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S ENSO DE PROPORÇÃO NO SISTEMA DE A NAXIMANDRO E O COSMO SEGUNDO OS PITAGÓRICOS : ADVERTÊNCIAS

Se há alguma convicção inabalável nas teses sobre o espírito da filosofia pré- socrática, esta deverá repousar sobre a certeza de que não conhecemos a obra completa de nenhum dos primeiros físicos, configurando o chamado azar histórico, segundo Gerd Bornheim (2010, p. 15). No entanto, o problema das fontes toma ainda uma dimensão maior quando o assunto trata do pitagorismo, tema sujeito a contradições na filosofia grega (GUTHRIE, 1984, v. 1, p. 147). Por isso, as próximas linhas com prudência, atenderão o que foi dito por Kahn (1974, p. 163) apud Cornelli (2010, p. 14) no sentido de não enveredar, desnecessariamente, em mais uma nova tese sobre o pitagorismo.

Não que as teses apresentadas sejam suficientes o bastante, a ponto de silenciar a presente investigação no momento em que ela contempla uma das temáticas mais profícuas entre o pitagorismo, a saber: a cosmologia. Todavia, a inserção do pensamento cosmológico pitagórico neste momento da pesquisa visa rever qual era a dimensão relativa entre o núcleo simétrico do sistema anaximandrino com o intrincado universo geométrico-pitagórico, uma vez que – “[...] este interesse pelo número e a geometria permaneceu sempre vivo na tradição jônia” (HEIDEL, 1940 apud GUTHRIE, 1984, v. 1, p. 213) 58.

Por isso, esta investigação, ao pretender correlacionar o senso de proporção do sistema de Anaximandro e o cosmos segundo os Pitagóricos, reconhece que o terreno pitagórico não é, talvez, um solo seguro para conclusões, haja vista os escolhos presentes nas veredas obscuras do pitagorismo (GUTHRIE, 1984, v. 1, p. 148). A parcimônia das páginas seguintes justifica-se, uma vez que a fecundidade da questão exigiria, por si só, um tratamento específico. Cabe, portanto, delimitar a questão por onde se pretende enveredar a presente abordagem.

A partir da distinção aristotélica que põe de um lado os Pitagóricos e de outro, os Fisiólogos (Metafísica, 989b 29 DK), abriram-se precedentes para pensar em duas correntes da filosofia em seu florescer: a jônica e a itálica. Contudo, embora Aristóteles fosse privilegiado pela proximidade secular com o pitagorismo, suas inferências devem

ser analisadas com devido cuidado (KIRK; RAVEN; SCHOFIELD, 1994, p. XV). Na mesma esteira, nota-se:

Aristóteles nos oferece, em suas obras preservadas, um grande número de esclarecimentos e críticas sobre a filosofia pitagórica, embora nem sempre sejam fáceis de entender. [...] Aristóteles é o autor mais antigo que oferece informações detalhadas sobre os pitagóricos, e se tentarmos recuperar suas doutrinas até a época de Platão, será necessário prestar a maior atenção ao que disse (GUTHRIE, v. 1, p. 155) 59.

Com efeito, o legado dos primeiros físicos inscritos na tradição doxográfica se deve, indubitavelmente, a Aristóteles, no entanto, seguem as admoestações:

Por conseguinte, em sentido real, a tradição doxográfica é essencialmente aristotélica. Agora, com o avanço dos estudos críticos do antigo pensamento grego, tornou-se cada vez mais evidente que Aristóteles, com todas as suas vantagens e excelências, não foi um guia seguro para a interpretação de textos. Grande como sistematizador e sagaz como crítico, careceu do verdadeiro senso histórico (HEIDEL, 2014, p. 68).

Essas advertências, aqui consideradas, assinalam a intenção de propor uma abordagem cuidadosa, visto a citação aristotélica abarcar as duas remotas escolas do pensamento grego que floresceram na Jônia e no sul da Itália. Conforme apontado por Cornelli (2010, p.51), sobre “o testemunho único de Aristóteles e a incerta tradição acadêmica”, Aristóteles foi, inegavelmente, um testemunho necessário na historiografia dos pré-socráticos. Portanto, nesse complexo universo historiográfico da filosofia antiga, “a historiografia da filosofia pré-socrática após Cherniss, foi resumida como um processo de desaristotelização da escrita sobre as origens da filosofia grega” (LAKS, 2007, p. 230 apud CORNELLI, 2010, p. 55 grifo nosso).

Essas considerações, aqui expostas, justificam-se pelo fato de que o excerto aristotélico na Metafísica, 989b 29 DK, abarca estas duas categorias de investigação, a

59Orig.: Aristóteles nos ofrece, en sus obras conservadas, una gran cantidad de aclaraciones y críticas

sobre la filosofía pitagórica, aunque no son siempre fáciles de comprender. […] Aristóteles es el autor más antiguo que ofrece una detallada información sobre los pitagóricos y, si intentamos recuperar sus doctrinas hasta la época de Platon, será necesario prestar la mayor atención a lo que dice.

saber: os Fisiólogos e os Pitagóricos e, sobretudo, por Anaximandro (que está entre os físicos) estar indireta60 e diretamente61 inscrito em alguns tratados de Aristóteles.

Com efeito, haja vista as multifacetadas características do pitagorismo, conforme notado por Cornelli (2010, p. 240), será prudente delimitar como ponto de partida, a fim de compreender o senso de proporção anaximandrino, quem são estes Pitagóricos. Por isso:

A definição da categoria pitagorismo [ou Pitagóricos] não pode senão começar de um pergunta que somente na primeira impressão pode parecer simples, mas que, em verdade, se demonstrará de difícil solução: quem pode ser definido como pitagórico no mundo antigo? Muitos autores, a partir de Aristóteles, tentaram responder a essa pergunta procurando um critério temático que permitisse identificar certa unidade doutrinária. É certamente este o caso, há pouco citado, do privilégio concedido por Zeller exatamente à lectio aristotélica sobre os pitagóricos: privilégio este que se tornou, ao longo da história da crítica moderna, um consenso quase indiscutível: pitagórico é alguém que fala de números (CORNELLI, 2010, p. 76).

A incursão historiográfica empreendida por Cornelli não permitiu, entretanto, simplificar a questão, reduzindo-a apenas a um critério doutrinário. O autor admite que, a partir dos esforços hermenêuticos de Zhmud, o critério doutrinário tornou-se um petitio princiipi, ou seja, “aquilo que necessita ele próprio de uma prova é tomado como uma premissa inicial” (ZHMUD, 1989, p. 272 apud CORNELLI, 2010, p. 76-77).

Ambas as definições, se por um critério doutrinário ou se por critérios geográficos (Itália do sul), conforme apontou Aristóteles (Metafísica, A 6, 987a 10, 29- 31 e De Caelo, 293a 20), atestam as disparidades sobre este tema fértil, conforme notado desde o início desta discussão. Diante disso, propomos um sincretismo desses pontos de vista e, um consenso com Guthrie (1984, v. 1, p. 149-167) a cerca do pitagorismo. Para Guthrie um pitagórico denotava, em seus costumes, uma gama de diferenças com relação aos jônios, sobretudo, pela concepção de uma alma imortal em consonância com o universo matemático. Trata-se, pois, não apenas de uma filosofia

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Alguns exemplos: Aristóteles, Física Γ 4, 203a 16, 203b 7, De Caelo Γ 5, 303b 10, Β 13, 295a 7

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Alguns exemplos: Aristóteles, De Caelo 123 B 13, 295 b 10, na Física A 4, 187 a 20, Γ4, 203 b. 7 e A 4, 187 a 12.

com nuanças mágicas, mas de uma escola filosófica cujo fundador se confundia com um mestre de ciência e um mestre religioso.

SENSO DE PROPORÇÃO NO SISTEMA DE ANAXIMANDRO E O COSMO SEGUNDO OS