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ENTRE A LINGUÍSTICA E A CULTURA POR UMA PERSPECTIVA ARQUEOLÓGICA

CAPÍTULO 3 – AS VERDADES SUSPENSAS

3.2 ENTRE A LINGUÍSTICA E A CULTURA POR UMA PERSPECTIVA ARQUEOLÓGICA

A partir das inquietações propiciadas pela leitura das atas dos congressos de Milão e Paris, voltei-me para os autores aqui denominados de clássicos, buscando determinadas raízes que têm sustentado os estudos nessas duas últimas décadas.

Dentre eles, as reflexões de Ted Supalla e Patrícia Clark no livro Arqueologia da Língua de Sinais6, – Entendendo as raízes históricas da Língua de Sinais Americana

6 Os livros clássicos mencionados daqui em diante: Sign Language Archaelogy de Ted Supalla e Patricia Clark; Everyone Here Spoke Sign Language de Nora Ellen Groce; Deaf in America – Voices from a culture de Carol Padden e Tom Humphries; e Understanding Deaf Culture – In search of Deafhood de Paddy Ladd não tiveram ainda versões traduzidas oficialmente para o Português brasileiro. Em função disso, vale esclarecer que as traduções dos títulos e citações em sua integridade foram traduzidas por mim de modo livre, não configurando em traduções oficiais, porém com os devidos cuidados processuais inerentes ao ofício de tradução e revisão. Em tempo, o livro de Paddy Ladd conta atualmente com uma versão traduzida para o Português lusitano, porém as discussões aqui elencadas se ancoram na versão em Inglês, salvo pela retomada do termo “surdidade” da edição portuguesa.

(doravante ASL), publicado em 2015 pela Universidade Gallaudet, ainda sem tradução para o Português brasileiro.

Embora a publicação seja recente, Supalla e Clark são renomados pesquisadores de longa data e realizaram um estudo seminal arqueológico da ASL, a partir de registros escritos e filmados do acervo histórico da Universidade Gallaudet com surdos e ouvintes sinalizadores de oito gerações, datando de 1817 até os dias atuais.

Os autores elegem a possibilidade de filmagem como uma forma de “reprodução da voz surda”. Para eles, a possibilidade de registro pela língua escrita não somente não poderia ser natural para os surdos em termos de identidade como ocasionaria perdas significativas que dificultariam posteriores análises e estudos das transformações e evoluções da língua de sinais.

Assim, os vídeos produzidos pela Associação Nacional de Surdos (NAD) fornecem inúmeras contribuições que permitem sucessivas análises tanto da parte estrutural quanto nas narrativas surdas, que agora passam a ser “lidas” diretamente na língua que lhes é natural.

Ora, mas por que discutir as questões de registro e evolução da Língua de Sinais Americana? Afinal que implicações isso teria para as nossas discussões acerca da Libras? É preciso considerar que a Língua de Sinais Francesa constitui um tronco linguístico para a Libras, tendo influenciado drasticamente a Língua Americana de Sinais, que por sua vez também esteve em contato eventual, porém com menor influência, com a Língua de Sinais Brasileira.

Historicamente, a escolarização dos surdos no Brasil é datada durante o reinado de Dom Pedro II que, após conhecer o método combinado, criado por Abade L’Epée, empregado nas escolas da França, convida para o Brasil o professor Eduard Huet, surdo e discípulo de L’Epee, para iniciar o trabalho com surdos em 1857 no Rio de Janeiro, o que culmina com a fundação do Imperial Instituto de Surdos-Mudos, atualmente Instituto Nacional de Educação de Surdos (doravante Ines).

Nos Estados Unidos, algo semelhante acontece, porém, é Edward M. Gallaudet que, a partir dos rumores sobre surdos aprendendo a ler e escrever na Europa, decide ir

ao continente e posteriormente convida o professor Laurent Clerc para iniciar os trabalhos com surdos americanos fundando a escola de surdos de Hartford.

Retomando a obra de Ted e Supalla, ao contrário do que o título possa nos conduzir a crer, o livro não foca estritamente nas estruturas linguísticas da ASL, mas remonta seu processo de transformação por influências de outras línguas, políticas nacionais e transformações sociolinguísticas comuns a qualquer língua, perpassando ainda pelos aspectos históricos dos surdos e ouvintes professores nos Estados Unidos.

É este ponto que nos chama a atenção. Os discursos de Gallaudet e Allen Fay no Congresso de Paris em defesa do método combinado e no fortalecimento da língua de sinais nas escolas de surdos anteriormente mencionados confluem com os registros de Supalla e Clark (2015, p. 57), que narram que Dom Pedro II esteve também nos Estados Unidos em 1876 para conhecer a escola de Hartford, sendo recepcionado pelo próprio Allen Fay, pois Gallaudet estava em viagem.

Os autores pontuam que a visita do imperador integra um dos vídeos do acervo da Associação Nacional de Surdos (NAD) em que o soberano se mostra gentil e preocupado em trazer para o Brasil melhorias para a educação de surdos. Esse ponto de convergência entre Estados Unidos, Brasil e França trouxe reflexos para além do florescimento das línguas de sinais nestes países.

No Brasil, a mistura entre ASL e LSF deu forma a novas configurações sinalizadas que se transformaram com o tempo em uma forma independente, a Libras ou Língua de Sinais Brasileira (LSB). Além disso, os métodos combinados e a prevalência do uso da Libras dentro do Ines como forma de instrução, permitiu aos surdos experimentar outras possibilidades de aprendizagem e expressão dissociadas da língua oral.

Outro fator extremamente relevante relatado nessa obra é o lugar da língua de sinais. Embora ambos, Laurent Clerc e Eduard Huet, fossem surdos e professores que formaram outros surdos que sucessivamente atuariam como professores, a língua de sinais florescia sem fronteiras entre surdos e ouvintes. Tanto que Gallaudet e Fay figuram nos vídeos da NAD como mestres sinalizadores situados na segunda geração de usuários da ASL.

Deste modo, podemos presumir que o discurso resistente que situa a língua de sinais como posse da comunidade surda ainda não tinha força dentro dessa comunidade nesse período. Os surdos que eram professores ocupavam essas posições pela sua formação e por representarem um modelo de referência para os seus pares, como um monumento para que outros surdos vislumbrassem neles possibilidades ilimitadas de aprendizagem e ao mesmo tempo sendo agentes transformadores da própria língua, colocando-a em movimento, reforçando seu uso em situações diversas e (re) criando formas de sinalizar.