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Igualmente ao realizado nas seções anteriores, antes de analisarmos a concepção de ensino de linguagem escrita em Trecho de

um relatório, delineamos o que previa o programa de ensino vigente (SANTA CATHARINA, 1914c) para o ensino dessa disciplina. O programa seguiu orientações semelhantes ao que propôs quanto ao ensino de leitura, pois a disciplina de linguagem escrita dividia-se em cinco fases para o primeiro ano, com a divisão da classe, conforme o aproveitamento

dos alunos, em A (mais ativos), B (medianos) e C (inferiores), segundo o julgamento do professor.

Em relação ao primeiro ano, ainda, na primeira fase de ensino da escrita, o programa de ensino orientava ao professor solicitar cópias de sentenças da cartilha. Na segunda fase, o aluno deveria realizar as cópias, sublinhando as palavras conhecidas. A terceira fase recomendava ao aluno a cópia de “palavras e dellas destacar as syllabas. Copia de

palavras conhecidas [...]” (SANTA CATHARINA, 1914c, p. 18, grifos

do autor). Na quarta fase, o aluno copiava as sentenças do quadro negro, nas quais o professor destacava as sílabas. Por fim, na quinta fase, o aluno deveria copiar trechos dos livros, destacando as letras iniciais das palavras, seguindo-se cópias de “pequenos bilhetes e cartas escriptos no quadro, pelo professor. Dictado de palavras e de pequenas sentenças” (SANTA CATHARINA, 1914c, p. 19). E concluía o ensino da escrita para os primeiros anos, advertindo ao professor que “encaminhe o ensino da leitura, da linguagem oral e da escripta, de maneira a se completarem. ” (SANTA CATHARINA, 1914c, p. 20).

Para o ensino de escrita nos segundos anos, o programa de ensino apresentou orientação mais sucinta, recomendando, apenas, cópias de trechos do livro de leitura, alternando com pequenos ditados. Os alunos também deveriam descrever objetos “que já tenham servido na linguagem oral” (SANTA CATHARINA, 1914c, p. 35), revelando um ensino de escrita em conformidade com os pressupostos de Primeiras lições de

coisas, em que os objetos serviam para o ensino da linguagem escrita. Já para o terceiro ano, além das recomendações de cópias de assuntos do livro de leitura, os alunos deveriam reproduzir temas tratados nas aulas de história do Brasil e de educação cívica e moral, além de “redacções de bilhetes, de cartas epistolares e commerciaes. NOTA – O

professor fará no quadro negro a correcção do dictado e, então, empiricamente, dará as regras das correcções ortográficas que fizer, do emprego dos signaes de pontuação e dos acentos” (SANTA

CATHARINA, 1914c, p. 48, grifos do autor).

Em relação ao quarto ano, figuravam, além das reproduções propostas ao terceiro ano, a realização de ditados, a descrição das comemorações e dos passeios escolares, mais a “variada redacção de cartas, recibos, officios, requerimentos etc. Composição sobre um assumpto dado na ocasião pelo professor” (SANTA CATHARINA, 1914c, p. 60). Ao final, o documento inseriu uma nota, enunciando que o professor deveria seguir as mesmas orientações propostas ao terceiro ano quanto à correção dos ditados, observando que:

Para corrigir as composições78, tome tres cadernos – um de um alumno atrazado, outro de um medio e outro de um adeantado – e passando no quadro negro as sentenças palavras ou phrases a corrigir, empiricamente o professor chamará a attenção da classe para os erros de ortografia, de pontuação, de accentos, de concordância e redacção. (SANTA CATHARINA, 1914c, p. 60, grifos do autor).

Ao concluir o ensino da escrita para o quarto ano, o documento orientava o professor a corrigir as produções escritas dos alunos na sala, com a participação deles, o que seria mais útil. E, exatamente ao que vimos quanto ao ensino de leitura e da linguagem oral, o programa de ensino também apresentou uma didática de ensino da língua com foco nas regras, ora visando à fala correta, ora à escrita correta. Concluídas as orientações quanto ao ensino de escrita do programa de ensino, voltamo- nos à obra Trecho de um relatório.

O ensino da linguagem escrita, segundo Trecho de um relatório, deveria subordinar-se ao ensino da linguagem oral, “sendo que os processos usados naquella devem ser correlatos aos processos usados nesta, mais ou menos” (GUIMARÃES, 1918c, p. 14). Efetivamente, o que Orestes Guimarães enunciou é que o ensino da linguagem escrita consistia na continuidade do ensino da linguagem oral e, esta, retomando o que já vimos, consistia na sequência do ensino de leitura.

Para os primeiros anos, argumentava que o método a ser seguido deveria ser o analítico, em virtude de os passos serem os mesmos aos propostos para o ensino de leitura nessas classes, isto é, partir das sentenças para as sílabas, segundo os pressupostos pelo programa de ensino. Por esse motivo, Orestes Guimarães fez uma ressalva, antecipando que o êxito no ensino da linguagem escrita estaria estreitamente vinculado ao ensino eficaz da linguagem oral. Assim, os professores deveriam, nos primeiros anos, seguirem o programa de ensino (SANTA CATHARINA, 1914c), o qual ele reenunciou, resumidamente, sendo: “1º – copia de sentenças do livro de leitura; 2º – fragmentação da sentença em palavras; 3º – fragmentação das palavras em syllabas; 4º – fragmentação das syllabas em phonemas” (GUIMARÃES, 1918c, p. 15). Com efeito, do primeiro ao quarto item constam as mesmas orientações

78 Embora o programa de ensino refira-se à produção escrita como composição, expressão

herdada da Retórica, veremos que Trecho de um relatório não utiliza essa nomenclatura no tópico relacionado à linguagem escrita.

do programa de ensino, como visto no início desta seção. Contrariando o ensino da escrita conforme Primeiras lições de coisas79, que pressupunha

um ensino que partisse da letra para a palavra e desta para a sentença,

Trecho de um relatório coadunava-se ao ensino proposto por White (1911), no qual o aluno começava redigindo palavras e sentenças curtas, além de pequenas composições, como cartas e bilhetes.

Trecho de um relatório, igualmente ao proposto pelo programa de ensino, orientava os professores a ministrarem “[...] ‘copia de pequenos

trechos, ora do livro, ora dos escriptos pelo professor no quadro negro’.” (GUIMARÃES, 1918c, p. 15, grifos do autor). No trecho, o uso do itálico reflete um já dito extraído do programa de ensino que Orestes Guimarães retomou. Segundo o autor, os alunos só copiariam trechos do livro de leitura que já tivessem sido “anteriormente traduzidos pelos alumnos, pelo que, conhecendo a significação dos termos e das sentenças, conscienciosamente farão essas copias e conscienciosamente as representarão graficamente [...]” (GUIMARÃES, 1918c, p. 15, nosso grifo). Observamos que, além de ter subsidiado o ensino de leitura, o ensino baseado na Abordagem da Gramática e da Tradução (AGT) também aparecia no ensino da escrita, uma vez que os alunos só copiariam trechos já traduzidos do livro de leitura.

Orestes Guimarães baseou-se em White (1911, p. 205-206, grifos do autor), que concebia o ensino vocabular como “o primeiro passo no exercicio de leitura nestes gráos [segundo e terceiros anos] é o ensino de

palavras, e quanto mais completamente isto se faz mais claramente os alumnos apprehendem e exprimem o pensamento”, isto é, o ensino da escrita também se vinculava ao treino do léxico, com foco na tradução e na sistematização do ensino da linguagem escrita. Por conseguinte, revelava a anuência de um ensino vinculado ao ensino da língua como a expressão do pensamento.

Mais adiante, Orestes Guimarães, retomando o diálogo com o programa de ensino, esclareceu que no momento em que o aluno realizasse cópias de bilhetes e de cartas, conforme previsto para os terceiros e quartos anos, o professor também deveria ter o cuidado para que o aluno não realizasse cópias de palavras desconhecidas, ao que Orestes Guimarães simbolizou como o mesmo que copiar o grego (GUIMARÃES, 1918c, p. 15). Pelo mesmo motivo, como o programa de ensino também previa a realização de ditados, Trecho de um relatório apresentou um “Modelo de dictado de palavras extrahidas do livro de

79 Relembramos que o ensino da escrita em Primeiras lições de coisas divergia do ensino de

leitura” (GUIMARÃES, 1918c, p. 16), sendo: “Bolo – kuchen; bola –

ball; pato – ente; patão – grosse ente; patinho – entchen; leite – milch;

leiteiro – milchmann” (GUIMARÃES, 1918c, p. 16, grifos do autor). Além desse, há outro exemplo na obra, de expressões traduzidas do livro de leitura. Na sequência, Orestes Guimarães concedeu um modelo de texto que poderia ser ditado, baseado nos termos traduzidos dos dois exemplos. Permanece, igualmente ao que analisamos nas seções anteriores, um ensino lexical de linguagem, com vistas à assimilação do aluno teuto-brasileiro. Relembremo-nos do que vimos acerca da intenção discursiva de Trecho de um relatório, cujo objetivo era assimilar o teuto- brasileiro. Orestes Guimarães apresentou um modelo de ditado, extraído do livro de leitura, em que os professores deveriam dar a tradução dos termos, denotando um ensino voltado à ampliação vocabular.

Além da tradução, ele recomendava que os professores utilizassem o tempo a seu favor. O controle do tempo – a fim de obter sua plena utilização, também se evidenciava no trecho em que Orestes Guimarães recomendou ao professor que calculasse “o numero de palavras que podem ser dadas, traduzidas e aplicadas em sentenças [...], dentro do horario. [...]. Uma metade do horario para dictado e a outra para a respectiva correcção, conforme empyricamente demonstrei poder ser feito” (GUIMARÃES, 1918c, p. 17). Além da sistematização do ensino pelo horário (FOUCAULT, 2004), Orestes Guimarães orientou seu discurso aos professores das escolas situadas nas comunidades teuto- brasileiras, a fim de obter a adesão ao seu discurso. Quando afirmou que “demonstrei poder ser feito”, o autor utilizou-se de um discurso autoritário, como já tratado na seção 3.4.

Suas recomendações reverberam o ideal do governo, por meio da sistematização do ensino de língua, com divisões reguladas por horários, como já visto, e até mesmo no modo como o professor deveria empregar o tempo em sala de aula. Foucault (2004) explica que essa organização foi absorvida pela escola, cujo objetivo era inculcar nas crianças a rápida execução das tarefas, diminuindo, o quanto possível, a perda de tempo, princípio do Positivismo. O autor nos fala que o controle do horário

[...] devia conjurar o perigo de desperdiçar tempo – erro moral e desonestidade econômica. Já a disciplina organiza uma economia positiva; coloca o princípio de uma utilização teoricamente sempre crescente do tempo: mais exaustão que emprego; importa extrair do tempo sempre mais instantes disponíveis e de cada instante sempre mais forças

úteis. O que significa que se deve procurar intensificar o uso do mínimo instante, como se o tempo, em seu próprio fracionamento, fosse inesgotável; ou como se, pelo menos, por uma organização interna cada vez mais detalhada, se pudesse tender para um ponto ideal em que o máximo de rapidez encontra o máximo de eficiência. (FOUCAULT, 2004, p. 131).

Já no que se refere ao ensino da linguagem escrita para os segundos, terceiros e quartos anos, Trecho de um relatório orientou que o professor seguisse, nessas classes, a última fase do ensino de escrita para o primeiro ano, conforme o programa de ensino (SANTA CATHARINA, 1914c), mudando o que fosse necessário. Ressaltou, ainda, que o ensino da escrita do segundo ao quarto ano seguiria, ora o método sintético, ora o método analítico e sintético, simultaneamente. No entanto, enfatizou que, no primeiro ano, o ensino da escrita deveria seguir o método analítico, igualmente ao que propôs para o ensino de leitura nesse ano.

A partir do segundo ano, o ensino da escrita deveria se dar pelo processo sintético, porque “a fala e a escrita são processos syntheticos” (GUIMARÃES, 1918c, p. 17, grifos do autor), reenunciando a concepção de White (1911), o que demonstrava sua filiação aos preceitos de A arte

de ensinar. O reforço de Orestes Guimarães aos ditados também revelava sua adesão ao discurso de A arte de ensinar, pois para White (1911, p. 240-241), os ditados tinham por objetivo “tornar os alumnos familiares com as fórmas escriptas [...] e habilital-os a empregar essas fórmas devidamente”. Assim, o ensino baseava-se mais na correção escrita e ampliação vocabular do que no sentido. Em síntese, o ensino da escrita compreenderia a cópia de textos modelares, sem a preocupação quanto aos aspectos da constituição desses textos ou à sua compreensão.

Certeau (1998) argumenta que, por meio de modelos e de cópias, a escola visa à constituição do corpo social, como instrumentos de

ortopedia e ortopraxia cultural, num evidente processo de assimilação, no qual assimilar “significa necessariamente ‘tornar-se semelhante’ àquilo que se absorve, e não ‘torná-lo semelhante’ ao que se é, fazê-lo próprio, apropriar-se ou reapropriar-se dele” (CERTEAU, 1998, p. 261). Além do mais, o aluno passa a ser moldado pelo escrito “tornando-se semelhante ao que recebe, enfim, deixa-se imprimir pelo texto e como o texto que lhe é imposto” (CERTEAU, 1998, p. 261, grifo do autor). Como vimos, o amoldamento dos alunos pelo Estado concentrava-se na

instrução primária, por meio do ensino da língua portuguesa, seja por meio dos modelos de fala, de leitura ou de escrita.

Para Orestes Guimarães, a compreensão seria a tradução da palavra, sendo a expressão o resultado da oralização da escrita, a base do subjetivismo individualista. Esse seria o caminho mais rápido e eficaz, segundo Orestes Guimarães, para a assimilação do aluno teuto-brasileiro. Outra questão a ser evidenciada é a brevidade das orientações quanto ao ensino da linguagem escrita em Trecho de um relatório. Como pudemos notar até aqui, Orestes Guimarães privilegiou o ensino de leitura, bem como o ensino da linguagem oral, seguimento do ensino de leitura, como já abordado. Certamente a fala sobrepunha-se à escrita, uma vez que sua aprendizagem se restringia a cópias e ditados, tudo para que o aluno fixasse a forma, a escrita, pois cumpria a ideologia do Estado. Bakhtin (2011d [1951/1953], p. 294) explica que em cada época, em cada círculo social, em cada micromundo em que o homem cresce e vive, “sempre existem enunciados investidos de autoridade que dão o tom, como as obras de arte, ciência, jornalismo político, nas quais as pessoas se baseiam, as quais elas citam, imitam, seguem”. Conforme o autor, sempre há os senhores do pensamento de uma determinada época, que acabam ditando o que será aprendido e como. Efetivamente, é o que observamos nas reenunciações de White (1911) e de Calkins (1886) presentes em

Trecho de um relatório. Eles foram os senhores do pensamento que ajudaram a formar o discurso de Trecho de um relatório.

Ademais, relembramos as ponderações de Rajagopalan (2003), para quem uma disciplina reflete sua própria identidade. Por esse ângulo, compreendemos que a escolha pelas disciplinas que compuseram Trecho

de um relatório refletiam a ideologia que o governo pretendia instituir: a assimilação dos teuto-brasileiros. Para Bakhtin (2011f [1961/1962]),

Viver significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar, etc. Nesse diálogo o homem participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-se totalmente na palavra, e essa palavra entra no tecido dialógico da vida humana, no simpósio universal. (BAKHTIN, 2011f [1961/1962], p. 348, nossos grifos). Concebemos, desse modo, que o diálogo entre as obras representa o simpósio universal citado por Bakhtin. Nele, ocorrem as lutas sociais, marcadas pelas forças centrípetas e centrífugas da língua, quer dizer, as

disputas em torno da (s) língua (s). De um lado, o governo buscando a assimilação; de outro, os teuto-brasileiros, lutando pela manutenção do

Deutschtum. Com base nessa reflexão, procuramos, na seção a seguir, sinalizar as intenções do governo, elaborando a finalidade do ensino de língua evidenciada em Trecho de um relatório.

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