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Enquadramento jurídico-funcional 38

1. A Administração do Concelho de Gondomar 38

1.1 Enquadramento jurídico-funcional 38

Até à revolução de 1820, o país estava dividido em províncias e comarcas. As províncias eram administradas por governadores ou generais das armas e cada comarca encontrava-se submetida a um corregedor de nomeação régia, com autoridade judicial e administrativa. Cabia ao corregedor fiscalizar os juízes de fora, assim como os juízes ordinários, os quais presidiam às câmaras municipais.79 O aparelho administrativo do Antigo Regime refletia, assim, os princípios da monarquia absoluta: «Rex habet

ordinariam iurisdictionem, et merum et mixtum Imperium».80

O Liberalismo instaurou em Portugal uma administração centralizadora e hierarquizada, que pretendia o controlo efetivo do território nacional, bem como das comunidades locais. Dessa forma, caracterizou-se, em grande parte, pela substituição da desordem administrativa própria do Antigo Regime – agravada com as invasões francesas e a instalação da corte no Brasil – por um sistema burocrático central assente num processo ordenado de nomeações de representantes do poder central.81

A constituição de 1822 estabeleceu o princípio da divisão de poderes, passando o território nacional a ser organizado em distritos (geridos por administradores gerais) e concelhos (da competência das câmaras). Com a ab-rogação da constituição (1824), estas grandes linhas não chegam a ser postas em prática, sendo que a carta constitucional de 1826, embora mantendo, no geral, os mesmos princípios, remete esta matéria para lei regulamentar.

Contudo, como refere César Oliveira82, não se tinha ainda mexido «na “pedra de toque”

da codificação administrativa que enquadrava a ação, iniciativas e a própria existência dos municípios, concelhos e câmaras municipais», isto é, a divisão político-

administrativa do território. Este processo inicia-se com Mouzinho da Silveira, por via do célebre decreto nº 23, de 16 de maio de 1832, que visava a reorganização

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MARQUES, Mário Reis – A evolução da organização administrativa no estado liberal. In MATTOSO, José – História de Portugal: o Liberalismo, 1807-1890. Lisboa: Estampa, 1998, vol. 5, 171

80

Ibidem, 172

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OLIVEIRA, César (dir.) – História dos municípios e do poder local: dos finais da Idade Média à União Europeia. [Lisboa]: Temas e Debates, 1996, 195

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administrativa de Portugal. À época da reforma, segundo César Oliveira83 «Portugal

era, ainda, um pequeno país, fragmentado em pequenos concelhos num grande número de freguesias, mas que tinham autonomia e atribuições descentralizadas que a reforma de Mouzinho veio destruir “napoleonicamente”, com o objetivo formal de modernizar o Estado e a intenção, não confessada, de controlar as populações e o território».

Mouzinho da Silveira manteve, praticamente, o mesmo número de concelhos, mas introduziu uma divisão político-administrativa assente em três níveis: província, comarca e concelho.84 A cada divisão administrativa correspondia um órgão e um cargo próprios. Assim, à frente de cada província estava um prefeito; nas comarcas um sub- prefeito e em cada concelho encontrava-se um provedor, sendo que todas estas autoridades eram nomeadas pelo rei.

Como sublinha Marcello Caetano,85 o decreto de Mouzinho previa «uma junta de

cidadãos da confiança dos povos e por eles eleitos para promover os seus interesses, vigiar no emprego dos cabedais públicos que aos magistrados é confiado».

O provedor do concelho representava a autoridade administrativa e, como tal, competia- lhe uma série de funções, nomeadamente obedecer às diretivas do prefeito e do subprefeito; executar as deliberações da câmara municipal; realizar as operações do registo civil; exercer funções de polícia e de manutenção da ordem pública, realizar a superintendência das escolas e assegurar o recrutamento de mancebos para o exército.86 A partir de 1834, o decreto de Mouzinho da Silveira passa a vigorar em todo o país, o que origina o encontro das novas com as velhas autoridades ainda em funções, causando um profundo mal-estar. De acordo com Marcello Caetano87 «o espírito centralizador do

decreto, imposto manu militari à Nação, chocara os povos secularmente afeitos às liberdades municipais».

Acusado de exagerada centralização e até de inconstitucionalidade, o decreto não demora a ser superado pela lei de 25 de abril de 1835, que introduz “novas bases” nas administrações geral e municipal, com o continente a ser dividido em 17 distritos. Nos

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Idem, 206

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Esta lógica traduz, em grande medida, a organização político-administrativa francesa, com os seus “arrondisements” e as “mairies”. Mouzinho da Silveira tinha, de facto, uma formação político-ideológica assente nos valores da França pós-evolucionária.

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CAETANO, Marcello – Estudos de história da administração pública portuguesa. Org. Diogo Freitas do Amaral. Coimbra: Coimbra Editora, 1994, 375

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OLIVEIRA, César (dir.) – História dos municípios e do poder local: dos finais da Idade Média à União Europeia. [Lisboa]: Temas e Debates, 1996, 207

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CAETANO, Marcello – Estudos de história da administração pública portuguesa. Org. Diogo Freitas do Amaral. Coimbra: Coimbra Editora, 1994, 377

distritos pontifica um magistrado de nomeação real e nos concelhos um administrador. A organização administrativa do país é amplificada pelo decreto de 18 de julho de 1835 onde, além dos distritos e concelhos, são também criadas as freguesias. O território nacional passa, então, a ficar composto administrativamente pela Junta Geral de Distrito, a cargo do governador civil, pelas Câmaras Municipais, a cargo do administrador do concelho, e pelas Juntas de Paróquia, a cargo de um comissário. O administrador do concelho substituiu, assim, o provedor, e passou a ser escolhido a partir de uma lista tríplice, (nos concelhos cuja municipalidade só tiver até cinco membros), ou quíntupla (nos restantes concelhos), ambas constituídas por eleição direta.88 Desenvolvia a sua atividade por dois anos com possibilidade de reeleição, e podia ser suspenso pelo governador civil do distrito. Contudo, não poderia ser demitido senão por decreto real. O administrador do concelho não vencia ordenado fixo, apenas uma gratificação, paga pelos rendimentos do concelho e que fazia parte do orçamento das despesas anuais do mesmo. No cumprimento das suas funções, o administrador era auxiliado por um escrivão, que seria o secretário da câmara. No caso dos concelhos com mais de 10000 habitantes, o administrador apresentava a sua proposta, em lista tríplice, à câmara municipal, que escolhia e nomeava o escrivão do administrador.89

Com o decreto de 18 de julho de 1835, que criou a figura do administrador do concelho, o Estado estava, acima de tudo, a legitimar e a dar corpo à sua presença a nível local. Deste modo, apesar das variações funcionais que se foram verificando ao longo dos cem anos em que vigoraram os administradores dos concelhos, a razão principal da existência destes manteve-se sempre inalterada: obedecer às diretivas transmitidas pelo governador civil. Tratava-se, pois, de uma função de inspeção da máquina administrativa local (representada pelas câmaras), por um lado, e atuação nos aspetos onde estas não chegavam, por outro. Por isso, de acordo com este decreto, competia ao administrador, entre outros aspetos, prover o fornecimento de transportes às tropas em marcha, a vigilância diária de tudo quanto respeitasse à polícia preventiva ou a inspeção das prisões.90

Não lhe cabia, por conseguinte, uma ação deliberativa ou decisória, que, a nível local, competia às câmaras. Estas, por sua vez, mantinham, em essência, as funções de: consulta e de deliberação em relação às necessidades do município; repartição das

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OLIVEIRA, César (dir.) – História dos municípios e do poder local: dos finais da Idade Média à União Europeia. [Lisboa]: Temas e Debates, 1996, 209

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PORTUGAL. Leis, decretos, etc. – [Decreto de 18 de Julho de 1835], 54-57

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contribuições diretas; regência dos bens e rendas; regulação e ordenação do pagamento das despesas; direção e execução das obras; administração dos estabelecimentos municipais; contração de empréstimos necessários para objetos de utilidade geral do concelho.91

Mas a organização administrativa do país teve nova alteração com o código de 1836, no seguimento «de um «processo revolucionário, relativamente pacífico que obrigou a

rainha a investir como líder do ministério, Passos Manuel, liberal radical».92 Enquanto que, no decreto de 23 de maio de 1832, Mouzinho da Silveira mantivera 792 concelhos no continente, Passos Manuel suprimiu, de uma só vez, 455 municípios.

Com o novo código, Portugal ficou dividido em distritos, concelhos e freguesias. Nesta nova conceção, o administrador-geral do distrito, o administrador do concelho e o regedor da freguesia passam a ser considerados magistrados administrativos. As competências do administrador do concelho mantiveram-se praticamente inalteradas. Acrescem a fiscalização sobre os lançamentos e cobranças das contribuições indiretas93, a fiscalização de casas públicas de comestíveis, de bebidas espirituosas, de medicamentos e boticas; a inspeção das casas públicas de jogo, hospedarias e estalagens; e o não consentimento do uso e porte de arma a indivíduos não militares. Em 1840, a carta de lei de 29 de outubro altera, revoga e substitui parte das disposições do código administrativo de 1836. No que diz respeito ao administrador do concelho, foram-lhe acrescentadas algumas competências: «o registo das hipotecas; o manifesto

dos dinheiros dados a juro; a formação dos róis para o lançamento de todas as contribuições directas; a presidência das Juntas autorizadas para a sua colecta e repartição; a fiscalização das leis que a estabelecerem e regularem; e a cobrança das dívidas procedentes de contribuições de lançamento, enquanto a dita cobrança se puder fazer administrativamente e segundo as formas do processo que for estabelecido na lei fiscal expressamente para esse fim». 94

Em 16 de março de 1842 foi aprovado um novo código administrativo. Referendado por Costa Cabral, resulta da coordenação das disposições vigentes do código de 1836, com as leis posteriores que o alteraram. Neste código, a divisão administrativa assenta nos

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Idem, 46-48

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OLIVEIRA, César (dir.) – História dos municípios e do poder local: dos finais da Idade Média à União Europeia. [Lisboa]: Temas e Debates, 1996, 208

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No Decreto de 18 de Julho de 1835 apenas era da competência do administrador do concelho a fiscalização sobre os lançamentos e cobranças das contribuições diretas.

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distritos e concelhos95: «A freguesia fica sendo mera comunidade familiar e religiosa

sem carácter administrativo. Os magistrados são o governador civil e o administrador

do concelho, ambos de nomeação do governo».96 Também a competência das câmaras

ficou restringida e figuram, ao seu lado, os conselhos municipais. Como salienta Mário Reis Marques97 «em termos globais, o código introduziu a disciplina na

administração».

Com este código, as competências do administrador do concelho não só são alargadas, como também são detalhadamente descritas. O administrador passa a exercer as diversas funções mencionadas nas leis e regulamentos fiscais em matéria de bens e rendimentos da Fazenda Publica98. Entre as várias atribuições contam-se a de vedar a divagação de pessoas alienadas e de animais malfazejos, a de registar as hipotecas e a de registar os testamentos. 99

As reformas na administração não ficaram, no entanto, por aqui. Depois de diversas tentativas de reforma do código de 1842, foi aprovado o código administrativo de 6 de maio de 1878, que voltou a dividir o território em distritos, concelhos e freguesias, com os correspondentes magistrados: «Os corpos administrativos eram as juntas de

freguesia, as câmaras municipais e as juntas gerais de distrito, mas estas de eleição directa, com numerosas atribuições próprias e uma comissão permanente para executar as suas deliberações. Foi suprimido o conselho municipal. A tutela administrativa seria exercida apenas pelas juntas gerais e só raras deliberações destas

necessitavam de confirmação dos órgãos superiores do Estado».100

As competências do administrador do concelho mantiveram-se praticamente inalteradas com este novo código, desdobrando-se nas seguintes vertentes: 1) encarregado da execução das leis e regulamentos da administração pública; 2) superintendência das irmandades, misericórdias, confrarias, hospitais e quaisquer outros estabelecimentos de

95

Este código vigorou durante 36 anos.

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CAETANO, Marcello – Estudos de história da administração pública portuguesa. Org. Diogo Freitas do Amaral. Coimbra: Coimbra Editora, 1994, 149-150

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MARQUES, Mário Reis – A evolução da organização administrativa no estado liberal. In MATTOSO, José – História de Portugal: o Liberalismo, 1807-1890. Lisboa: Estampa, 1998, vol. 5, 174

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Fazer a inscrição e relação de todos os bens e rendimentos da Fazenda Pública; fiscalizar a venda, troca hipoteca, ou doação desses bens; tomar o manifesto dos dinheiros dados a juro; fiscalizar o lançamento e cobrança de imposto; cobrar as dívidas procedentes de contribuições; e controlar o exercício da

autoridade fiscal.

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Código Administrativo Português de 1842: anotado. Lisboa: Imprensa Nacional, 1854, 179.

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CAETANO, Marcello – Estudos de história da administração pública portuguesa. Org. Diogo Freitas do Amaral. Coimbra: Coimbra Editora, 1994, 151

piedade e de beneficência, bem como dos estabelecimentos de instrução e educação; 3) autoridade policial.

De referir que ao administrador do concelho cabia igualmente suspender e demitir, com a aprovação do governador civil, os empregados de sua nomeação; delegar nos seus subalternos, com autorização do governo civil, algumas das suas atribuições, quando as necessidades do serviço assim o exigissem; prestar à câmara municipal e ao seu presidente a coadjutoria que lhe fosse requisitada para execução das deliberações legais da mesma câmara; promover o cumprimento de todas as obrigações da câmara municipal e das juntas de paróquia, dando conta ao governador civil das faltas e abusos que notasse; exercer na execução dos serviços de interesse geral do Estado as funções que lhe estivessem determinadas nas leis e regulamentos especiais, estando ainda autorizado, nos casos omissos e urgentes, a tomar as providências que as circunstâncias exigissem, dando imediatamente conta ao governador civil.101

Com este código, mais descentralizador, a tutela do governo reduz-se ao mínimo e as decisões dos corpos administrativos passam a ser quase prontamente executadas. Embora em termos da técnica legislativa este código represente um significativo avanço, em termos práticos o mesmo não se pode afirmar. Isto porque a liberdade de que passaram a usufruir os corpos administrativos, nomeadamente em matéria tributária, fomentou a desordem das finanças locais e do Estado.102

Assim, na sequência das bases apresentadas às cortes pelo Partido Progressista, a 17 de julho de 1886, é publicado, por José Luciano de Castro, um novo código administrativo, que procurou corrigir estes excessos. As principais inovações foram a representação das minorias nos corpos administrativos, a criação de um regime especial para os concelhos de Lisboa e Porto – assim como os de população superior a 40 000 habitantes que o requeressem – e a organização dos tribunais administrativos distritais, compostos de três juízes togados cada.

A conjugação das normas de 1886 com as dos decretos de 21 de abril e de 6 de agosto de 1892, deram origem ao código administrativo de 2 de março de 1895 o qual, depois de submetido a revisão parlamentar, foi transformado no código aprovado por carta de

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PORTUGAL. Leis, decretos, etc. – Código Administrativo: aprovado por Carta de lei de 6 de Maio de 1878

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MARQUES, Mário Reis – A evolução da organização administrativa no estado liberal. In MATTOSO, José – História de Portugal: o Liberalismo, 1807-1890. Lisboa: Estampa, 1998, vol. 5, 174

lei de 4 de maio de 1896. Como refere Marcello Caetano103 «nada de novo se encontra

quanto à divisão do território, nem pelo que respeita ao número e designação dos magistrados administrativos. Quanto aos corpos administrativos, consagra-se a supressão das juntas gerais de distrito decretada em 1892: o distrito não era mais autarquia local, e a comissão distrital, eleita por delegados das câmaras, tinha reduzidas atribuições em cujo exercício preponderava o governador civil. As câmaras eram assistidas, para validamente deliberar sobre algumas matérias, dos 40 maiores contribuintes do concelho».

Assim sendo, à data da proclamação da República, encontrava-se em vigor o código de 1896 «considerado incompatível, pelo espírito centralizador que o inspirava, com as

ideias triunfantes».104

Com a República, eram grandes as expectativas criadas em torno de uma nova reforma política, que terminasse de uma vez por todas com as oscilações entre centralização e descentralização do poder. O código descentralizador de 1896 tinha forçosamente de ser alterado, o que levou o Governo Provisório a assinalar, desde logo, uma promessa de mudança. Esta surgia sob a forma de um decreto, promulgado a 13 de outubro de 1910, no qual se passava a adotar o Código de 1878, «na parte em que o seu restabelecimento

causasse o mínimo de perturbação aos serviços públicos», até que se redigisse um novo

código administrativo que consubstanciasse a reforma republicana.105

Tal não aconteceu e, como refere Marcello Caetano106, «houve que admitir na

jurisprudência ministerial e nos tribunais a vigência do Código de 1896 em algumas matérias fundamentais. Ficou, pois, a República com dois Códigos Administrativos: o de 1878 e o de 1896».

Até 1926, houve diversas tentativas para a elaboração de um novo código administrativo, o que resultou na produção de muita legislação avulsa e que fez com que o novo regime chegasse ao fim sem a questão da descentralização resolvida.

Apesar de, ao nível da administração autárquica, ter sido aplicado um conjunto significativo de reformas administrativas, mantiveram-se os constrangimentos à autonomia financeira dos municípios e, sobretudo, não se rompeu com a regra da

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CAETANO, Marcello – Estudos de história da administração pública portuguesa. Org. Diogo Freitas do Amaral. Coimbra: Coimbra Editora, 1994, 152

104

Ibidem, 153

105

OLIVEIRA, César (dir.) – História dos municípios e do poder local: dos finais da Idade Média à União Europeia. [Lisboa]: Temas e Debates, 1996, 269-283

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CAETANO, Marcello – Estudos de história da administração pública portuguesa. Org. Diogo Freitas do Amaral. Coimbra: Coimbra Editora, 1994, 429

presença de magistrados administrativos, mantendo-se o administrador do concelho subordinado ao governador civil.107

A constituição de 1933, juntamente com os códigos administrativos de 1936 e 1940, institucionalizaram uma apertada centralização administrativa, «culminando no facto de

o titular do órgão presidente da câmara municipal ser nomeado pelo governo e cumular essa titularidade com a de magistrado administrativo concelhio».108 O governador civil continuava a ser magistrado administrativo, contudo, a reunião, na figura do presidente da câmara, das funções atribuídas primitivamente à presidência da câmara e ao delegado governamental – o administrador do concelho – determinou a extinção deste último cargo.109