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25 Ensinamentos Novos

No documento O Abismo - R.A. Ranieri (Revisado) (páginas 46-51)

Espessas sombras invadiam agora a região por onde passávamos. Sentíamos que a escuridão se tornara mais densa. Atafon, após a advertência do Monstro, apagara- se completamente e marchava conosco apenas à luz da lanterna do infeliz que nos acompanhava. Aquela criatura inconsciente servia-nos de modo automático. Tinha somente um resto de sentimento de responsabilidade que lhe determinava obedecer Atafon sob o impulso talvez de uma lei mal percebida por nós. Por certo, o anjo já numerosas vezes usara os seus serviços. E à força de vê-lo iluminado teria a criatura se curvado à sua autoridade.

Atafon, lendo-me o pensamento; sorriu.

— Não, meu caro, não é nada disso. Simplesmente, os Dragões autorizaram-no e determinaram-lhe me servir. Ele obedece fielmente aos Dragões.

Surpresa maior não poderia se estampar em meus olhos! Como?! — exclamei assombrado. Então, está apenas a serviço dos Dragões?

Atafon tornou a sorrir naquele seu sorriso cheio de mansuetude.

— Quando fui designado pelas forças superiores para servir nestes abismos apresentei-me aos Dragões e disse-lhes qual a minha missão. Já habituados com outros mensageiros que em outras épocas vieram com a mesma finalidade receberam- me com frieza, porém corretamente. Por sua vez indicaram o Anão para me atender no que fosse preciso. Enquanto eu os fiscalizo em nome das forças de Cima, ele me fiscaliza em nome das forças inferiores...

Não podia ser maior o meu assombro. Nunca supusera que aquele escravo do mal fiscalizasse um Anjo!

No entanto, ali estava ele submisso e vigilante dentro da sua inconsciência. Não seriam assim também "em nosso mundo de encarnados? Quem sabe o mal que avassala a Terra não seja ele somente uma defesa è um amparo para aqueles que iniciaram a marcha no bem? Tão estranhos eram aqueles ensinamentos que por trai instante julguei que ia perder os sentidos já tão abalados por tudo o que via. Orcus amparou-me bondosamente.

Uma verdadeira explosão atômica se desencadeara dentro de meu cérebro e senti que tudo rodava vertiginosamente.

Quando voltei a mim, descansava nos braços de Orcus, repousando à margem de belíssimo rio que deslizava por entre árvores silenciosas que cobriam-lhe as margens. Uma brisa suave acariciava-nos os cabelos amorosamente.

Olhei para o Alto buscando Gabriel e não o encontrei. Picos prodigiosos elevavam-se como torres pontiagudas que se perdiam na distância quase sem limites.

Uma ansiedade esquisita dominou-me o coração. Um desejo desesperado de retornar à superfície e voltar novamente à vida da Terra. Parecia-me que fora exilado no bojo de um submarino que navegasse no fundo do mar. Tudo para mim se tornara estranho e angustioso. Oh! se pudesse voltar!

Orcus abraçou-me carinhosa e paternalmente. Atafon alisou-me a testa com um sorriso algo triste.

— Não se preocupe nem se desespere, meu amigo, há mais de três séculos permaneço nestas regiões sem voltar às regiões onde habito... Tudo no Universo obedece a leis imutáveis e certas. O mergulho que você deu, no abismo é apenas conseqüência da lei que o obriga a descer para depois subir... Ninguém atinge os cimos sem primeiro experimentar as angústias de baixo.

Atafon calou-se. Eu, porém, busquei compreender-lhe o pensamento audacioso mas não consegui. Quanto mais tentava pensar mais um suor frio me cobria a fronte.

R. A. Ranieri / André Luiz Página 47 O anão olhava-nos parado, extático, evidentemente sem compreender o que se passava. Os olhos vidrados permaneciam-lhe nas órbitas como dois faróis apagados. As mãos em forma de garras e os pés caprinos davam-lhe à figura ares de deus Pan.

— E este — perguntei curioso — há quanto tempo jaz nestas profundidades? — Nove mil anos, — foi a resposta de Atafon. Déspota terrível na superfície desceu aos abismos como escravo. Traz em si os primeiros sinais da estatização ou em linguagem mais compreensível: está perdendo o uso das faculdades normais da razão e do entendimento e embotando os sentidos de relação com o exterior. Pouco a pouco mergulha dentro de si mesmo caminhando para a imobilidade do perispírito mais denso. Se mantiver a mente presa ao mal e à vingança automática, irá

perdendo depois as expressões humanas da forma. Isso terá início pelos órgãos que mais exercitar no mal. Note que possui os olhos vidrados... opacos... parados... É porque os tem usado constante no trabalho de vigilância a serviço das trevas. Centralizou as energias paralisantes nos órgãos da visão. Não vê outra coisa senão O mal para denunciar os transgressores aos Dragões que os submetem a duros castigos. Meu filho, estamos em plenos domínios dos Grandes Espíritos que controlam a forma no processo de dilaceramento corno caminho para a condenação que os homens não conhecem.

— Mas isto não será então os infernos? — exclamei exaltado.

— De uma certa forma é, confirmou Atafon. E o que não é inferno no universo, fora das leis de Deus?

26 - Na Gelatina

Mal refeito da explosão atômico-celular que me prostrara, sob o império de prodigiosa vibração, prossegui a marcha amparado ora em Orcus, ora em Atafon.

Estava claro que eu não possuía nem a elevação superior para passar incólume no meio das trevas nem a inferioridade degradante para permanecer nas profundezas do abismo. Criatura sintonizada com o magnetismo da superfície, filho quase da Crosta planetária, sentia-me asfixiar em pleno coração da Terra.

Súbito, defrontamos imensa montanha de matéria mole semelhante à gelatina. Era de fato de cor verde clara dando-nos a impressão de que poderíamos ver, através dela ou atravessá-la.

Ainda nem bem havia eu pensado isso e Atafon declarou a Orcus:

— Não temos outro caminho. Aqui termina o caminho primitivo. Teremos que atravessá-la.

Notei que Orcus franziu o cenho preocupado e olhou-me pensativo.

— Aumentaremos, provisoriamente, a vibração dele — murmurou Atafon.

— Suportará? — interrogou meu amigo espiritual. E o retorno? Não ficará perturbado?

Atafon também pareceu meditar.

Eu sabia que falavam de mim e contemplei a grande massa gelatinosa com justo receio. Como iria entrar naquela mole imensa de uma matéria completamente desconhecida para mim? Já atravessara muitos obstáculos mas aquilo me parecia fantástico!

Atafon colocou-me a mão espalmada sobre a cabeça e, de imediato, passei a perceber que ondas poderosas de vibrações vertiginosas penetravam-me o peito. A princípio senti calor, depois, enorme leveza dominou-me o organismo perispiritual. Compreendi que crescia em mim mesmo e que me tornava mais rarefeito. A montanha gelatinosa, agora, a meus olhos, não parecia mais um obstáculo tão

R. A. Ranieri / André Luiz Página 48 formidável. Senti que poderia atravessá-la. Inicialmente, uma tontura invadiu-me o cérebro, em seguida serenei-me intimamente e minha visão alargou-se atingindo faixas vibratórias que normalmente eu desconhecia. É certo que uma multidão de seres e coisas que ainda não vira apareciam nesse instante como por

encanto. Divisei criaturas excepcionalmente belas que nos acompanhavam silenciosas. Ao lado disso, seres terríveis, assombrosos, ocupavam-me repentinamente a visão dilatada. Contudo, com um gesto de profunda simplicidade como se houvera realizado a coisa mais natural do mundo, Atafon, deixando-me, avançou em direção ao imenso bloco de gelatina. Avançou e entrou gelatina a dentro como se um raio de luz atravessasse simplesmente um vidro de janela. Assemelhava- se a um peixe numa piscina de vidro.

Fez-nos sinal com a mão. Avançamos. Eu pelo braço de Orcus.

Espantoso é que também entrei na massa esverdeada, verificando que não havia resistência alguma à minha passagem. Como era estranho aquilo tudo! Andávamos sem caminho estabelecido e penetrávamos de maneira inusitada para mim, montanha a dentro.

Um grande silêncio acompanhou-nos a marcha. Atrás ficaram os gritos dos seres horripilantes que havíamos encontrado.

O mundo da morte assemelhava-se-me naquele momento o grandioso mundo da vida. Sob o solo do planeta palpitava a vida espiritual de modo diferente mas absolutamente real. Nossos irmãos mais necessitados permaneciam escravizados à forma que se decompunha ante a insensatez do espírito que desprezava a Lei de Deus. A massa verde era enorme. É possível que, na medida terrestre, significasse alguns quilômetros de distância.

Havia outros seres ali dentro e isso também me espantou. Na realidade julguei divisar peixes flutuando ou polvos silenciosos.

— Aqui, embora o clima seja mais ameno —, esclareceu Atafon — ainda assim encontramos seres e vida. No universo inteiro a vida é presença obrigatória.

O silêncio que acompanhou essas palavras me pareceu maior.

— Preste atenção — disse por sua vez Orcus — e não diga nada. Há muita coisa a observar e ver.

Seres estranhos passavam por nós. Verifiquei que possuíam a forma de peixes, os mesmos peixes conhecidos na Crosta ou de outras formas inimagináveis.

Alguns esquisitos, longos; outros, curtos e chatos.

Dilatei os olhos abismado. Aquelas criaturas também pareciam gente. Na face dos peixes eu encontrava a fisionomia dos homens.

— São seres que voltam na escala evolutiva — explicou Orcus. — Esta fase é a fase que na superfície poderíamos considerar aquática. A centelha mental aí está quase petrificada. Movimentam-se seguindo o instinto, embora as conquistas espirituais no campo da mente não retrogradem. Se as faculdades não lhes foram destruídas, contudo, estão profundamente anestesiadas...

Por nós passava naquele momento um enorme crustáceo.

Orcus alisou-lhe o dorso com carinho. A criatura demonstrou sentir-se bem. Acariciou-lhe ainda o Grande Espírito a cabeça e pediu-me que observasse sua tela mental. Concentrei-me intimamente e pude penetrar-lhe o íntimo. As cenas que divisei na casa mental daquele ser era toda terrestre. Criaturas humanas, com forma humana, ocupavam-lhe os centros da memória. Não refletiam os monstros que o cercavam nem o ambiente abismai. Pelo contrário, como em filme fotográfico, deslizavam-lhe ininterruptamente lares, familiares, seres perfeitamente humanos. Vi- lhe as últimas experiências na Crosta e pude acompanhar de perto seus mais íntimos pensamentos.

R. A. Ranieri / André Luiz Página 49 — Ultimamente, tem-se lembrado muito de suas derradeiras experiências na Terra — informou Orcus.

— E quando ocorreu isso? — indaguei interessado.

— Há mas de vinte mil anos segundo nos explicou Atafon. Agora, parece estar sentindo os primeiros sinto mas daqueles que iniciaram a marcha de volta.

— E os Dragões?! — exclamei preocupado. Não se opõem a isso?

— Fazem tudo para impedir até o momento em que são vencidos pela força da Lei.

O monstro, parado, deixava-se acariciar cheio de mansidão e indiferença ante nossas indagações.

— E isto aqui é um rio ou um lago? — interroguei contemplando a imensidade gelatinosa.

— Poderíamos classificá-la como uma coisa ou outra esta montanha, no entanto, melhor classificada ficaria como sendo a estufa perispiritual ou lago de hibernação ou campo de recuperação...

Aqui, a consciência aparentemente morta pode ainda readquirir o poder de recuperação e começará a "subir"...

Esta forma aquática assim como outras formas ficam como o ovo debaixo da galinha que o choca...

O peixe, por um instante contemplou-nos como se quisesse entender o que falávamos e afastou-se de nós.

Em face disso, reiniciamos a caminhada. Atafon detivera-se ouvindo as explicações de Orcus que para ele por certo seriam infinitamente elementares mas não demonstrou o menor menosprezo. Sério como o diretor de um estabelecimento educacional que assiste a aula de um professor. Jamais sorriria do interesse de um aluno embora inferior como eu.

Agradeci intimamente a imensa bondade com que aqueles seres excepcionais me conduziam. Estava tão distante da superfície quanto um homem da pedra lascada estaria da idade moderna.

Tudo o que via, com certeza teria me enlouquecido se não estivesse sob a tutela daqueles seres. Reino in-sondável, profundamente fantástico, abalava-me intensamente as concepções mais ousadas. Era verdade que Dante, o notável poeta florentino, médium extraordinário, também relatara aspectos do interior da Terra e de algumas zonas acima da superfície ou mesmo no ambiente atmosférico terrestre. Uma coisa, porém, era ler Dante e outra ver o que eu estava vendo! Apenas, ao recordar-me dele, sentia-me constranger o coração lembrando-me do que sofrerá entre os homens após retomar do "inferno". O que me aguardaria a mim?

Peixes e homens, espíritos e anjos, tudo agora se confundia em minha mente como se o mundo da fábula se instalasse no interior de minha alma. Estaria sonhando ou estaria louco?

Avançamos massa a dentro. Às vezes com facilidade, outras, de maneira arrastada, difícil. A respiração nem sempre era normal. Por toda a parte, a vida palpitante ou a estagnação da vida. Seres desconformes singravam a gelatina indiferentes à nossa

R. A. Ranieri / André Luiz Página 50 presença. Todavia, sob o impulso daquela força que nos conduzira para baixo, marchávamos. Súbito. Atafon fez ligeiro staccato e avisou-nos:

— Aqui, defrontaremos poderoso vigilante dos Dragões que por certo nos interpelará. Não se preocupem que tudo correrá de acordo com a Vontade Divina.

De fato, ainda bem não acabara o Espírito de falar e como se saísse de uma caverna aberta na gelatina, surgiu-nos de improviso a figura absurda mas real de um verdadeiro netuno. Tridente na destra, barbas longas e fisionomia de certa maneira até simpática. Notei, porém, que da cintura para baixo era absolutamente peixe. Nadou em nossa direção e a uma distância de uns três metros, após descrever um círculo próprio de seres aquáticos, observou-nos detidamente. Parados, silenciosos, aguardávamos sua manifestação sob o olhar amorável de Atafon.

— Que desejais nos domínios dos Dragões, fiscal do Cordeiro? — falou o estranho netuno com voz indescritível.

Observei que as interpelações dos servos dos Dragões eram sempre vazadas em termos semelhantes.

E por mais esquisito que pareça, só nesse momento, notei que o anão estava ausente, o anão que nos acompanhava. Nada perguntei, atento às recomendações de Atafon, e conclui que não pudera penetrar a gelatina aquosa.

Atafon, com simplicidade e compreensão, esclareceu:

— Recebi a incumbência das Potências a que obedeço de fazer uma viagem de estudos no seio das regiões sabiamente administradas pelos Dragões. Tenho a permissão deles.

O estranho netuno pareceu meditar. Depois ameaçou.

— Está bem. Contudo não se esqueça que tenho às minhas ordens milhares de servos prontos a me obedecerem e que em alguns instantes poderiam destruí-los. Ficam, pois; proibidos de tentar aprisionar e conduzir para a superfície qualquer de nossos tutelados.

— Aprisionar como? — pensei instintivamente. Não estavam eles, isto sim, escravizados e aprisionados na forma?

Percebendo-me a mentalização intempestiva, Orcus fez-me um gesto de silêncio ao mesmo tempo que esclarecia de modo imperceptível:

—. Eles crêem que nós aprisionamos os "seres livres" na superfície. Para nós, "libertá-los" seria o termo exato. Não entendem assim. Crêem firmemente que isto é que é a liberdade.

Permaneci absolutamente imóvel e extático ante esse terrível conceito. Era a inversão de todos os valores. Para eles, os aleijões da forma eram uma glória!

Atafon agradeceu e, surpreendentemente, solicitou-lhe:

— Não poderíamos descansar um pouco em seu ambiente de trabalho? Uma cacetada na cabeça do netuno não lhe teria sido maior choque.

Surpreso, fez um gesto de assentimento e nós o acompanhamos.

Era veloz mas teve a gentileza, talvez inexplicável, de comboiar-nos. Tive a impressão que vendo-nos caminhar enquanto que ele nadava, um sorriso de superioridade bailava-lhe nos lábios. Evidentemente, certo de que a locomoção fácil naquele ambiente gelatinoso lhe dava uma posição superior à nossa, esquecido de que dificilmente se movimentaria em meio diferente enquanto estivesse escravo da

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