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Enfrentando a “idiota automovente”

No documento Programa de Pós-Graduação em Arte (páginas 34-39)

1. Que dança me move?

1.1. Enfrentando a “idiota automovente”

A primeira etapa do meu processo criativo consistiu em um levantamento dos materiais que trariam estímulo à criação. Eu passava por uma crise em relação à minha paixão pela dança do ventre, paixão que já se estendia por tantas décadas, e comecei a acreditar que eu precisava encontrar para a minha dança uma identificação com o Brasil. Interessada pelo Movimento Armorial, fui buscar na obra de Ariano Suassuna os primeiros estímulos para improvisar. Escolhi para ler, dentre as possibilidades, Uma

Mulher Vestida de Sol (1964), Almanaque Armorial (2008) e Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1971). Assisti também ao Auto da

Compadecida em suas versões para cinema (2000) e televisão (1999).

Com o objetivo de aguçar minha sensibilidade imagética, pesquisei as xilogravuras de Gilvan Samico (fig.10). As texturas e cores me alegravam, eu tinha especial identificação com os temas que também se encaixavam com as leituras que eu vinha realizando e aquilo tudo fazia com que me sentisse imbuída de uma dança colorida, alegre, enraizada, repleta de sentidos, ao mesmo tempo sofrida, suada e difícil.

Para os estímulos sonoros pesquisei composições de artistas da Mauritânia, porque o imaginário dos Mouros me chamava especial atenção, e eu havia investigado que esse povo estava relacionado à história daquele país. Para complementar, recorri aos textos e à pesquisa das artes visuais, às composições da Orquestra Armorial e do Quinteto Armorial, bem como às obras de Antúlio Madureira25 e Antônio Nóbrega.

25 Licenciado em Música pela Universidade Federal de Pernambuco, Formado pelo Conservatório Pernambucano e pela Escola de Belas Artes, Antúlio Madureira é músico, compositor e artesão. Cria instrumentos musicais a partir de conceitos obtidos em suas pesquisas com instrumentos populares do nordeste do Brasil.

Munida dessas referências estéticas, iniciei uma imersão solitária em sessões de improvisação tendo como suporte as músicas selecionadas, que eram reproduzidas em aparelhos sonoros de modo ininterrupto por um tempo que costumava variar entre 30 e 50 minutos. O propósito era permitir uma contaminação musical semelhante à da concepção de Gabrielle Roth em sua prática denominada Power Wave, que consiste em deixar-se mover a partir dos estímulos das mudanças dos ritmos musicais. Em suas pesquisas, Roth identificou ritmos arquetípicos, que corresponderiam a diferentes estados de ser aos quais ela era transportada durante suas danças. Para estruturar um método que a permitisse compartilhar com outras pessoas suas descobertas, deu nome a cinco ritmos que ela considera essenciais, publicando-os em seu livro Os Ritmos da

Alma (1997). Esses ritmos, quando praticados em sequência, desencadeariam uma espécie de onda de energia. Inicia-se no ritmo fluente, no qual buscamos enraizamento e movemo-nos evitando interromper o fluxo de movimentos, o que proporciona uma maior ocorrência de padrões curvos e circulares. No ritmo staccato, interrompemos o fluxo propositalmente, causando padrões angulosos com valorização dos intervalos. Representando a crista da onda, o ritmo caos, como o próprio nome sugere, é o momento em que nos permitimos colapsar agitadamente numa espécie de fluxo repleto

Figura 10 - O Sagrado. Gilvan Samico, 1997. Xilogravura

Retirado da página:< http://www.40forever.com.br/livro-mostra-a-arte-de-samico-em-seu-esplendor/>

de interrupções, como se os ritmos fluente e staccato estivessem em colisão. A seguir entramos no ritmo mais peculiar, o lírico, quando devemos escolher um padrão de movimentos a ser repetido que deverá desencadear outros padrões de repetição sem uma interferência direta de escolha, buscando uma sensação de que o movimento é iniciado sem que haja um comando específico do seu pensamento. Em sua página eletrônica26, a autora nos diz que

The practice of Lyrical teaches us how to break out of destructive patterns and surrender into the depths of the fluid, creative repetitions of our soulful self, to the integrity and dignity that we often forget is within us. Lyrical is expansive and connects us to our humanity, timeless rhytms, repetitions, patterns and cycles.27

Finalmente, temos o ritmo quietude, quando os movimentos tornam-se mais lentos e conectados à respiração, encerrando a prática. Além do livro e da página na internet, o volume dois do vídeo Dances of Ecstasy (2003) é exclusivamente dedicado à

Power Wave, contendo indicações e mostras de cada um dos ritmos executados pela própria Gabrielle Roth, acompanhada por um grupo de dançarinos. Meu primeiro contato com esse material ocorreu em 2006 e desde então desenvolvo pesquisas sobre a relação entre música, ritmo pessoal, estados de ser, movimento e dança, praticando a onda dos cinco ritmos sempre que possível.

Algumas vezes gravei as músicas pesquisadas numa sequência que me permitia dançar fluente, staccato, caos, lírico e quietude, com as mesmas indicações da Power

Wave. Eu buscava uma entrega ao ritmo que me deixasse em um estado de alerta e concentração profunda, seguindo as recomendações de Roth de dançar sem esforço. Essa recomendação é repetida diversas vezes e enfatizada pela autora no vídeo, frequentemente associada à ideia de que o dançarino é a própria dança e que, portanto, não se move – é movido. Porém, essa assertiva é diferente da ideia defendida por Lepecki de que na Era Moderna o dançarino acaba por mover-se como um idiota, a partir de uma crença de que é necessário estar constantemente em ação. O movimento que domina o “idiota automovente” de André Lepecki (2010, p. 17) é absolutamente

26 <www.gabrielleroth.com>. Acesso em 14/10/2012.

27 A prática do Lírico nos ensina a quebrar padrões destrutivos para que possamos nos render às profundezas das repetições criativas e fluidas de nosso próprio ser repleto de alma, à integridade e dignidade que fazem parte de nós, porém costumamos esquecer. O Lírico é expansivo, nos conecta à nossa humanidade, ritmos infinitos, padrões e ciclos.

distinto do movimento que arrebata o praticante da Power Wave de Roth (2003). Acreditando ter controle sobre seus movimentos, os seres ansiosos hipermoventes de nossa sociedade contemporânea, na realidade estariam apenas obedecendo a um projeto capitalista, no qual a movimentação constante é altamente desejável. Um dos resultados disso é a perda gradual da consciência de si mesmo. No caso da Power Wave, apesar de suas danças ocorrerem independentes de comandos conscientes, sua prática contém ações específicas que desencadearão qualidades de movimentos a indivíduos que desejam esses resultados. Aprofundando um pouco mais, a dança de Gabrielle Roth atravessa o corpo, ou melhor, é o corpo. A identidade de quem dança deve se perder durante a prática, a exemplo do que ocorre com os Dervixes-Mevlevi da Turquia (fig. 11). Não é coincidência o fato de que imagens desses dervixes, membros do Sufismo – corrente mística islâmica que reúne aqueles que acreditam na possibilidade da experiência direta com Deus –, sejam utilizadas para ilustrar a parte que se refere à busca pela unidade a partir do transe que se experimenta ao girar, no primeiro volume do DVD Dances of Ecstasy (ROTH, 2003). Esses dervixes rodopiantes fazem parte da Ordem Sufi Mevlevi, fundada por sufistas inspirados nos ensinamentos do poeta, jurista e teólogo iraniano Jalāl ad-Dīn Muhammad Rūmī (1207-1273), que se baseava na crença de que o giro seria a expressão do amor divino. Percebendo que tudo gira – a Terra, os planetas, os tornados, os redemoinhos – Rūmī disseminou a ideia de que o sopro de Deus impulsionou os giros que deram início à criação do universo. Quem assiste a essa prática de meditação em movimento percebe que o dançarino se ausenta, se transforma, fazendo com que apenas o giro permaneça. Porém, essa identidade que se esvai para que a unidade permaneça, em vez de acarretar a perda da consciência de si, pelo contrário, permite uma ampliação da consciência.

Essa primeira etapa do processo criativo foi vivenciada com a condução de várias sessões de improvisação em dança, que algumas vezes se assemelhavam a práticas de meditação, com entrega e sem esforço. Eu me isolava nas salas de dança do IFB com um aparelho de som e ficava dançando livremente, com músicas e sonoridades que me inspiravam, tendo como estímulo as fontes pesquisadas em busca de identificações com o meu país. Foi uma fase de solidão, de autoconhecimento e questionamentos, um momento importante para enfrentar a dança da “idiota automovente”, trazendo consciência de minhas dificuldades ao improvisar e dos meus hábitos em relação aos movimentos automáticos e de minha dependência musical. Eu buscava uma entrega, mas percebia que em muitos momentos algumas sequências de movimentos aprendidos em aulas de dança se sobressaíam em minha improvisação e meus pensamentos tornavam-se julgamentos. Eu escolhi não registrar essa etapa para não me prender aos referenciais estéticos das formas dançadas, pois decidi que essa fase

Figura 11 - Dervixes-Mevlevi da Turquia

Imagem retirada do Blog Wonders of Pakistan: http://wondersofpakistan.wordpress.com/category/sufism/page/2/>.

era de experimentação, de pesquisa das minhas sensações. Meu principal conflito era o da “idiota automovente”, o de me perceber em um movimento incessante.

No documento Programa de Pós-Graduação em Arte (páginas 34-39)