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Não é possível iniciar uma discussão sobre o ensaio jornalístico, sem que

retomemos a sua origem literária. A crítica literária aponta que foi Michel Eyquem de

Montaigne quem criou o gênero ensaio, assim denominando-o. Obra publicada em

1580, Ensaios é um livro constituído de pequenas composições sobre temas

variados, tanto formais quanto informais. Segundo Gómez-Martínez (1997), quando

Montaigne publicou Ensaios, tinha consciência do seu pioneirismo enquanto

inovação na arte literária. No mesmo século, outra referência autoral e basilar para o

gênero foi Francis Bacon. Gómez-Martínez (1997) afirma que esses autores

apresentaram possibilidades distintas de ensaios, prevalecendo naquele a intuição

poética e neste a intuição retórica, ou seja, em Montaigne, o ensaio era mais voltado

à estética literária e, em Bacon, à defesa de um posicionamento.

Conforme Álvarez (1994), o ensaio é uma das formas de manifestação da

argumentação. Álvarez (1994, p. 40) define-o, ainda o tomando como um discurso

do campo literário, “ligado a la reflexión libre, al discurrir en libertad y, por ello, es el

instrumento idóneo del que se vale la cultura en su constante evolución”

22

. Segundo

a autora, então, através desse gênero, há a manifestação da opinião do sujeito

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“Ligado à reflexão livre, ao discorrer em liberdade e, por isso, é o instrumento idôneo do qual se vale a cultura em sua constante evolução” (livre tradução).

empírico sobre determinado assunto e a sua defesa de modo a contribuir com uma

reflexão a mais sem o objetivo de ser estanque. Mas, também outros gêneros de

opinião podem apresentar essa característica, como é o caso do artigo, cuja

discussão apresentaremos na sequência.

Ainda pensando em como é visto o ensaio no campo literário, algumas

características podem levar à identificação de um discurso como pertencente a esse

gênero. Com base em Gómez-Martínez (1997) e Álvarez (1994), sistematizamos as

principais delas, quais sejam:

a) trata de temas da atualidade. O ensaio é um discurso enunciado a partir da

provocação gerada por um tema recente;

b) é breve, geralmente em torno de uma página, e possui caráter inacabado.

Essa característica não aponta o ensaio como um gênero incompleto, inconcluso,

mas se refere ao fato de que o ensaísta não pretende esgotar as discussões sobre o

tema tratado, apenas lançar seu ponto de vista num tom reflexional. A essa

característica se refere também a de que o locutor não precisa ser especialista no

assunto, pois, frequentemente, interpreta dados investigados pelo especialista.

Ademais, o ensaio pode ser retomado posteriormente, dando continuidade

cronológica à reflexão;

c) faz uso de citações imprecisas, revelando não uma preocupação com uma

estrutura científica, mas a busca pela persuasão que tende ao uso do argumento de

autoridade;

d) também pode esboçar a subjetividade do locutor;

e) não possui estrutura formal rígida/com um modelo.

Além desses aspectos, outro é fundamental na compreensão do ensaio no

campo literário, tanto para Álvarez (1994) quanto para Gómez-Martínez (1997), a

saber: a importância dada ao interlocutor. Observemos o que cada autor afirma

sobre isso. Mas ressaltamos que ambos os teóricos se pronunciam desde uma

perspectiva literária. Assim, devemos transpor termos como “autor” para “locutor” e

“leitor” para “interlocutor” para podermos extrair a essência de suas contribuições

para nossa discussão, de cunho enunciativo.

En todo momento el autor tiene presente la idea de que está participando en un hecho comunicativo, en donde el receptor desempeña un papel importantísimo, ya que constituye el punto de destino de su propia meditación. Esto explica las reiteradas alusiones a los lectores como si se intentara abrir un diálogo.23 (ÁLVAREZ, 1994, p. 40-41)

Una de las funciones primordiales del ensayo es la de sugerir al lector. Ello, sin embargo, presupone la existencia de un lector dispuesto a proyectar en su propio mundo interior lo que para él se inicia en el ensayo.24 (GÓMEZ- MARTÍNEZ, 1997, Capítulo 16)

Tanto Álvarez, quanto Gómez-Martínez, apesar de estarem fazendo suas

considerações inseridos no âmbito da Literatura, tratam de algo que na enunciação

é fundamental: a inter-relação entre locutor e interlocutor. Como já assinalamos

anteriormente, tanto um quanto o outro são necessários para que haja enunciação.

De acordo com o que podemos identificar nesses fragmentos de Álvarez e Gómez-

Martínez, no ensaio, portanto, há, normalmente, algumas referências linguísticas ao

interlocutor, permitindo-nos identificar o papel co-enunciativo deste. Buscaremos

identificar, no capítulo 4, se, nos ensaios selecionados para compor o corpus desta

dissertação de mestrado, há também essas referências, e se elas são feitas por

meio de marcadores discursivos. Nesse sentido, podemos dizer que, também na

enunciação através do ensaio, o interlocutor é a razão do forjar discursivo de um

determinado locutor, emoldurando, assim, um ethos.

Atualmente, o ensaio não é um gênero predominantemente literário, mas que

se encontra, também, nos âmbitos acadêmico, do qual não trataremos, e jornalístico,

ao qual pertencem os textos reunidos no corpus desta pesquisa.

Conforme Beltrão (1980), é possível chamar de gênero opinativo aquele em

que um ponto de vista é expresso, ou seja, a opinião é o juízo que se faz do

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“Em todo momento, o autor tem presente a ideia de que está participando em um fato comunicativo, no qual o receptor desempenha um papel importantíssimo, já que constitui o ponto de destino de sua própria meditação. Isso explica as reiteradas alusões aos leitores como se tentasse abrir um diálogo” (livre tradução).

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“Uma das funções primordiais do ensaio é a de sugerir ao leitor. Isso, no entanto, pressupõe a existência de um leitor disposto a projetar em seu próprio mundo interior o que para ele se inicia no ensaio” (livre tradução).

assunto. Do gênero opinativo fazem parte tanto o artigo quanto o ensaio, cada qual

com particularidades que os diferenciam em relação à estrutura e profundidade.

Contudo, nem todos os autores que tratam dos gêneros de opinião concordam com

essa diferenciação.

Melo (2003, p. 128) aponta que o artigo, por sua concisão e oportunidade,

presta-se mais à publicação no jornal, sob o risco de ter seus argumentos superados

pela própria evolução dos acontecimentos. Enquanto isso, o ensaio, por ser mais

longo e exigir argumentação documentada, figura geralmente nos cadernos culturais

ou científicos (cujo compromisso com a atualidade não é tão rigoroso), tendo lugar

mais apropriado nas revistas especializadas ou nos periódicos cuja circulação é

espaçada.

Explica também Melo (2003) que existe a discussão em torno da possibilidade

de o ensaio, a rigor, poder ser considerado gênero jornalístico, já que o fato de um

texto ser publicado em um jornal ou uma revista não lhe confere caráter jornalístico.

Há que se ver, como exemplo dessa relação do ensaio com a literatura, os livros Em

outras palavras, de Lya Luft, que reúne textos publicados pela escritora

originalmente na revista Veja, e São Paulo Século XXI, de Fausto Chermont, no qual

se encontram textos do articulista Roberto Pompeu de Toledo, também elaborados

para a revista Veja. Assim, um ensaio publicado em um veículo jornalístico impresso

pode ser um gênero do jornalismo, como também uma expressão da Literatura,

como já foi dito. O autor admite, porém, que o ensaio de apreciação, de cunho

descritivo, impressionista, pessoal corresponde à crônica; e o ensaio de julgamento,

regular, metódico, dentro de uma estrutura formal de explanação, discussão e

conclusão, em linguagem austera, aproxima-se mais do artigo (MELO, 2003, p. 128).

De acordo com Beltrão (1980), o ensaio possui uma estrutura bastante

semelhante à do artigo, motivo pelo qual muitas vezes se confundem esses dois

gêneros jornalísticos. O autor acrescenta que enquanto texto essencialmente

argumentativo, o valor da argumentação no ensaio assume papel decisivo na

estruturação. Beltrão (1980) conceitua, portanto, o ensaio por oposição ao artigo. Ele

afirma que ao contrário do artigo, em que a argumentação baseia-se no próprio

conhecimento e sensibilidade do articulista, a argumentação do ensaio apoia-se em

fontes que se legitimam pela sua credibilidade documental. Ao primeiro atribuem-se

julgamentos mais ou menos provisórios, porque escrito enquanto os fatos ainda

estão se configurando. Já o segundo apresenta pontos de vista mais definitivos,

alicerçados com solidez, porque tem compreensão mais abrangente do fato e

pretende sistematizar o seu conhecimento.

Ademais, de acordo com Medeiros (2008), o ensaio é um gênero híbrido, que

cumpre uma função argumentativa num contexto sócio-histórico, já que reflete o

momento em que está inserido e remete à comunidade discursiva de quem e para

quem se dirige. Concordamos com a autora no diz respeito à relação que se

estabelece entre o ensaio e o contexto sócio-histórico de sua argumentação, pois

sabemos da função de manifestação de inquietações cotidianas que tem assumido

historicamente esse gênero.

No entanto, não nos preocupamos com sua caracterização como um gênero

híbrido ou não, ou com os limites que circundam esse e outros gêneros jornalísticos,

como fazem os estudiosos supracitados neste item, pois acreditamos que o ensaio

não se define pela sua forma, mas pela sua composição que traz observações de

determinado locutor sobre fatos observados a sua volta. Tomando como ponto

central o fato de que o ensaio é um discurso de mídia impressa, ele deve abarcar o

ponto de vista do locutor e também do veículo de comunicação social no qual é

veiculado e considerando os possíveis interlocutores dessa enunciação.

Enfim, diante da retomada teórico-conceitual que tentamos esboçar neste

capítulo como um todo, passaremos a examinar quais marcadores discursivos

aparecem no corpus da pesquisa e, principalmente, quais considerações de ordem

enunciativa podem ser feitas em virtude de determinadas ocorrências no que diz

respeito ao ethos do locutor de cada um dos conjuntos de ensaios que constituem o

corpus analítico deste trabalho. No capítulo que segue, apresentaremos os

procedimentos metodológicos utilizados na realização da pesquisa em andamento,

no intuito de responder aos nossos questionamentos iniciais sobre o papel dos

marcadores discursivos na argumentação enquanto um dos possíveis elementos

linguísticos que favorecem a constituição do ethos.

2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

No capítulo anterior, enfatizamos que a Linguística da Enunciação é a

perspectiva teórica na qual fundamentamos este estudo. Apontamos também que

essa vertente não apresenta um método pré-estabelecido ou fixo de análise, pois

cada teoria enunciativa pode possuir, ou não, seu método particular, de acordo com

as materialidades que toma como objeto. De acordo com Flores et al. (2008), “cada

teoria enunciativa constrói recursos metodológicos próprios sem que isso implique

algum tipo de generalização ao campo”. Em contrapartida, como discutimos

anteriormente, o ponto de vista da Enunciação é um só e recai sobre os sentidos.

Desse modo, ao assumirmos a perspectiva enunciativa em nosso trabalho,

buscamos entender o que as marcas linguísticas nos revelam sobre os sentidos da

enunciação do sujeito. Nosso objeto de estudo não é, portanto, o conteúdo do

enunciado, mas são os sentidos da enunciação do sujeito no enunciado com uma

orientação argumentativa.

Acreditamos que a argumentação se constrói no plano da língua e não no das

ideias, pois é na língua e pela língua que ela ganha materialidade e produz sentidos.

Com essa afirmação, reforçamos nosso entendimento sobre a forma de pensar a

análise enunciativa. A análise enunciativa leva em conta sempre o trabalho com a

língua no momento da enunciação, não abarca uma discussão sobre as ideias que

estão sendo trabalhadas nem sobre as intenções do sujeito, mas sim sobre a

materialidade linguística e as possibilidade de sentido que dela emergem.

Neste capítulo, explicitaremos o encaminhamento metodológico que

adotamos, o qual faz de nosso estudo uma pesquisa, ao mesmo tempo, qualitativa e

quantitativa, orientada por um eixo analítico-descritivo-interpretativo. Dizemos ser

esta uma pesquisa quantitativa na medida em que consideramos a quantidade de

marcadores empregados em um número considerável de ensaios jornalísticos, a fim

de delinearmos uma tendência enunciativa de utilização dos marcadores, o que

poderá nos revelar um perfil de ethos discursivo do locutor, ou seja, pelas marcas

linguísticas, o locutor se marca como sujeito, deixando mostrar uma imagem de si.

Além disso, a pesquisa é também qualitativa para que possamos lançar uma

interpretação sobre os dados, buscando os efeitos de sentido produzidos por eles,

verificando sua contribuição na construção do ethos.

Nosso dispositivo analítico é composto por três categorias, a saber: categoria

de análise – os marcadores discursivos, categoria de descrição – o locutor – e

categoria de interpretação – o ethos. Nesse sentido, ao passo que analisamos os

efeitos de sentido produzidos pelo uso ou pela ausência dos marcadores no corpus

da pesquisa, vamos descrevendo o locutor que se mostra nos enunciados para,

posteriormente, interpretar uma possibilidade de ethos que emerge e é construído

nessa e por essa materialidade linguística. Salientamos, ademais, que as duas

últimas categorias, de descrição e de interpretação, não podem ser dissociadas,

visto que, ao mesmo tempo em que se descreve o locutor, a partir dos elementos

linguísticos presentes no enunciado, vai-se moldando um perfil desse locutor, o seu

ethos.

Para empreender a análise tomaremos como parâmetro alguns referenciais

teóricos como as gramáticas normativa e descritiva adotadas para nos auxiliar nessa

tarefa, visto que não existe uma gramática enunciativa. Aliás, não existe, até o

momento, uma gramática enunciativa, pelo menos não nos moldes de uma

normativa, tendo em vista o caráter irrepetível da enunciação. Como já tratamos

num momento anterior neste trabalho, se cada enunciação é única, são únicos

também os usos dos mecanismos linguísticos e seus efeitos de sentido. A gramática

normativa nos dá um parâmetro estruturalista da língua e a descritiva nos aponta um

olhar funcionalista/semântico-pragmático.

É importante iniciar a análise a partir dessas gramáticas, em primeiro lugar

porque é nelas que estão sistematizadas as regularidades do uso da língua e, em

segundo lugar, porque entendemos que um estudo enunciativo dos marcadores

discursivos revelará mais sobre esses elementos do que o que está contemplado

nesses referenciais, levando em conta também as particularidades que cada

enunciação apresenta em relação à forma. Em um deles – a gramática normativa –

a perspectiva de enunciado não é considerada. Já no outro – a gramática descritiva

– trata-se de enunciado, mas em nenhum momento se chega à enunciação. Nem

sempre é eficaz a noção de intenção empregada nesses estudos. Acreditamos que

é preciso ir além do processo cognitivo e refletir sobre os efeitos de sentido

produzidos por determinadas estruturas linguísticas no âmbito da enunciação.

Ressaltamos, ainda, que não queremos, de modo algum, desconsiderar

essas teorias. Pelo contrário, estamos recorrendo a elas porque procuramos ampliá-

las, na busca da compreensão linguístico-enunciativo-discursiva. E reconhecemos a

importância desses trabalhos para a ciência linguística de tal forma, nesse sentido,

partimos da descrição da forma gramaticalizada e seguimos para a análise dos

sentidos de determinada forma na enunciação.

Cabe, ainda, um esclarecimento sobre a opção pelas gramáticas que

empreenderemos nesta dissertação – Rocha Lima (1982) e Moura Neves (2011).

Dentre tantas excelentes possibilidades, optamos por esses referenciais de consulta,

quando do desenvolvimento das análises em nossa pesquisa, considerando alguns

fatores. Quanto à gramática normativa, lembramos que Carlos Henrique da Rocha

Lima é um dos mais tradicionais gramáticos da Língua Portuguesa, sendo também

um dos criadores da Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), e que sua

Gramática Normativa da Língua Portuguesa é a única gramática brasileira que se

define como “normativa”. Quanto à gramática descritiva, salientamos que Maria

Helena de Moura Neves, respeitada linguista, elaborou a primeira gramática

descritiva brasileira, a sua Gramática de Usos do Português, tornando-se referência

nos estudos descritivos.

Além das gramáticas, recorremos a alguns dicionários de partículas – Santos

Río (2003), Rodríguez (2009) – e obras que se dedicaram a analisar marcadores

discursivos – Portolés (1998), Briz (1998), García (2007), Fernandes (2005).

Salientamos que nenhum desses estudos possui também caráter enunciativo, eles

são todos de cunho pragmático. Mas, como dito, devido à escassez de estudos,

tentaremos fazer uma leitura enunciativa desses materiais que já existem e que são

referências em seus campos teóricos. Trabalhamos fundamentalmente com

materiais em Língua Espanhola pela consistência teórica dos trabalhos.

Quanto aos valores atribuídos a esses mecanismos da língua, existem alguns

estudos que tratam desse aspecto e nos quais vamos nos basear para realizar a

análise do nosso corpus de pesquisa e que serão apresentados na metodologia.

Mais especificamente sobre os conectores e os marcadores conversacionais, foco

de nossas discussões neste momento, os textos de García (2007) e Bríz (1998)

trazem contribuições essenciais para o nosso trabalho.

García (2007), por exemplo, aponta valores que alguns conectores podem

expressar. A autora, referindo-se a relações argumentativas de adição, oposição e

causalidade, sistematiza, entre outros, valores do “y”, do “pero” e do “por (lo) tanto”

(marcadores discursivos da língua espanhola). A partir dessa sistematização,

tentamos pensar esses valores, aproximando-os aos dos marcadores “e”, “mas” e

“portanto”, da língua portuguesa. No decorrer das análises, conforme a necessidade,

iremos apresentando e explicando, de acordo com o prevê a autora, alguns desses

valores.