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de absoluta ineficácia, o combate a este crime ser isolado nem consistir em ações unilaterais dos Estados consumidores mais ricos 130

PALABRAS CLAVE

I) Enquadramento e considerações preliminares

A redacção do art. 368.º-A do Código Penal – CP – (1) anterior à actual, proveniente da Lei que dá título a este trabalho, resultava da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, que introduziu a 23.ª alteração ao CP. Como forma de transposição, no essencial, das exigências derivadas da chamada “quarta directiva”, em matéria de branqueamento e de luta contra o financiamento do terrorismo, o inciso foi alterado, cabendo desde logo sublinhar que a terminologia “branqueamento de capitais” não é tecnicamente precisa (mesmo que usada pelo legislador comunitário), visto que não são apenas os capitais que podem ser objecto das condutas proibidas, abrangendo-se sim todas as vantagens, produtos e instrumentos advenientes à esfera jurídica do agente e que resultam da prática de um ilícito antecedente. Só por antonomásia, uma vez que é verdade que na generalidade das hipóteses são os capitais os bens estatisticamente mais representativos do branqueamento, se compreende a vulgarização da designação inexacta em termos técnicos, o que não elimina a sua crítica. Bem andou, por isso, o nosso legislador, ao epigrafar o sobredito art. 368.º-A apenas com a designação de “branqueamento”.

Para além disto, ou seja, da intervenção no tipo legal, a Lei ora em análise criou um verdadeiro Código em matéria de prevenção de movimentos

(1) Doravante, qualquer referência a um normativo legal desacompanhada da indicação expressa do diploma

financeiros que possam ser considerados suspeitos, de difícil aplicação prático- normativa (pela sua extensão e complexidade técnica), instituindo-se um vero modelo de compliance para um conjunto de entes obrigados (de tão diversa natureza como as instituições de crédito às imobiliárias, passando pelos advogados), os quais têm de conhecer o melhor possível os seus clientes, transferindo-se algumas obrigações de vigilância e supervisão dos reguladores, das autoridades judiciárias e dos órgãos de polícia criminal para outras pessoas singulares e colectivas, no que é mais um exemplo de um movimento de concurso dos particulares na tarefa estadual de administrar a Justiça. O que releva uma admissão pública do falhanço das instâncias formais de controlo no combate aos flagelos assinalados, seja a nível nacional, seja de toda a União Europeia e, em geral, de qualquer organização internacional empenhada na luta contra o terrorismo – inimigo número um das sociedades hodiernas – e no asseguramento de regras de concorrência leal, mantendo-se os sistemas económico-financeiros o mais possível “limpos” das impurezas provenientes de factos ilícitos que, depois, como facto posterior punível, se traduz, ao menos em alguma das fases habitualmente conhecidas – seguindo uma ordem lógica e cronológica – do placement, layering e integration.

O objectivo deste pequeno escrito é modesto: visa expor-se os traços fundamentais da alteração legislativa assinalada, a qual, prima facie, não parece ser de monta, mas, como veremos, acaba por introduzir modificações com algum significado no modo de entender o crime de branqueamento. Privilegiou-se, assim, mais que a indicação dos numerosos textos já produzidos pela doutrina nacional, um estilo analítico e opinativo, amiúde crítico.

O n.º 1, do art. 368.º-A viu alargar o conjunto de ilícitos precedentes com o art. 324.º do Código da Propriedade Industrial (venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos), o que se entende perfeitamente, uma vez que se trata de um verdadeiro delito de receptação em que a venda, a colocação em circulação ou a ocultação de produtos contrafeitos, «por qualquer dos modos e nas condições referidas nos artigos 321.º a 323.º, com conhecimento dessa situação», é uma forma particularmente atreita de a esse ilícito se seguir um branqueamento. A sua inclusão no catálogo – em que o legislador nacional conjugou uma enumeração taxativa de delitos e uma cláusula geral de ilícitos «puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses

ou de duração máxima superior a cinco anos», no que acaba por ser um catálogo semi-aberto – ajuda ainda a caracterizar este último crime como

autónomo e dotado de uma intencionalidade própria, uma vez que ocorrerá

concurso efectivo entre qualquer um dos tipos prevenidos nos artigos 321.º a 323.º e o do art. 324.º, aqui não havendo lugar a qualquer especificidade nas hipóteses em que é o mesmo autor dos primeiros delitos que, depois, pratica também aquele que agora é predicate offense. No tocante à punição, regista-se que o legislador português foi, a par do italiano (também doze anos de prisão como máximo), dos mais severos: na Alemanha, a sanção, em casos mais graves, pode chegar aos dez anos de prisão; na Espanha atinge os seis anos e multa; na França cinco anos e multa (art. 324-1 do CP gaulês).

Uma última nota neste apartado. As alterações agora analisadas e alguma reflexão anterior a que já nos vínhamos dedicando, levam-nos a perguntar se o branqueamento ainda pode ou não ser classificado como um delito compósito, advertindo-se desde já o possível leitor para a circunstância – que justifica o título do trabalho – de ser necessário ver para além da primeira aparência, pois se é certo que a Lei n.º 83/2017 modificou mais o art. 368.º-A do que prima facie se julga, também entendemos, s.m.o., que há aspectos centrais na construção do tipo que se mantêm, não obstante, como dizemos, uma inicial apreciação perfunctória de sinal contrário. É natural, pois, concluir que a escalpelização do crime de branqueamento se assume cada vez uma tarefa mais espinhosa, o que conduzirá, por certo, a (mais) desencontros na doutrina e na jurisprudência. II) (Ainda) a questão do bem jurídico

A questão do bem jurídico protegido pela incriminação tem sido amplamente disputada. Julgamos poder distinguir, no essencial (2), as seguintes orientações: uma que propende para a existência de um único interesse tutelado

(2) Certo que existem variações como aquela que, na jurisprudência se encontra, p. ex., na base do ac. do TRP

de 21/3/2013, Proc. n.º 127/06.5IDBRG.P1, FÁTIMA FURTADO (disponível em http://www.dgsi.pt, consultado em Outubro de 2018, como todos os arestos citados no presente artigo): «II – No crime de branqueamento de capitais protege-se o circuito financeiro, económico e jurídico, resguardando-o de bens de origem criminosa que aí procuram a sua legitimação.»; ou no ac. do TRC de 22/10/2002, Proc. n.º 0055995, CABRAL AMARAL: «O bem jurídico que se pretende tutelar é a ideia assente de que os crimes geradores de lucros não devem compensar e que, para isso, deve ser perseguida a dissimulação dos respectivos proventos.»; ou, em sentido próximo deste, o ac. do TRL de 29/3/2011, Proc. n.º 40/09.4PEAGH.L1-5, MARGARIDA BLASCO: «A

pelo Direito Penal e uma outra que, com diversos matizes, entende que estamos em face de um delito pluriofensivo.

Sem que provavelmente o legislador se tenha disso dado conta, as alterações introduzidas pela Lei n.º 83/2017, em nosso juízo, vêm dar ainda mais argumentos a quem defendia a primeira hermenêutica (3), claramente maioritária – ou mesmo quase unânime – na doutrina alemã (4). E isto em concretização da ideia geral de que «o crime não compensa» (5), muito ligado, portanto, ao instituto da perda de vantagens derivadas da prática de um facto

punição do branqueamento visa tutelar a pretensão estadual ao confisco das vantagens do crime, ou mais especificamente, o interesse do aparelho judiciário na detecção e perda das vantagens de certos crimes.».

(3) Na doutrina, entre tantos, PAULO PINTODE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal, 3.ª ed., Lisboa:

Universidade Católica Editora, 2015, p. 867. Na jurisprudência, a título exemplificativo, embora com terminologias diversas, mas que cremos reconduzíveis à ideia em texto, vide o ac. do TRL de 18/7/2013 (Proc. n.º 1/05.2JFLSB.L1-3, RUI GONÇALVES): «X. A punição do branqueamento visa tutelar a «pretensão estadual ao confisco das vantagens do crime», ou mais especificamente, o interesse do aparelho judiciário na deteção e perda das vantagens de certos crimes.».

(4) «(…) dem Zugriff der Strafverfolgungsbehörden zu schützen (…)»; «(…) [P]roteger o acesso à aplicação

da lei penal (…)» – a expressão é de PANHUBER/D. HARDER, in: HEINZ-BERND WABNITZ/THOMAS JANOVSKY (Hrsg.), Handbuch des Wirtschafts- und Steuerstrafrechts, München: Beck, 2000, Rn. 34, p. 352. Na Alemanha, a jurisprudência acha-se dividida quanto à identificação do bem jurídico protegido, oscilando entre a manutenção da integridade do funcionamento do sistema judicial (a «boa administração da justiça». Maioritário também na doutrina: cf., p. ex., ALTENHAIN, in: URS KINDHÄUSER/ULFRID NEUMANN/ HANS-ULLRICH PAEFFGEN, Strafgesetzbuch, Band 2, Rn. 10, p. 4509, e NEUHEUSER, in: KLAUS MIEBACH/GÜNTHER M. SANDER (Hrsg.), Münchener Kommentar zum Strafgesetzbuch, Band 3, München: Beck, 2003, Rn. 7, p. 1340, o qual, apesar de reconhecer a natureza controvertida da determinação do bem jurídico, rejeita as críticas de imprecisão (Unbestimmtheit) do interesse jurídico), o impedir que vantagens ilícitas entrem no sistema legal financeiro e económico, o combate à criminalidade organizada, a ideia de que «o crime não compensa». O BGH (Bundesgerichtshof: Supremo Tribunal Federal alemão) observou já estar-se em face de uma «ilicitude independente, própria» («(…) einen «eigenständigen» Unrechtsgehalt (…)»), embora sem mais concretizações, caminho que o BVerfG (Bundesverfassungsgericht: Tribunal Constitucional Federal germânico) também trilhou. Existe mesmo, entre vários autores, a percepção de que estaremos, no branqueamento, perante um crime pluriofensivo, falando-se em uma protecção cumulativa, em sede de bem jurídico, com o delito precedente («(…) kumulativ geschütz sind (…)» – JAHN, in: HELMUT SATZGER/ BERTRAM SCHMITT/GUNTER WIDMAIER (Hrsg.), Strafgesetzbuch Kommentar, Rn. 2, p. 1596.

(5) A «prevenção contra novas formas de crime organizado é o segundo propósito de protecção do § 261

(…)» («Prävention gegenüber neuen Straftaten der organisierten Kriminalität bildet also den zweiten Schutzzweck des § 261 (…)»), sendo o primeiro o de evitar que os bens obtidos ilicitamente entrem no circuito financeiro e económico legal, na perspectiva de HOYER, in: HANS-JOACHIM RUDOLPHI/ECKHARD HORN

et al., SK-StGB, Band 2, 6. Auflage, Neuwied: Luchterhand, 2001, Rn. 2, p. 71. Por seu turno, JAHN, in: HELMUT SATZGER/BERTRAM SCHMITT/GUNTER WIDMAIER (Hrsg.), Strafgesetzbuch Kommentar, 1. Auflage, München, Köln, Berlin: Carl Heymanns Verlag, 2009, Rn. 3, p. 1596, entende ser a «luta contra a criminalidade (económica) organizada» («(…) die Bekämpfung der organisierten (Wirtschafts-) Kriminalität (…)»), a intenção legislativa primordial.

ilícito-típico (6) (7), bem jurídico esse que apenas se acha vulnerado quando o agente procura, através das formas taxativamente descritas (sendo, assim, um crime de execução vinculada), ocultar a proveniência ilícita dos bens, dificultando, sobremaneira, a actuação das entidades competentes na detecção desses bens obtidos de modo também ilícito. Assim sendo, então rapidamente se compreende que o tipo em causa tem como função essencial evitar que o autor usufrua de tais vantagens, entrando, destarte, na categoria dos chamados «delitos de aproveitamento» ou «de ocultação». Citando FARIA COSTA, «(…) a actividade de branqueamento é ela já uma criminalidade derivada, de 2.º grau ou induzida. Em termos muito simples e inequívocos: só há necessidade de “branquear” dinheiro se ele provier de actividades primitivamente ilícitas (8)». Na verdade, mesmo antes da entrada em vigor deste diploma, o objecto de protecção da incriminação era a boa realização da Justiça, a sua prossecução

sem empecilhos, sem formas mais ou menos complexas de ocultação ou dissimulação, valor para nós ínsito ao próprio princípio do Estado de Direito

democrático (artigos 1.º e 2.º da CRP) e que encontra no art. 20.º da mesma Lei Básica uma sua predicação essencial. O que se busca é punir todo aquele que, de uma forma ou de outra – devidamente descrita no tipo objectivo, por óbvias razões de legalidade penal –, introduz um obstáculo, maior ou menor, a que as autoridades judiciárias (com a colaboração funcional dos órgãos

(6) Neste sentido, na Alemanha, entre outros, JOHANNES WESSELS/THOMAS HILLENKAMP, Strafrecht. Besonderer Teil, 2, 24. Auflage, Heidelberg: C. F. Müller Verlag, 2001, Rn. 894, p. 349. Para estes autores, o bem jurídico identificado em texto suplanta mesmo o interesse na «confiança na solidez e transparência do sistema legal financeiro e económico («(…) des Vertrauens in die Solidität und Sauberkeit des legalen Finanz- und Wirtschaftssystems (…)» (idem).

(7) Concordamos, no essencial, com JORGE GODINHO, Do crime de «branqueamento» de capitais. Introdução e tipicidade, Coimbra: Almedina, 2001, pp. 141-143. Em sentido que temos por próximo, também PAULO PINTODE ALBUQUERQUE, Comentário…, n. m. 2, p. 867. São fundamentalmente quatro as grandes orientações a propósito: o bem jurídico é o mesmo que o protegido pelo crime antecedente; a preservação da pureza da economia, obviando a que os circuitos económicos se contaminem por via de vantagens provenientes de actividades criminosas («(…) legalen Wirtschafts- und Finanzkreislauf (…)»), sendo esta a posição, de entre outros, de LAMPE, muito criticada por NEUHEUSER, in: KLAUS MIEBACH/GÜNTHER M. SANDER (Hrsg.),

Münchener Kommentar…, Rn. 9, p. 1340, uma vez que não encontra suporte na história do preceito e, sobretudo, porque este tem sido um «chavão» usado pelo legislador para explicar a luta contra operações de branqueamento sem uma adequada precisão conceptual (« (…) unbestimmten Begriff des legalen Finanz- und Wirtschaftskreislaufes (…)»); garantia do interesse do Estado na inutilização e perda dos lucros advenientes da prática delitual; garantir uma eficaz administração da justiça que se acha dificultada pelas actividades de dissipação, ocultação e transferência dessas vantagens dos crimes precedentes – cf., na síntese, ALTENHAIN, in: URS KINDHÄUSER/ULFRID NEUMANN/HANS-ULLRICH PAEFFGEN, Strafgesetzbuch, Band 2, 2. Auflage, Baden-Baden: Nomos, 2005, Rn. 10, p. 4509, e, entre nós, JORGE GODINHO, Do crime…, pp. 125-126.

(8) «Branqueamento de capitais (algumas reflexões à luz do Direito Penal e da Política Criminal)», in: Boletim da Faculdade de Direito, LXVIII (1992), p. 69.

de polícia criminal) descubram a origem ilícita das vantagens derivadas dos factos ilícitos-típicos antecedentes, tratando-se o branqueamento de um

crime dual ou bifronte, porquanto só existe se e na medida em que tenha

havido uma predicate offense. Não que a realização plena da Justiça – que aqui significa tão-somente a identificação e sancionamento dos responsáveis pelos ilícitos anteriores – não seja, em si mesmo, um relevantíssimo bem jurídico- criminal. Claro que o é. Porém, o modus aedificandi criminis do art. 368.º-A resulta de uma técnica legislativa peculiar: o branqueamento é um resultado de encobrimento de uma prévia actividade ilícita, o que significa que, se bem vemos as coisas, nada mais é que uma forma de punição autónoma do antigamente apelidado “encobrimento real”, na terminologia usada no CP de 1886 a propósito da matéria da comparticipação. Sabe-se que com o actual Código de 1982, estas formas pós-delituais de comparticipação deixaram de ser categorias a se dentro desta forma especial de surgimento do crime para se autonomizarem como específicos delitos – veja-se a receptação, o favorecimento pessoal, o favorecimento praticado por funcionário. Ora, o branqueamento participa desse mesmo programa tutelar criminal, o que, desde logo, a uma primeira aproximação, aponta para as teorias monistas em sede do interesse juridicamente tutelado. O que empecilha o funcionamento da administração da Justiça é exactamente o conjunto de esquemas mais ou menos complexos em que o autor do ilícito antecedente (ou um terceiro, o que convoca, na primeira hipótese, o problema do chamado “auto-branqueamento” (9)) visa “apagar o rasto” das vantagens ilícitas, usando jurisdições de sigilo, transferências entre contas bancárias, transmissões amiúde simuladas de bens, compra e venda de

(9) Veja-se, entre outros, o nosso «Do crime antecedente e do delito de branqueamento praticado pelo

mesmo agente: regresso ao passado?», in: JoSé neveS Cruz/Carla CardoSo/andré lamaS leite (coords.),

Infrações Económicas e Financeiras. Estudos de Criminologia e Direito, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, pp. 461-477. Em sentido próximo, cf. o já citado ac. do TRL de 22/10/2002: «VIII – O autor do crime de branqueamento terá, pois, de ser pessoa diversa da que cometeu a infracção geradora de lucros.». No sentido que fez vencimento no acórdão uniformizador a seguir referido em texto, entre outros, vide o ac. do STJ de 11/6/2014, Proc. n.º 14/07.0TRLSB.S1, raul borGeS: «O autor do facto precedente pode ser autor do crime de branqueamento, ou seja, o autor do crime base pode ser perseguido cumulativamente pelo de reciclagem dos produtos daquele. Face à lei actual, é possível a punição por branqueamento, em concurso real, do próprio autor do crime subjacente.».

instrumentos financeiros de todo o tipo (10). Donde, o branqueamento acaba por ser uma consequência “natural” de quem cometeu um ilícito do qual lhe advieram vantagens que apresentam um grande potencial de perigosidade para o agente. Perigosidade de serem detectadas pelos instrumentos de controlo social formal e, por isso, de punição pela sua prática. Assim, a “naturalidade” de que falávamos não é – nem por sombras – qualquer forma de diminuição da ilicitude e/ou da culpa do agente, mas deve ser somente entendida no domínio do que se apelidaria de natura rerum. Este, em apertado esboço – que recuperaremos infra –, o “quadro de coisas” em que se move o branqueador.

Existem mesmo legislações que assumem o bem jurídico da protecção de uma administração eficaz da justiça criminal de forma evidente na própria

estruturação do tipo objectivo. É o caso do CP suíço que, no seu art. 305 bis, n.º

1, exige que a acção ou omissão se traduza em «um acto adequado a dificultar a identificação da origem, a descoberta ou a apreensão de valores patrimoniais em que o agente conhecia ou devia presumir que os mesmos proviessem de um crime ou de um delito fiscal qualificado». O mesmo se passa com o CP italiano – usando agora o exemplo de um país que integra a União Europeia: o art. 648 bis, n.º 1 exige que as condutas proibidas sejam praticadas «de modo a impedirem a identificação da sua [das vantagens] proveniência delituosa» (in

modo da ostacolare l’identificazione della loro provenienza delituosa).

Uma outra perspectiva aponta para um verdadeiro crime pluriofensivo que, além da realização da Justiça, incluiria o conjunto dos bens jurídicos

protegidos pelos ilícitos antecedentes. Em súmula, também devido à natureza (10) E não toda e qualquer actividade que não tenha, em si mesma, essa virtualidade, sendo aqui de afirmar,

em toda a sua plenitude, a teoria da imputação objectiva (art. 10.º, n.º 1), tratando-se, como se trata, de um crime material ou de resultado. Assim, no sentido que temos por correcto, cf. o ac. do TRP de 7/2/2007, Proc. n.º 0616509, MARIADO CARMO SILVA DIAS: «Não basta o simples depósito em conta própria de vantagens provenientes do crime de tráfico de estupefacientes, para se poder concluir pela verificação do crime de branqueamento na modalidade prevista n.º 3 do art. 368.º-A do CP95.». Em direcção oposta, quanto a nós incumprindo a exigência típica do branqueamento, acabando quase por considerar que qualquer transacção, por muito simples que seja de perseguir pelo aparelho de Justiça, é apta a lesar o bem jurídico, veja-se o ac. do TRL de 29/3/2011, Proc. n.º 40/09.4PEAGH.L1-5, MARGARIDA BLASCO: «A conduta da arguida, ao depositar na conta da filha quantias monetárias que sabia terem sido obtidas pelo companheiro com a venda de estupefacientes, a fim de dissimular essa proveniência, integra a prática de um crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelo art. 368.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal.». Novamente em sentido para nós correcto, atente-se na factualidade resumida e vertida no sumário do ac. do TRE de 13/11/2012, Proc. n.º 43/10.6GASTC.E1, ANTÓNIO CLEMENTE LIMA: «I – Incorre na prática do crime de branqueamento, p. e p. pelo art. 368.º-A, n.º 2, do CP, quem, conjuntamente com outro, dedicando-se à actividade de tráfico de estupefacientes, converte lucros pecuniários obtidos com essa actividade em outros bens, com a intenção de dissimular e esconder a origem ilícita dessas vantagens assim obtidas.».

intricada e umbilical entre o branqueamento e as predicate offenses, o acto de dificultar a acção do sistema seria uma mera predicação dos anteriores, razão pela qual existiria uma relação de continuidade entre ambos os interesses amparados pelo Direito Penal. Sem prejuízo de outras críticas que, aqui, não importa recuperar, em face do objectivo a que nos propusemos, julgamos que a alteração objecto do presente estudo põe seriamente em crise esta concepção, a partir do momento em que o n.º 5 dispensa a verificação do pressuposto processual do exercício tempestivo do direito de queixa (e da dedução de acusação particular). Discutiremos, mais à frente, o bem-fundado desta opção legislativa, mas, para o que hic et nunc releva, a mensagem é clara: puna-se o branqueamento mesmo que se não possa perseguir criminalmente as condutas antecedentes. Só pode interpretar-se esta verdadeira inflexão face ao regime anterior no sentido de desatar completamente a aludida relação de continuum. Ainda que, v. g., a burla simples não tenha sido perseguida criminalmente, por falta de queixa do ofendido, mesmo assim pune-se de jeito autónomo o branqueamento, o que reforça a convicção de que este último adquire vida

própria em termos do bem jurídico. Por outro lado, mesmo antes desta mudança,

já se podia defender que não fazia sentido uma espécie de “dupla valoração” do bem jurídico do ilícito anterior e do branqueamento, uma vez que, em regra – excepto nas hipóteses de auto-branqueamento em que defendemos uma