro vinha realizando, segundo Lima (2013, p. 309):

[...] a perseguição implacável das pessoas em situação de rua, em especial das crianças e adolescentes dependentes do uso do crack e de outras substâncias psicoativas: o recolhimento compulsório é o exemplo mais emblemático desse governo, pois metamorfoseia a assistência social por um viés policialesco e encobre o autoritarismo sob o falso manto da proteção.

A Prefeitura aprovou em 27 de maio de 2011 a Resolução n. º 20 da Secretaria Municipal de Assistência Social – SMAS –, “que cria e regulamenta o Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social”. No art. 5º da resolução, indica-se que os procedimentos do Serviço Especializado em Abordagem Social, devem ser realizados por equipes do Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS (Equipe Técnica e de Educadores Sociais). A polêmica fica ainda mais acentuada, com o trecho da Resolução em que “a criança e o adolescente que esteja nitidamente sob a influência do uso de drogas, afetando o seu desenvolvimento integral, será avaliado por uma equipe multidisciplinar e, diagnosticada a necessidade de tratamento para recuperação, o mesmo deverá ser mantido abrigado em serviço especializado de forma compulsória.”

Cabe destacar que o “recolhimento compulsório” foi recebido de maneira bastante positiva e entusiasmada pela mídia, de acordo com Lima (2013, p. 343-344):

[...] como um “mal necessário” para combater as expressões da “questão social” (que pautaram os jornais de grande circulação por um período determinado) e também para dar uma resposta “positiva” aos veículos midiáticos que representam, como um “partido político” no sentido gramsciano, os interesses hegemônicos dos setores envolvidos com as cifras bilionárias, por exemplo, aqueles envolvidos com negócios esportivos no mundo (FIFA, COI).

Há que se enfocar que não existe respaldo científico sinalizando que o tratamento para dependentes deva ser feito preferencialmente em regime de internação. Paradoxalmente, internações mal conduzidas ou erroneamente indicadas tendem a gerar consequências negativas. Segundo Valença (2013, p. 110):

quando se trata de internação compulsória, as taxas de recaída chegam a 95%! De um modo geral, os melhores resultados são aqueles obtidos por meio de tratamentos ambulatoriais. Se a internação compulsória não é a melhor maneira de tratar um dependente, o que dizer de sua utilização no caso de usuários, não de dependentes?

Em contraposição aos preceitos da Política de Redução de Danos, da Política de Atenção aos Usuários de Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde – Portaria nº 336/GM/2002 – e da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) - Portaria nº 3.088/2011, pautados na “[...] lógica do território, fortalecimento de vínculos, participação social e estado de direitos” (PRUDÊNCIO, 2017, p. 183) e considerando os princípios da intersetorialidade e da integralidade do cuidado em saúde, tem-se a internação compulsória dos usuários de crack, onde: “[...] a ordem do ‘tratamento’ se coloca pela opressão, imposição e confinamento, configurando-se um terreno fértil para a legitimação da ‘guerra às drogas’ e não do cuidado em saúde” (ibidem, p. 184). A internação psiquiátrica74

compulsória deveria ser utilizada como algo excepcional no caso de usuários de drogas, como a última alternativa de tratamento e não como a principal estratégia a ser utilizada para “limpar” os grandes centros urbanos.

Todavia, em contraposição a uma articulação intersetorial seriamente estudada e implementada para tratar da problemática do consumo de drogas, priviligia-se à internação em clínicas especializadas ou comunidades terapêuticas. Como as clínicas especializadas são muito caras e atingem uma parcela reduzida do universo de usuários, investe-se no segundo modelo, onde “no momento, estima-se que cerca de três mil comunidades terapêuticas abriguem mais ou menos 60 mil usuários” (VALENÇA, 2013, p. 111).

A partir de 2010, as comunidades terapêuticas passaram a contar com o apoio Federal, habilitando-se, assim, a receber R$24 milhões, a serem debitados do total de R$410 milhões destinados, em 2011, pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) e pelos Ministérios da Justiça e da Saúde, ao Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas. Visando agilizar tal apoio, no dia 26/06/11, a presidenta Dilma Rousseff sancionou a constituição de um grupo de trabalho, sob a liderança da ministra- chefe da Casa Civil, para promover mudanças na legislação que permitam a inclusão de comunidades terapêuticas no atendimento aos dependentes de substâncias químicas. Vale destacar que, às vésperas das eleições de 2010, muitas campanhas foram marcadas pela politização dos discursos a favor da internação, destacando as comunidades terapêuticas

74 Lei nº 10. 216/01 - Art. 6º A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico

circunstanciado que caracterize os seus motivos.

Parágrafo único: São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica: I – internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;

II – internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiros; III – internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.

como uma das soluções viáveis para a problemática do crack. Cabe lembrar também que muitos parlamentares já mantiveram ou mantém relações próximas com tais comunidades e, em alguns casos, lideram instituições do tipo (VALENÇA, 2013).

Mesmo sendo objeto da simpatia de tantos políticos, várias destas comunidades ainda não aderiram plenamente ao Plano traçado em 2010, pois consideraram inaceitáveis as restrições metodológicas em relação às suas “terapias da fé”, não concordando que o governo interfira na obrigatoriedade de cultos. De acordo com pontos de vista jurídicos, a opção terapêutica que esses grupos oferecem vai contra a Constituição, ao não permitir que os usuários/internos professem suas próprias crenças, ou assumam a ausência delas. Para as comunidades terapêuticas, os usuários de drogas não têm muitas escolhas. O modelo de tratamento encontrado nessas comunidades além de imprimir “terapias da fé” incontornáveis, é compulsório, pois, apoiadas num ponto de vista muito mais moral do que médico ou psicológico, representa o usuário de crack como uma pessoa que está fora de controle, exatamente por não sustentar modalidades de fé. Sob este prisma, os usuários seriam pessoas esvaziadas de fé e seria esse o vazio que tentam preencher com o uso de drogas. A partir dessa convicção, a missão das comunidades terapêuticas seria a de retirar a droga de suas vidas e colocar a fé no seu lugar (ibidem), desconsiderando totalmente os preceitos da Reforma Psiquiátrica.

Vale salientar também o enorme preconceito que parcela dos usuários de crack sofre, pois:

constata-se que a marginalização social do usuário de crack é grande, maior do que a vista para qualquer outra droga lícita ou ilícita. Muitos vivem em condições de extrema pobreza, de acentuada privação material e em situações de instabilidade doméstica. Embora o dano causado pelo uso da substância seja grande, ao contrário do que o senso comum nos leva a crer, uma parcela dessa população se mantém engajada no consumo da droga por períodos de anos e muitos têm contato com a substância sem progredir para sua dependência de forma imediata (MOREIRA, 2013, p. 91).

A representação social dos usuários de crack vem sendo construída majoritariamente de forma bastante negativa, sem que a voz dos seus atores principais seja escutada. Um determinante central para que a surdez social em relação a estes atores seja configurada passa pela dinâmica processual da cultura de costumes contemporânea que faz com que os usuários de drogas sejam representados pela população brasileira como uma das categorias pela qual ela sente mais antipatia, abaixo apenas da antipatia pelos que não crêem em Deus, considerando uma pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo,

publicada em 2009, indica que 39% da população brasileira professa antipatia pelos ateus e 37% professa antipatia pelos usuários de drogas, de acordo com Valença (2013). No que se refere à pergunta sobre quais as pessoas que menos gostam de encontrar, 35% responderam que são os usuários de drogas, seguidos pelos descrentes em Deus (26%) e ex-presidiários (21%), de acordo com a mesma pesquisa (ROSA, 2014).

Segundo Valença:

o crack é cada vez mais representado como o veneno da contemporaneidade, propiciando o status de excluídos e disfuncionais aos indivíduos “tornados objetos” de seu consumo, consumo que os aliena quase de modo irreversível – nesse sentido é emblemática uma representação midiaticamente consagrada na cidade de Salvador, Bahia: “crack, cadeia ou caixão!” (2013, p. 106).

Este tipo de representação midiática supervaloriza a substância, personificando a mesma e torna o sujeito que a consome em objeto da sua ação, no caso, sempre negativa, tirando-lhe a sua responsabilidade pelo seu consumo.

Vive-se num momento histórico, do ponto de vista legal, no qual gradativamente se passa de uma perspectiva policial para uma perspectiva de saúde como abordagem para a cultura das drogas – cultura num sentido de que os usuários constroem e compartilham valores, rituais de uso e controles próprios. A perspectiva repressiva, ao não considerar essa cultura e focar prioritariamente no indivíduo supostamente alienado pela substância, não resolveu o problema, mas trouxe outros: estigmatização e morte de muitos jovens ligados ao tráfico, população carcerária acima da capacidade gerando mais violência, força policial aliciada pela corrupção e traficantes mitificados como único modelo de ascensão para grande parte de crianças, adolescentes e jovens pobres. O crack, com valor de mercado mais baixo do que o valor da cachaça, do tabaco, da maconha e da cocaína, se tornou mercadologicamente difícil de combater com medidas exclusivamente pautadas na repressão (VALENÇA, 2013).

Cabe destacar que:

se o consumo de drogas lícitas como, por exemplo, as bebidas energéticas compostas de taurina, ou ilícitas como a cocaína e o crack potencializam a produtividade ou melhoram a “qualidade de vida” dos indivíduos, docializando seus corpos para o trabalho, o uso destas substâncias pode ser visto como algo benéfico. No entanto, se o seu consumo compromete a produtividade, isso será tratado como um problema social e, sobretudo, de saúde pública, uma vez que o torna um ser supostamente inútil, ausente do domínio de algum tipo de perícia e sem aquela narrativa de produtividade esperada pela racionalidade neoliberal (ROSA, 2014, p. 337).

É fundamental que o usuário de crack seja percebido como um cidadão e não como sujeito desprovido de motivação, de entendimento da sua realidade e de autonomia para, dentro do seu tempo, transformar o curso sua prática com a droga, caso seja esta a sua vontade. Dessa forma, “é importante que se amplie a compreensão do consumo do crack para além do reducionismo de entendê-lo como um encontro sempre trágico e aniquilador entre a droga e o indivíduo impotente para lidar com seus efeitos” (VALENÇA, 2013, p. 94). Assim, ao contrário do difundido de forma exaustiva pela mídia, a dependência de crack não se instala magicamente no primeiro contato com a substância, ela é um somatório de inúmeros fatores de quem o consome. Enfim, é importante ressaltar que:

a droga continua fazendo valer a sua importância na economia da libido humana. Alçada à condição de principal mercadoria do mundo, os meios químicos de prazer sofreram um crescimento análogo em seu valor mercantil e em sua influência econômica, social e cultural. Ao mesmo tempo que cresce a demanda pelo prazer químico, também institui-se um sistema proibicionista que apóia-se num discurso médico-jurídico para justificar uma pretensa guerra contra as drogas que, na verdade, desde a Lei Seca de 1919, nos EUA, só tem servido para aumentar o lucro e a violência. A história dessa guerra, em seus aspectos econômicos, culturais, políticos e militares ainda está sendo escrita (CARNEIRO, 2002).

A “guerra” instaurada contra os usuários de crack, sobretudo, contra aqueles que convivem nas cracolândias propõe-se a aniquilá-los, sem a menor preocupação em compreender e cuidar dos sofrimentos que levaram a estas pessoas a viverem em condições tão subumanas. Como sempre no capitalismo, a vítima vira algoz, a consequência vira causa, onde problemas estruturais viram simples situações, fáceis de serem solucionadas e eliminá-las.