• Nenhum resultado encontrado

1. História e Arte no Norte Alentejo

1.2. Enquadramento Histórico e Artístico

A propósito da região do Norte Alentejo escreveu Duarte Nunes de Leão que “[…] ao longo deste monte Herminio, e à sua sombra estão muitos lugares de que alguns são grandes, e nobres, como sam a cidade de Portalegre, as villas de Arronches, Marvão, Alegrete, Covilhãa, e a cidade de Medobriga que em tempo dos romanos foi grande e bem edificada: segundo mostrão suas ruinas e parte dos edificios que hoje se vêm. […]”46. Os vestígios da presença romana de “Medobriga” (Aramenha) seriam, então, ainda bastante presentes, recursos abundantes que eram explorados como “pedreiras” para novas construções, tal como seria uso comum47.

O padre Diogo Pereira Sotto Maior, principal cronista da cidade de Portalegre, também elogiou a nobreza desta região naquilo que tinha de único, e que eram os seus recursos naturais, sublinhando a abundância de águas, de onde se poderiam retirar propriedades benéficas para a saúde.

A definição daquilo que, séculos mais tarde viria a formar o Distrito de Portalegre, começou em finais do século XIII, com o estabelecimento das povoações de Nisa, Montalvão, Marvão, Castelo de Vide, Portalegre, Crato, Avis e Ponte de Sor, no limite Norte do território, ficando Arronches e Elvas no extremo Sul do mesmo48. No geral, o território conheceu, ainda durante o século XIV, momentos de instabilidade, provocados pela crise de 1383-1385, muito sentida na região, com

46

LEÃO, Duarte Nunes de, Descripção do Reino de Portugal, (1610), 2002, p. 159.

47

KEIL, Luís, op. cit., 1943, p. X.

48

COELHO, P.M. Laranjo, A Cristianização do Alto Alentejo e o Culto Mariano, nas Lendas, na História, nas Artes e na Poesia, 1963, p. 29.

consequências adversas para a economia local49. De todos os modos, é a partir deste período que começam a desenvolver-se as actividades comerciais, mercantis e industriais, nomeadamente (no caso de Portalegre), da produção de lanifícios, que nos séculos seguintes atingiria uma importância vital, tal como testemunhou Frei Agostinho de Santa Maria: “[…] He terra de grande trato de panos, tão excellentes como os de Londres […]”50.

Concluído o capítulo das guerras fernandinas e assinado o Tratado de Alcáçovas, em1497 que garantiu a estabilidade com Castela, o desenvolvimento de localidades fronteiriças foi rápido, com intercâmbios (económicos, demográficos, culturais) permanentes entre os dois lados da fronteira51.

Com efeito, o crescimento demográfico, a estabilização do território e o desenvolvimento das actividades comerciais, são factores que levam D. João III, já em 1549, a decidir sobre a necessidade da criação de um novo bispado, que pretende ver criado desagregando parte do território que pertencia ao da Guarda, considerado como demasiado extenso. O pedido é dirigido à Cúria Papal, encontrando alguns obstáculos que o monarca consegue ultrapassar, argumentando inclusivamente que, à data, a diocese da Guarda se encontrava sem bispo nomeado, uma vez que o último, D. Jorge de Melo, tinha morrido no ano anterior52. A 21 de Agosto de 1549, o Papa Paulo III acede ao pedido do monarca e cria a diocese de Portalegre, sendo D. Julião de Alva o seu primeiro bispo. É assim que são retirados ao território da Guarda as localidades de “[…] Portalegre, Castelo de Vide, Marvão, Alpalhão, Crato, Alegrete, Tolosa, Nisa, Vila Flor, Póvoa das Meadas, Amieira, Belver […] Gavião, Montalvão, Alter do Chão, concelho da Margem e Longomel […]”, incluindo-se ainda as vilas de Arronches (cujas igrejas e jurisdição pertenciam ao priorado do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra), Arez e Assumar, todas anteriormente integradas na diocese de Évora53. À data da fundação da catedral viveriam em Portalegre entre 6.000 a 7.000 habitantes54.

O século XVI marca, portanto, um período de prosperidade para esta região, de grande dinamismo económico dentro de fronteiras, circunstância que não foi

49

PATRÃO, José Dias Heitor, Portalegre, fundação da cidade e do bispado. Levantamento e progresso da Catedral, 2002, p. 18.

50

SANTA MARIA, Frei Agostinho de, Santuário Mariano, tomo III, 1711, fl. 365.

51

LIMPO PÍRIZ, Luis Alfonso, Memorial del Antiguo Convento de la Concepción en la Villa de

Olivenza, 1999, p. 13

52

PATRÃO, José Dias Heitor, op. cit., 2002, p. 22.

53

ALMEIDA, Fortunato, História da Igreja em Portugal, vol. II, 1930, p. 25.

54

interrompida durante o período da União Dinástica. Este aspecto parece poder comprovar-se, também, pela presença de muitos cidadãos de pontos mais distantes do país (Viseu, Coimbra, Braga e Guarda) ou ainda de estrangeiros a residirem na sede do bispado, acabando por contrair matrimónio com portalegrenses55. Foi assim, por exemplo, em 1590, com Benito Gomes, natural de Cáceres e Maria Álvares56, ou em 1595, entre o carpinteiro Manuel Rodrigues (filho de Garcia Gonçalves e de Maria Fernandes) de Badajoz, freguesia de Santa Maria, que se casaria com Maria Dias57. Assim ocorreu também, em 1595, com o florentino Horácio d’ Ati, (filho de João d’Ati e de Lucrécia Romana), que se casaria com Paula da Costa58, provavelmente alguém ligado ao comércio a viver na própria cidade.

De acordo com o cômputo da população realizado em 1551 para a região de Entre Tejo e Guadiana existiriam em Portalegre cerca de 1224 fogos e no seu termo 1419, num total de 10.572 habitantes, o que é considerável se atendermos à sua localização geográfica, embora, ainda assim, ficasse atrás de outras cidades e vilas alentejanas. Nas proximidades estes valores eram suplantados por Elvas, onde a densidade populacional era superior, com 1916 fogos na cidade e 2354 no seu termo, o que perfazia um total de cerca 17.080 moradores59. Em 1691, a cidade de Portalegre, enquanto sede do bispado, contava com “muita nobreza”, de acordo com João Baptista Henriques, estando dividida em cinco paróquias. À data tinha três conventos masculinos (S. Francisco, Santo Agostinho e Santo António) e dois femininos (Santa Clara e S. Bernardo)60.

O Norte Alentejo, enquanto núcleo heterogéneo e aglutinador de distintas realidades (políticas, geográficas, artísticas e outras) carece ainda de estudos, por parte dos investigadores, que o analisem naquilo que tem de mais original, nomeadamente na sua arquitectura, pintura ou escultura. Este facto tinha já sido sublinhado por Mário Chicó e Humberto Reis em 1950, na comunicação que ambos apresentaram ao Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, em

55

No fundo dos Registos Paroquiais de Portalegre assinala-se um grande número de estrangeiros, nomeadamente italianos e espanhóis, na segunda metade do século XVI, a maioria acabando por ser sepultados na Igreja de Santa Maria a Grande.

56

A.D.P., Registos Paroquiais de Portalegre, S. Lourenço (Casamentos), PPTG11/02/Liv.02C, 6 de Março de 1590, fl. 30.

57

A.D.P., Registos Paroquiais de Portalegre, S. Lourenço (Casamentos), PPTG11/02/Liv.02C, Janeiro de 1595, fl. 70v.

58

A.D.P., Registos Paroquiais de Portalegre, S. Lourenço (Casamentos), PPTG11/02/Liv.02C, 16 de Setembro de 1595, fl. 77v.

59

SERRÃO, Joaquim Veríssimo, op. cit., vol. III, 2001, pp. 220-222.

60

Washington. Na realidade, e de acordo com a perspectiva dos mesmos autores, a região em causa, sobretudo no que diz respeito à sua arquitectura monumental, era até então considerada como apenas um “prolongamento do Norte do País”61, sem que se analisassem as particularidades presentes desde o século XVI e, depois, nos séculos XVII e XVIII.

A maior parte das construções de cariz militar alentejanas ficaram a dever a sua edificação ou reedificação à acção mecenática do rei D. Dinis, que se empenhou na criação de uma linha defensiva do território, em particular junto à fronteira com Castela. Muitas localidades do extremo Norte do Alentejo conheceram, durante este período, um grande dinamismo construtivo, com reedificações ou intervenções em várias fortalezas: Arronches (1310); Campo Maior (no mesmo ano, tal como o de Ouguela); Castelo de Vide (a partir de 1289); Elvas (onde D. Dinis acrescentou um torreão); Marvão (1299). Ao mesmo tempo, o território assistiu ao aparecimento de novas construções, erguidas de raiz, caso dos castelos de Alpalhão (1300), Fronteira (1297), Monforte (em 1309, na sequência das obras iniciadas em 1257, por D. Afonso III), Nisa (1290-1296), Portalegre (1290) e Olivença, localidade na margem esquerda do Guadiana que D. Dinis pretendeu anexar através do Tratado de Alcanices (1297) pelo seu valor estratégico face à vizinha Badajoz62. Em torno da região oliventina os conflitos seriam, aliás, abundantes, desde o século XIV, na maioria decorrentes do problema da demarcação real do território. Esta questão ficou aliás, até hoje, bem presente na toponímia local, em concreto na área dita da “Contenda”, disputada durante todo o século XV e XVI63. O aparecimento de várias aldeias em torno de Olivença, autênticas “terras de transição”, como San Jorge, San Benito de la Contienda, S. Domingos ou Táliga, deve a sua razão de ser a motivos estratégicos, definindo-se, assim, uma primeira linha de defesa para a protecção da vila, considerada como prioritária64. A vila de Olivença passaria a integrar o bispado de Ceuta, em 1472, por decisão de D. Afonso V, passando para o Arcebispado de Braga e depois, em 1513, novamente para o de Ceuta.

61

CHICÓ, Mário Tavares e REIS, Humberto, A Arte Religiosa do Alto Alentejo na segunda metade

do século XVI e nos séculos XVII e XVIII, 1982, p. 1.

62

LIMPO PÍRIZ, Luis Alfonso, op. cit., 1999, p. 13.

63

RODRÍGUEZ RODRÍGUEZ, Pedro, Un Escudo en la Frontera, Historia de San Benito de la Contienda, 2010, p. 19.

64

Àparte a acção desenvolvida por D. Dinis, as intervenções em castelos prosseguiram até ao século XV, com o de Belver sendo reedificado por ordem do Condestável D. Nuno Álvares Pereira, em 1390 e ainda o do Crato, reconstruído em 1430 por ordem de D. Frei Nunes de Góis65.

Antes disso não existiriam condições para a estabilização de populações nestes territórios. Alguns destes castelos, em particular os das localidades mais próximas à fronteira passariam por outra fase de renovações, já no período que se seguiu à Restauração, a que se anexaram novas fortificações, de acordo com as recentes exigências bélicas, de modo a constituirem uma frente de defesa contra os exércitos castelhanos nas suas incursões por território nacional.

Se excluirmos a arquitectura militar medieval e toda a construção decorrente da acção de D. Dinis e das Ordens Militares que, não obstante, marcou de forma muito visível esta região, veremos que é na segunda metade do século XVI que surgem alguns dos monumentos mais emblemáticos, associados a momentos marcantes para a História local. O período é de transição, acompanhando o finalizar do reinado de D. João III cuja morte, em 1557, marca também o encerrar do capítulo do primeiro Renascimento, experimentalista, vivido no país e que, a nível local, resultou em construções tão atípicas como a igreja do convento das Domínicas (em Elvas), de planta poligonal. Para trás fica, também, a longa tradição do tardo-gótico e do manuelino, presentes na Sé de Elvas (Fig. 2) ou na Igreja da Madalena, em Olivença (Fig. 3).

A construção de edifícios de grandes dimensões, como a catedral de Portalegre, iniciada em 1556, abriria caminho para novas tendências, de maior simplificação planimétrica (o designado estilo chão) decalcadas em inúmeras igrejas ou ermidas um pouco por toda a região (Fig. 4).

A matriz de Arronches traduz o modelo das igrejas-salão, também designadas como Hallenkirchen, com alguns exemplares bem próximos dentro da mesma linha, como a matriz de Veiros, ou a igreja de Santa Maria de Estremoz (Fig. 5).

Mais tarde, o século XVIII viria a trazer o modelo dos edifícios com fachadas ladeadas por duas torres, como é o caso da igreja de S. João Baptista de Campo Maior66, ou da igreja do convento de Nossa Senhora da Estrela, em Marvão. Os

65

KEIL, Luís, op. cit., 1943, pp. 45 e 91.

66

interiores são, na maioria dos casos, acompanhados por marmoreados e por estuques policromados.

Para a História da Arte do Distrito de Portalegre convém citar a passagem, em diferentes ocasiões, de grandes nomes da pintura nacional e estrangeira, que aqui deixaram marca da sua presença, mesmo quando ela se confronta com o silêncio da documentação existente. Em períodos mais recentes são identificáveis artistas de grande relevo com intervenções ou com obra nesta cidade, ainda que a sua presença não encontre eco nas fontes documentais. Um dos exemplos mais emblemáticos daquilo que acabamos de referir é o do pintor António de Oliveira Bernardes (1662-1732), responsável pelo programa azulejar da sacristia da Sé de Portalegre, não existindo qualquer registo a pagamentos a este artista nos Livros de receita e despesa do Arquivo do Cabido. Do mesmo modo ignoramos se Bernardes se terá ocupado com outros empreendimentos artísticos, decorrentes da sua passagem pela Sé. Antes de Bernardes há que recordar, também, a presença de Gabriel del Barco (n. 1648 - act. 1701) em, pelo menos, três obras na região: os revestimentos cerâmicos da ermida do Salvador do Mundo, em Castelo de Vide; os painéis da igreja da Misericórdia de Portalegre, hoje visíveis na igreja de S. Lourenço da mesma cidade; e, por último, os azulejos assinados e datados de uma capela particular (1700)67. À excepção deste último caso, em que a obra se encontra assinada, os restantes conjuntos são atribuidos a este pintor e azulejador por comparação estilística, sendo casos em que o traço do artista oferece pouca margem para dúvidas.

O Norte Alentejo conheceu já no início do século XIX um novo capítulo de convulsões traumáticas que conduziu, inclusive, a alterações ao nível da demarcação do território português. O episódio que ficou conhecido como a Guerra das Laranjas durou, na realidade, menos de um mês – de 20 de Maio a 7 de Junho

67

CARVALHO, Maria do Rosário, A pintura do azulejo em Portugal (1675-1725), Autorias e

biografias – um novo paradigma, Dissertação de Doutoramento em História, especialidade História

da Arte apresentada à FLUL, 2012, pp. 131, 139 e 140. A propósito da actividade de Gabriel del Barco veja-se, também, MECO, José, “Azulejos de Gabriel del Barco na região de Lisboa, Período inicial, até cerca de 1691, Pintura de tectos” Separata do Boletim Cultural da Assembleia Distrital de

de 1801 – mas dele resultaria a perda de Olivença, decretada através do Tratado de Badajoz68.

A Guerra das Laranjas foi o corolário de uma conjuntura de conflitos entre Inglaterra e França, que tiveram início ainda na Revolução Francesa e onde Portugal e Espanha se viram envolvidos devido às suas alianças políticas com aquelas nações. Logo em 1793 Portugal colaborou com a Espanha no conflito contra a França. Contudo, apenas três anos mais tarde, em 1796, Espanha e França já se tinham novamente aliado, paz que ficaria assente no Tratado de Santo Ildefonso. A escalada da tensão entre os dois reinos conduziria ao inevitável desfecho do conflito, com consequências desastrosas para Portugal, ao ponto de já ter sido dito sobre esse episódio que “[…] não existe, porém, na nossa História, um desempenho tão desastrado por parte das tropas portuguesas […]”69. A partir daí foram particularmente atingidas as principais localidades com valor estratégico neste conflito, caso de Elvas, Juromenha e Campo Maior, de Olivença e territórios adjacentes, ou ainda de Arronches e Flor da Rosa, onde se travam acesos combates.

68

VENTURA, António, op. cit, 2004, p. 7.

69

Documentos relacionados