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Ensaio da cena musical portuense: continuidades e ruturas

2. Cenas, momentos, música e cidade

2.4. Ensaio da cena musical portuense: continuidades e ruturas

É consensual que, nos últimos anos, as cidades e os seus centros históricos têm-se defrontado com um movimento de revalorização social. A cidade do Porto e a sua Baixa não são exceção. Em grande parte devido à dinamização das cenas musicais, esta paisagem urbana encontra-se em mudança. Os anos 80 marcaram a afirmação do Porto no panorama nacional ligado à cena musical underground a afirmação do Porto no panorama nacional ligado à cena musical underground e alternativa. Neste avanço do século XXI, essa dinâmica tem sido retomada e escolheu como seu palco de excelência o palco público e semipúblico da Baixa portuense.

O Passos Manuel, o Maus Hábitos ou o Plano B, por exemplo, são espaços que reavivam esta área da cidade, pontos de encontro e de mistura de pessoas, o que, em boa parte, poderá explicar o sucesso destes projetos em termos de afluência de públicos. Com um intenso trabalho de programação e divulgação, estes espaços afirmam-se no subcampo do rock alternativo e difundem música de vanguarda. Um recente trabalho de Paula Guerra demonstrou que “desde meados da década de 80 do século passado que estes espaços se têm vindo a impor na paisagem urbana de Lisboa e do Porto, sendo mais um dos elementos do “texto” onde podemos ler o metabolismo societal da modernidade e, muito especialmente, das

mudanças nela ocorridas nos últimos trinta anos em Portugal (2010: 840). A autora considera mesmo que “a mobilização do espectáculo e, essencialmente, os novos modos de produção de capital simbólico sedeados na cidade entrelaçam-se com a reorganização urbana. (…) Estes espaços apresentam-se como reactualizações presentes dos anteriores espaços de convivialidade e de lazer, desempenham funcionalidades idênticas, mas baseiam as suas acções numa nova materialidade correspondente ao campo de aspirações e universo de possíveis dos actores em presença, predominantemente jovens (pese embora a plasticidade e amplitude cada vez mais dilatada desta condução), portadores de recursos culturais, simbólicos, sociais e económicos de acesso à cultura na cidade” (Guerra, 2010: 842).

Figura 3 – Bilheteira do Passos Manuel; Sala de Concertos do Plano B; Salão Nobre do Maus Hábitos (da esquerda para a direita)

Exploremos os três espaços que constituem o objeto de estudo desta investigação, de forma a os conhecer um pouco melhor. Começamos pelo Maus Hábitos, pelo simples facto de, entre os três, ter sido o primeiro a abrir ao público na cidade. Para chegarmos ao momento da sua abertura temos que recuar até 2001. No quarto andar de um edifício sito na Rua de Passos Manuel, datado de 1939, o espaço foi ocupado sob contrato de comodato, ou seja, a partir do momento em que é assegurada a recuperação do imóvel, o pagamento mensal da renda fica posto de parte. Nestas condições, o local, descoberto em 1999, foi sujeito a remodelações para se apresentar, dois anos mais tarde, como: “um espaço de criação artística, aberto às diferentes formas de arte, capaz de projectar culturalmente a cidade.” (Guerra, 2010: 1039). Almejando ser um ponto de acolhimento para projetos artísticos sem expressão noutros contextos, o Maus Hábitos dispõe hoje de um salão nobre, que desempenha a função de restaurante, bar e club (função que se altera com o avançar das horas), uma sala de exposições, uma sala de espectáculos e uma zona de esplanada, dinamizada com projeções e concertos acústicos. Nas palavras do seu atual programador, que entende, tal como Landry (2003), que as características culturais distintivas de uma cidade são aquilo que a distingue num contexto global, este é um espaço único em Portugal. Espaço onde a música ocupa 60% da programação e os restantes 40% dividem-se pelas outras atividades, sendo que as artes plásticas têm uma presença forte 6.

“É o único espaço que eu conheço, pelo menos em Portugal, que permite ter, ao mesmo tempo, um concerto num espaço, uma exposição, uma performance e um Dj a passar som e estar tudo a acontecer ao mesmo tempo. Os donos têm uma abertura total. Este é um espaço multicultural e, sobretudo, ligado à criatividade. (…) Somos mais ou menos heterogéneos, mas a bitola é sempre a qualidade.”

António, 41 anos, Programador do espaço Maus Hábitos, Porto

As linhas de programação do espaço são bastante abrangentes. Apesar da aposta na música ser forte, esta alcança diversos géneros, para responder com sucesso aos desejos de um público eclético, no que a gostos musicais diz respeito. Ainda assim, apesar da diversidade, a tónica da programação musical cai sobretudo sobre dois géneros: o

electro/dance e o rock alternativo/indie rock, conclusão a que chegou Paula Guerra, em 2010,

quando estudou a programação do espaço, entre Julho de 2006 e Julho de 2008.

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A mesma socióloga descreveu o Maus Hábitos como ‘uma espécie de “farol’, ou seja, como um potencial factor de atracção de pessoas e projectos para a área da cidade em questão.” (Guerra, 2010: 1043). Três anos após a sua abertura, o Maus Hábitos ganha um novo “vizinho”. Mesmo em frente, no lugar do antigo Cinema Passos Manuel, tem lugar, desde 2004, um espaço de animação e intervenção cultural com o mesmo nome. O antigo cinema ainda hoje se mantém com programação semanal, mas acrescentou-se no local uma mini discoteca e um pequeno bar. Por opção do responsável pelo espaço, também proprietário do projeto Aniki BóBó, na Ribeira, durante vinte anos (1985-2005), na Ribeira, os traços arquitectónicos do edifício foram respeitados, não se registando, a este nível, nenhuma intervenção.

Aberto à experimentação, o Passos Manuel apresenta uma programação de vanguarda, porém, o seu proprietário rejeita o título de “rampa de lançamento” para projetos em ascensão.

“Eu nem sequer acho que seja uma rampa de lançamento. O Passos está atento às coisas, faz convites, ou acolhe esses projetos, se for caso disso, no início de carreira.”

Franscisco, 62 anos, Empresário no espaço Passos Manuel, Porto

Ainda sobre a programação deste espaço, apesar da ligação ao cinema, a música apresenta-se como elemento estruturante e, dentro dela, as atenções voltam-se para o electro/dance. Sem reservas, o proprietário do espaço procura novas tendências e não hesita em apostar nelas. O mesmo sente até que é esta a forma que demarca o seu espaço dos restantes lugares que o envolvem.

Por último, a inauguração do Plano B, em Dezembro de 2006, marca a explosão da Baixa à esquerda da Avenida dos Aliados. Este espaço, resultado dos esforços de dois arquitetos, um músico e um artista plástico, tomou forma numa antiga loja/armazém de tecidos, na Rua de Cândido dos Reis. O objetivo deste grupo de jovens empreendedores passou pela vontade de oferecer à cidade um espaço ligado à cultura, mas polivalente e versátil na sua caracterização.

“Descia a Rua da Picaria, depois vinha por aqui pela Rua dos Caldeireiros e então, pronto, sempre que passava aqui via estes espaços abandonados e dizia: “Fogo, estes espaços têm um potencial brutal.”.”

Constituído por três áreas distintas, o espaço dispõe de três bares, uma sala de exposições, uma sala de concertos e uma outra sala mais orientada para a música electrónica. A decoração do espaço tem um forte pendor retro, no entanto os elementos decorativos, por vontade dos proprietários, alteram-se regularmente. A abertura do Plano B marca o início de um período de inaugurações de espaços semelhantes na Baixa do Porto. O que o distingue dos demais? O espaço distingue-se por não se fechar a nenhum género musical, nem expressão artística. É por isso um lugar heterogéneo e vanguardista na sua oferta.