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Capítulo 1 – A Língua Gestual Portuguesa (LGP) como língua natural

1.4. LGP – a língua da comunidade surda portuguesa

1.4.1. Enquadramento socio-histórico: da clandestinidade ao ensino da LGP

De acordo com Carvalho (2007: IV), a história da educação de Surdos em Portugal pode ser dividida em três períodos distintos: (1) de 1823 a 1905, em que eram utilizadas metodologias gestuais com suporte na escrita; (2) de 1906 a 1991, em que

eram usadas apenas metodologias oralistas; e (3) a partir de 1992, quando se começou a implementar e a desenvolver o modelo bilingue21.

Durante o segundo período, ainda de acordo com o mesmo autor, já o Instituto de “surdos-mudos” (fundado em 1823) tinha passado a chamar-se Instituto Jacob Rodrigues Pereira e a grande afluência de alunos surdos levou a que este passasse a albergar apenas rapazes, enquanto as raparigas foram transferidas para o Instituto Araújo Porto, entretanto aberto no Porto. Ao mesmo tempo, os rapazes que aqui se encontravam foram transferidos para Lisboa, para o Instituto Jacob Rodrigues Pereira. Estes alunos eram, então, segregados dos ouvintes e sujeitos a metodologias de ensino oralistas, que proibiam o uso da LGP.

Só a partir de 1992, Maria Augusta Amaral e Amândio Coutinho, perante os resultados de uma investigação que fizeram com um grupo de cem alunos do Instituto Jacob Rodrigues Pereira – que revelavam que os alunos surdos não estavam a desenvolver todas as suas potencialidades, ficando muito aquém dos resultados dos seus pares ouvintes – propuseram o uso do método bilingue, com base na LGP como primeira língua das crianças surdas. Este modelo preconiza que as crianças e jovens surdos devem fazer as suas aprendizagens através da LGP, sendo o Português aprendido como segunda língua, na sua vertente escrita e, eventualmente, oral (cf. Carvalho, 2007: IX-XIV).

Apesar da proibição do uso da LGP – conforme preconizado pelo Congresso de Milão de 1880 – os alunos continuavam a usá-la às escondidas, fora das aulas. Como a maioria vinha de longe, ficavam em regime de internato e era entre eles que a LGP se desenvolvia, eram eles que a iam transmitindo a outros. Havia ainda crianças oriundas de famílias Surdas, que chegavam a essas escolas já fluentes em LGP e a transmitiam aos outros. Deste modo, a língua preservava-se e desenvolvia-se (Carmo, Martins, Morgado & Estanqueiro, 2007: 9-10).

Só em 1997, aquando da quarta revisão constitucional, é que a LGP foi reconhecida “enquanto expressão cultural e instrumento de acesso à igualdade de oportunidades” (Constituição da República Portuguesa, artigo 74º, nº 2, h)). Na sequência deste reconhecimento, surgiu o Despacho Normativo 7520/98, de 6 de maio, onde se defendia que a educação de crianças e jovens surdos deveria ser feita, de

21 Onde a LGP é aceite como primeira língua e usada como língua de acesso às aprendizagens,

preferência, em ambientes bilingues que possibilitassem o domínio da LGP como primeira língua e do Português (escrito e eventualmente falado) como segunda língua. Foi este Despacho que definiu a criação de unidades de apoio à educação de alunos surdos, que integravam, entre outros técnicos e docentes especializados na área da surdez, formadores e intérpretes de LGP, e onde se procurava concentrar crianças e jovens surdos oriundos de diferentes concelhos. Contudo, apesar da recomendação, o Despacho não tornava obrigatória a aprendizagem da LGP como primeira língua e do Português como segunda (cf. Despacho Normativo 7520/98, de 6 de maio).

De acordo com algumas comunicações pessoais (de docentes e intérpretes de LGP, bem como de antigos alunos de unidades de apoio à educação de alunos surdos), no que diz respeito a algumas escolas da região Norte, os formadores de LGP normalmente acompanhavam os docentes responsáveis pelas disciplinas e apenas adaptavam para LGP o que era ensinado por estes, não se dedicando ao ensino da LGP em si. Ainda de acordo com estas comunicações pessoais, havia outras escolas onde estava previsto o ensino da LGP, mas onde nem sempre a sua frequência era obrigatória, pelo que os alunos surdos podiam optar por não o fazer. Como não havia plano curricular nem materiais, cabia aos formadores de LGP o planeamento destas aulas – que incidiam sobretudo no ensino de vocabulário, história dos Surdos e construção de histórias.

Dez anos depois do Despacho Normativo 7520/98 surgiu o Decreto-Lei 3/2008, de 7 de janeiro, que procurava concentrar os alunos surdos em escolas de referência para a educação bilingue de alunos surdos (em menor número do que as anteriores unidades de apoio a alunos surdos). Foi finalmente criada a área curricular de LGP e estipulado que esta seria ensinada como primeira língua, enquanto o Português seria ensinado como segunda língua aos alunos surdos. Pretendia-se, com este diploma, criar comunidades de referência linguística e cultural para as crianças e os jovens surdos e possibilitar-lhes o contacto com modelos de identidade linguística e cultural – adultos Surdos, docentes de LGP (e eventualmente de outras áreas curriculares). Não obstante, Gomes (2010) constata que, se teoricamente este diploma representou um grande progresso na educação dos surdos, ao aplicá-lo nestas escolas, “ocorreram os mesmos problemas apontados noutros países, nomeadamente, falta de formação dos professores de LGP, falta de formação pedagógica dos formadores surdos e continuação das mesmas representações sobre esta população” (p. 35). Embora fosse defendido o bilinguismo, a verdade é que a educação dos surdos continuou inserida na educação

especial e “os pais das crianças surdas que chegavam às escolas optavam cada vez mais por uma via oralista” (Gomes, 2010: 35).

A agravar a situação até aqui descrita, o espírito do Decreto-lei 3/2008 foi esquecido quando, uns meses mais tarde, surgiu a Lei 21/2008, de 12 de maio, onde se substituiu a designação “docentes Surdos de LGP” – constante daquele – por “docentes de LGP”. Esta mudança veio abrir a possibilidade a que qualquer pessoa – mesmo que gestuante não nativo de LGP (surdo ou ouvinte) e com apenas três anos de aprendizagem da língua22 – pudesse passar a lecionar a LGP como primeira língua, desde que tivesse habilitações académicas para o seu ensino.

Acresce que, apesar de a LGP ter passado a ser área curricular obrigatória para crianças e jovens surdos, os seus docentes continuam a deparar-se com a falta de materiais para o seu ensino. Assim, conforme denunciou o presidente da direção da Associação Portuguesa de Surdos23, cada docente de LGP tem de fazer os seus próprios materiais e planear as suas aulas. Então, cada docente cria os materiais conforme a sua interpretação do programa curricular de LGP (cf. Carmo et al, 2007). A isto, junta-se também o pouco conhecimento teórico que ainda existe sobre a gramática da LGP.

Todos estes dados revelam-nos que os Surdos, mesmo aqueles que foram abrangidos pelo Decreto-Lei 3/2008 (ou a Lei 21/2008) desde o início do seu percurso escolar, não têm um ensino formal da LGP primeira língua equiparável ao que os ouvintes têm do Português primeira língua24.