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Capítulo 2: UNIVERSO CONSTRUTIVO EM AMBIENTE COLONIAL

2.3 O ensino de ofícios mecânicos

Sobre os ofícios mecânicos no período colonial, retomaremos alguns estudos clássicos e também pesquisas atuais, para melhor compreensão da estrutura de ensino- aprendizagem das artes manuais durante o período colonial do Brasil.

Segundo Luiz Antônio Cunha, em obra clássica intitulada “O ensino de ofícios artesanais e manufatureiros no Brasil escravocrata”271, na colônia, a aprendizagem dos ofícios

mecânicos era realizada de maneira não sistematizada, ocorrendo o desempenho das atividades técnicas por ajudantes que, ao mesmo tempo, poderiam ser aprendizes, mas não necessariamente: “a aprendizagem sistemática de ofícios não tomou, na Colônia, a forma escolar. Foi só no período de transição para a formação do Estado nacional, durante a estada da família real no Brasil, que veio a ser criada a primeira escola para o ensino de ofícios manufatureiros”272.

Conforme Thais Nívea Fonseca, nas Minas setecentistas, o ensino de ofícios para órfãos esteve combinado ao aprendizado das primeiras letras: “Recaía sobre os tutores a responsabilidade pelo encaminhamento da educação dos órfãos, fosse a instrução elementar,

270 Nesse caso, não apenas as obras que compõe o centro urbano, mas também as ruínas de regiões que foram

constituídas em sítios arqueológicos.

271 CUNHA, Luis Antônio da. O ensino de ofícios artesanais e manufatureiros no Brasil escravocrata. São Paulo:

Editora UNESP; Brasília, DF: FLACSO, 2ª edição, 2005, pp. 72-73.

fosse a formação profissional”273. Tanto os filhos mestiços de homens abastados quanto aqueles

de origem mais modesta, tais como os filhos de oficiais mecânicos, aprendiam algum ofício manual, atrelado por vezes à oportunidade de frequentar uma escola de ler, escrever e contar. Para a autora, aos primeiros, cuja ilegitimidade se configurava como forte barreira para o direito efetivo às heranças: “o aprendizado dos ofícios mecânicos aparecia, então, como possibilidade concreta de ocupação e de sustento material”274. Já para os filhos dos oficiais mecânicos, a

possibilidade de aprender a ler e escrever conferia uma pequena abertura em seu lugar social, uma remota oportunidade de ascensão na sociedade colonial. Todavia, a autora destacou que “para os pobres, a educação voltava-se prioritariamente para o aprendizado de ofícios mecânicos, embora eventualmente também fossem levados a ler, escrever e contar”275.

Conforme Fonseca, a educação aos órfãos pobres na Capitania de Minas Gerais: “significava, num momento posterior à criação, a preparação para o trabalho e a aquisição de competências que pudessem garantir a sobrevivência futura, acompanhadas, se possível, de valores morais que impedissem os descaminhos dessas crianças e jovens”276. Essa “educação para o trabalho”, como chama Fonseca, realizava-se através do envio dos órfãos e dos expostos aos mestres e mestras de ofício, cujos objetivos principais seriam a garantia do seu próprio sustento futuro e prevenção para que não se desviassem do bom caminho277.

Nas Vilas das Minas Gerais, conforme análise empreendida por José Newton Meneses, “a educação pelo trabalho” sempre foi utilizada como ferramenta ordenadora por excelência das camadas sociais médias e baixas278. Este ensino não foi regulamentado pelas corporações de ofícios, como em Portugal, onde tanto a aprendizagem quanto o exercício cotidiano dos ofícios mecânicos estavam sob o controle das agremiações dos mesteres e fiscalização da Câmara. De tal modo que, como já mencionado, o exame para conferir a carta necessária ao exercício legal do ofício se dava sob o crivo do juiz de ofício da corporação correspondente ao mester pretendido pelo candidato: “para ter oficina própria, o oficial necessita requerer aos Juízes do seu ofício o exame, apresentando neste ato, ‘certidões juradas e reconhecidas’ pelo seu mestre, dando conta do tempo da aprendizagem e do exercício como

273 FONSECA, Thais Nivea de Lima. Letras, ofícios e bons costumes. Civilidade, ordem e sociabilidades na

América Portuguesa. São Paulo: Autêntica, 2009, p. 103.

274 Idem, p. 103. 275 Idem, p. 109. 276 Idem, p. 116. 277 Idem, p. 117.

278 MENESES, José Newton Coelho. Artes Fabris e Serviços Banais: ofícios mecânicos e as Câmaras no final do

Antigo Regime. Minas Gerais e Lisboa (1750-1808). Tese (Doutorado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói (RJ), 2003, p. 219.

oficial”279. Conforme José Newton Meneses, a educação voltada aos oficiais mecânicos

portugueses sofreu transformações através das reformas pombalinas do ensino e da universidade, implementadas a partir de 1772, buscando “moldar os indivíduos nos padrões de uma racionalidade técnico-científica que, ao mesmo tempo, o inserisse no mundo como ser civil e adequasse seus conhecimentos às condições da realidade portuguesa”280. Meneses aludiu à

possibilidade de que o costume de ensinar com amor e castigar com caridade teve lastro no cotidiano das Minas Gerais colonial, que obedeceu a padrões da tradição portuguesa, cujo ensino ministrado ao povo deveria consistir “no quanto baste de saber para efetuar as operações básicas de seu viver”281.

Quanto ao acesso de oficiais mecânicos aos saberes difundidos no espaço colonial, chama-nos a atenção o contato com os engenheiros militares, como ilustrou Luis Cunha acerca da reorganização de uma Companhia de Artífices no Arsenal Real do Exército, no Rio de Janeiro, ordenada através de decreto real, no ano de 1810. A Companhia compunha-se, em sua maioria, por soldados pontoneiros e estava anexa ao Regimento de Artilharia da Corte:

A Companhia de Artífices reformada, deveria ser comandada por um capitão, secundado por três tenentes, dois sargentos, um furriel e quatro cabos. O efetivo seria de sessenta artífices, de diversas especialidades, principalmente ferreiros e serralheiros. Além de soldo, fardamento e quartel, os artífices recebiam ‘jornal proporcionado à sua habilidade’, critério também utilizado para a sua hierarquização militar: os mestres de oficina teriam a graduação de sargentos e os contramestres, de cabos de esquadra. No Arsenal do Exército do Rio de Janeiro funcionava, em 1820, uma ‘aula de desenho’ para os aprendizes que praticavam nas oficinas, integrando, provavelmente, a Companhia de Artífices. Naquele ano, uma decisão do encarregado de assuntos militares da corte abria essa aula a artífices e aprendizes de fora do arsenal, atendendo ‘a quanto é necessária esta Arte a todos os trabalhos mecânicos’. A notícia dessa decisão foi mandada publicar na Gazeta do Rio

de Janeiro, de modo a divulga-la aos interessados potenciais.282

Na Bahia, em 1818, devido à grande importância econômica da atividade de construção naval, uma carta régia estabelecia a instalação de uma cadeira de desenho voltada ao aperfeiçoamento do trabalho de projetistas: “para as artes em geral, especialmente para a

279 MENESES, José Newton. Ensinar com amor uma geometria prática, despida de toda a teoria da ciência e

castigar com caridade: a aprendizagem do artesão no mundo português, no final do século XVIII. Varia História, Belo Horizonte, vol. 23, nº 37, pp.167-183, jna./jum., 2007, p. 171.

280 Idem, p. 169.

281 MENESES, op. cit., 2003, p. 222.

arquitetura naval e escultura, que por falta de conhecimento de desenho não tem podido chegar à perfeição”283.

Relacionando tais informações ao universo formado pelos arrematantes de obras públicas, atuantes durante os séculos XVIII e primeira década do XIX, questionei-me acerca da ligação entre estes empreiteiros e os conhecimentos ensinados nas escolas militares portuguesas e do Brasil. Pois que, durante a pesquisa de mestrado284, deparei-me com constantes referências às patentes militares dos arrematantes investigados. Os postos encontrados foram: Sargento- mor, Sargento, Capitão, Alferes, Tenente e Ajudante285.

No Brasil, as Aulas de Arquitetura Militar foram criadas nos seguintes centros urbanos: Salvador (1696), Rio de Janeiro (1698-1699), São Luís do Maranhão (1699), Recife (1701) e Belém (1758)286. Para Beatriz Bueno, tais aulas foram um dos principais transmissores da cultura arquitetônica e erudita na colônia287. Em Portugal esteve voltada aos jovens fidalgos – Escola Particular de Moços Fidalgos do Paço da Ribeira (1562/1568/1573) – mas, ao longo do século XVII, sofreu modificações após a Restauração e se viu aberta a variados extratos sociais, pela necessidade de atender à política de nacionalização do exército luso288. Neste contexto, teriam os oficiais mecânicos realizado atividades dantes exclusivas apenas aos arquitetos militares? Teriam obtido acesso às aulas destinadas à formação dos engenheiros?

Nas Academias Militares, em Lisboa, as aulas poderiam ser ministradas pelo engenheiro-mor do reino, engenheiro-diretor de uma província ou engenheiro-chefe de praça, acompanhados por um assistente. Destinavam-se a poucos partidistas289, também admitiam outros alunos civis que, no entanto, não recebiam remuneração para o estudo. Questionamo- nos se, nessa abertura, os oficiais mecânicos, tanto no reino quanto nas demais porções coloniais lusas, aprenderam as matérias ensinadas nas aulas militares, que envolviam lições de teoria:

283 Carta Régia de 8 de agosto de 1818. Apud CUNHA, op. cit., 2005, p. 74.

284 EUGÊNIO, Danielle de F. Arrematantes de obras públicas em Vila do Carmo/Mariana (1745-1808).

Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana (MG), 2013.

285 As informações levantadas não foram suficientes para identificarmos a quais Tropas e Regimentos pertenciam

esses oficiais, salvo o Alferes José Pereira Arouca, renomado e reconhecido pela historiografia sobre as artes no período colonial. Arouca fora citado como Soldado de Cavalos, quando de sua prisão no ano de 1768, já em abril de 1780 foi nomeado como Porta-estandarte da 2ª Companhia de 1º Regimento Auxiliar de Mariana e em 23 de Maio de 1781 recebeu a patente de Alferes de Ordenança de Pé do Distrito do Morro de Santo Antônio, de Mariana. MARTINS, Judith. Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais. 2 v. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/ Publicações do IPHAN, 1974. Nome pesquisado: “Arouca, José Pereira”.

286 BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Desenho e desígnio: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822). São

Paulo: Edusp, 2011, p. 138.

287 Idem, pp. 138-139. 288 Idem., p. 131

289 Como explicou Beatriz Bueno: “jovens membros da estrutura do exército com especial talento para a profissão,

leitura crítica, síntese do conteúdo, cópia dos desenhos e exercícios dos tratados fundamentais sobre Desenho, Geometria Prática e Arquitetura militar, civil e religiosa290.