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Tentar traçar um histórico da comunidade e da cultura SM, como afirmou Leite Jr. (2000), é uma tarefa árdua, senão infrutífera, dado o pequeno número de trabalhos sobre este tema no Brasil e o limitado acervo de fontes sobre o movimento BDSM no mundo. Mais do que isso, Leite Jr. (2000, p. 14) argumenta que “este universo não tem um limite fixo de origem, muito menos possui um caráter que permita a formatação de uma história linear”, levando-nos a focar nos relatos das experiências de grupos distintos ao longo do tempo como partes de uma narrativa histórica do movimento SM. Pois, ao abandonar a noção de história como um ordenado de fatos baseados em fontes “legítimas” numa temporalidade sequencial ou dialética e produtora de “verdades” históricas, Foucault insistiu nas ideias de que “tudo é histórico” – e por isso tudo que é humano deve estar no campo de visão e expressão do historiador –, de que os objetos e sujeitos históricos são resultados de construções discursivas, e que, por serem discursivas, as narrativas históricas seriam também descontínuas, logo passíveis de serem desconstruídas e questionadas em seu status de verdade (RAGO, 1995). Assim, Foucault

privilegia a abordagem de objetos (ou temas como a prisão, a loucura, a sexualidade) e sujeitos pertencentes às “minorias”, aos grupos marginalizados, como capazes de serem historicizados, pensados como objetos da história (RAGO, 1995). Por isso que, nesta seção, pretendo situar a narrativa do BDSM contemporâneo e da sua comunidade, de modo a discorrer sobre os seus espaços ocupados que são, também, espaços organizacionais. Dessa forma, pretendo abordar as influências históricas da comunidade BDSM, esclarecer como é entendida por comunidade nesta pesquisa e ancorar a discussão nos espaços organizacionais que estes sujeitos ocupam.

Começando pelo argumento levantado por Foucault (1978) que situa o nascimento da subcultura sadomasoquista na Europa ao final do século XVIII e início do XIX, ao afirmar que

O sadismo não é um nome dado enfim a uma prática tão antiga quanto Eros, é um fato cultural maciço que surgiu exatamente ao final do século XVIII e que constitui uma das maiores conversões da imaginação ocidental: o desatino tornou-se delírio do coração, loucura do desejo, diálogo insensato do amor e da morte na presunção ilimitada do apetite (FOUCAULT, 1978, p. 395).

Para Leite Jr. (2000, p. 14), paralelo ao processo de medicalização do desejo ocorrido entre os séculos XVIII e XIX, “existiu toda uma parcela de pessoas que continuaram com suas práticas pouco ortodoxas na busca da satisfação sensual, não se importando muito com concepções cada vez mais criativas sobre as ‘aberrações sexuais’” e apenas “guardando sigilo para não serem ‘tratadas’ à força”. Nesta época na Europa, “enquanto Freud e seus discípulos discutiam a universalidade das pulsões sádicas e masoquistas, homens e mulheres praticavam rituais de dor e prazer em plena concordância entre si, não necessitando para isso de justificativas psicológicas ou químicas (e nem sociais)” (LEITE JR., 2000, p. 14-15). Enquanto Foucault (1978) situa o surgimento do SM como fato cultural que tomou forma no discurso psiquiátrico, McClintock (2003) se voltou para a análise das contradições sociais representadas, ao analisar a relação sadomasoquista de um casal heterossexual na Inglaterra vitoriana, imperialista e industrial, em meados do século XIX, e a forma como a sua relação dramatizou as mudanças sociais que estavam ocorrendo na época.

Por outro lado, o levantamento dos jornalistas Brame et al (1993) acerca das práticas sexuais que envolvem a dominação e submissão demarca o surgimento do BDSM contemporâneo (nos termos de Weiss) entre as décadas de 1940 e 1950 nos Estados Unidos, por meio do “Movimento Leather” ou BDSM gay (FACCHINI, 2012). No núcleo deste movimento se encontravam grupos de homens gays, grande número de ex-militares combatentes na Segunda Guerra Mundial, adeptos da estética motociclista – marcada pelo uso abundante do couro – e que compartilhavam dos princípios disciplinares oriundos da carreira

militar, ao frequentar bares específicos a esses grupos na tentativa de recriar um senso de camaradagem, risco e adrenalina experimentada durante a guerra (BRAME et al, 1993). Silva (2015b) faz, em sua leitura de Rubin e Butler, uma caracterização interessante do BDSM gay, ao esclarecer

[...] que leather é uma categoria ampla que congrega homens gays com práticas distintas: sadomasoquistas, praticantes de penetração anal com o punho (fist fuck), fetichistas e homens gays másculos que preferem parceiros masculinos. Leather é, portanto, uma síntese histórica e culturalmente específica na qual certas expressões de desejo entre homens gays foram organizadas e socialmente estruturadas. O desenvolvimento da comunidade leather é, para Rubin, parte de um longo processo histórico, no qual a masculinidade dos homossexuais homens foi reapropriada. Outrora, ser um homossexual másculo ou uma lésbica feminina era visto como um paradoxo, uma impossibilidade frente aos modelos hegemônicos de sexualidade e de gênero. Nessa reapropriação, empreendida pela comunidade, tanto os sujeitos desejantes quanto os desejados são percebidos como masculinos. Dessa forma, um homem poderia ser subjugado, torturado, penetrado e mesmo assim manteria sua masculinidade (SILVA, 2015b, p. 25, grifos meus).

Espalhados por grandes centros urbanos como São Francisco, Los Angeles e Nova Iorque, o leather SM se consolidou como movimento nos Estados Unidos, tendo uma de suas referências a vizinhança de Folsom, em São Francisco, entre 1950 e 1970 (WEISS, 2011). No auge da sua atividade, nos anos 1960, inúmeros bares, clubes e saunas abriram suas portas visando este público, os leathermen, atraindo, assim, publicidade para a vizinhança e a atenção para o local, e resultando, pelos meados dos anos 1970, no reconhecimento da área como um dos proeminentes redutos gays da cidade (WEISS, 2011). Isso, na visão de Weiss (2011), gerou várias tentativas de desqualificação do lugar e dos seus frequentadores por parte do governo local, que passou a descrever a vizinhança como um centro decadente e, assim, justificou as investidas de políticas públicas de urbanização que culminaram no deslocamento tanto dos frequentadores gays quanto dos imigrantes filipinos, artistas, idosos, e outras famílias da classe trabalhadora que habitavam e laboravam no local. De acordo com a autora, inúmeros outros fatores contribuíram para que a era de ouro da cena leather em Folsom chegasse ao fim, em meados dos anos 1980. Além das políticas urbanas de higienização do local, incêndios criminosos e a onda de contaminação da AIDS/HIV contribuíram para que os clubes, bares e saunas encerrassem atividade e a cultura de rua dos gays leathermen, a “velha guarda” SM, chegasse ao fim em Folsom (WEISS, 2011).

No entanto, Weiss (2011) continua, a “queda de Folsom” não significou o fim do BDSM na Baía de São Francisco, pois, além de permanecer como centro simbólico do sexo SM e

“Nova Guarda” (BDSM contemporâneo), para além do centro urbano da cidade, difundindo-se nos subúrbios e áreas residenciais, organizando-se através dos meios virtuais, como listas de e-

mails e salas e de chat online, e adotando pontos de encontro em restaurantes e cafés (os

chamados munches).

O misto de presença virtual e social desses participantes no meio se tornou comum e se difundiu para além das fronteiras estadunidenses. No contexto brasileiro, Facchini (2012) aponta como a internet se tornou fator determinante para a constituição e expansão do meio BDSM, ao possibilitar contatos com as mais variadas fontes de informações sobre as práticas e possibilidades de correspondência entre participantes, cujo primeiro contato com o tema, antes disso, “geralmente se dava por meio de literatura erótica, especialmente livros e contos eróticos publicados em revistas” (FACCHINI, 2012, p. 12). De acordo com a autora, no contexto brasileiro,

A busca de parceiros se valia de anúncios em revistas eróticas ou classificados sobre sexo em jornais e revistas. A partir do final dos anos 1990, vão surgindo opções de comunicação instantânea, como as salas de bate papo e programas como o MSN, que trazem ferramentas mais diversificadas para a conversa em tempo real, com o uso de acessórios como microfone e webcam. Atualmente, há centenas de sites ou blogs brasileiros dedicados ao tema, alguns disponibilizam imagens e muitos deles também disponibilizam contos eróticos, mas a maioria tem por foco a oferta de informações para desmistificar e orientar a prática do BDSM. Certamente, a difusão da internet e de ferramentas de comunicação associadas ao seu crescente uso tem muito a dizer sobre o crescimento do meio BDSM nos últimos anos (FACCHINI, 2012, p. 12, grifo meu).

Ao descrever como sua busca na internet sobre o movimento LGBT brasileiro resultou no encontro dos espaços de reunião dos praticantes do BDSM erótico, Facchini (2012) traça uma ligação, ainda que não intencional, entre a ascensão dos meios de comunicação digitais e a organização da cena BDSM em espaços físicos no Brasil. Entre os seus achados está o Grupo “SoMos”, fundado em 1992 com o objetivo de “propiciar um espaço onde pessoas interessadas em BDSM pudessem encontrar outras que têm as mesmas fantasias, conversar, trocar experiências, tirar dúvidas”; e os clubes Dominna e Valhala, voltados para a reunião da comunidade SM e fetichista de todas as orientações sexuais e de gênero, na capital de São Paulo, ambos em operação no início dos anos 2000 (FACCHINI, 2012, p. 8). O grupo Dominna, em particular – fundado por mulheres lésbicas e praticantes BDSM –, destacou-se como referência nacional, estimulando praticantes a viajarem para conhecer o local e participar dos eventos que lá ocorriam (FACCHINI, 2012). Para a autora, os contatos entre os praticantes pela internet, além de estimularem as viagens para participar das festas temáticas dos clubes, os levaram os mesmos a realizar viagens e encontros em espaços públicos ou semipúblicos, como

no caso dos “munches”, que são as reuniões informais de adeptos do BDSM, com a finalidade de conhecer pessoas novas e/ou acolher novo integrantes e pessoas interessadas em informações (FACCHINI, 2012).

Logo, a utilização da categoria “comunidade” para se referir ao conjunto de praticantes considera o seu nível de organização social, investimento de tempo e recursos para a execução das práticas sexuais, compartilhamento de desejos e, sobretudo, o senso de que o BDSM serve como um lugar de pertencimento, no sentido político das “comunidades imaginadas”, sugerido por Facchini (2012), a partir do conceito cunhado por Benedict Anderson20 para se referir à formação dos Estados nacionais e das nações (FACCHINI, 2012; WEISS, 2011). Weiss (2011) salienta que, muitas vezes, parte ou até todos os amigos e círculos sociais frequentados pelos praticantes também estão envolvidos com o BDSM. Por isso que, para Facchini (2012), pensar a rede de relações formada em torno da prática BDSM como uma comunidade imaginada se torna possível por alguns motivos, entre eles:

1) essa formulação se afasta da oposição real/construído, enfatizando o modo como as comunidades são imaginadas; 2) toma em consideração o fato de que as comunidades políticas sejam possibilitadas por sentimentos de fraternidade ou comunhão; 3) e, por isso, reconhece seu caráter politicamente imaginado e contingente, uma vez que a fraternidade pode, a qualquer momento, e a partir de necessidades igualmente legítimas para os que a delimitam, ser reconstruída em termos de outros eixos de diferenciação (FACCHINI, 2012, p. 22-23).

Por outro lado, cabe refletir a respeito da ideia de produção discursiva das identidades sociais ou, especificamente, das identidades sexuais constituídas em torno de práticas sexuais como o BDSM, quando este é pensado em termos de uma comunidade imaginada.

Tal reflexão passa por Facchini (2012), que, ao problematizar e desnaturalizar a relação estabelecida entre “povo” (as/os LGBTs, as/os praticantes SM) e “lugar” (o gueto), contribui para a reflexão sobre as relações de diferenciação que produzem discursivamente as identidades sexuais dos indivíduos. Desse modo pode-se afirmar, a partir de sua leitura de Butler21, que, “como a identidade é produzida a partir de processos de exclusão, apagamento e cristalização”, da mesma forma “o ‘gueto’, como lugar imaginado, e a ideia de ‘comunidade’ são também produzidos a partir de exclusões, por meio de relações que produzem a diferença, colocando em jogo outros eixos de diferenciação social em contextos específicos” (FACCHINI, 2012, p. 23).

20 ANDERSON, B. Imagined communities: reflections on the origin and spread of nationalism. Verso: Londres,

1991.

21 BUTLER, J. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos del “sexo”. Buenos Aires: Paidos,

Tal eixo de diferenciação e exclusão sexual ocorre, como Rubin (1984) assinalou, através do estabelecimento de um sistema de estigma erótico alimentado por discursos religiosos, psiquiátricos e populares, que funciona da mesma maneira que os sistemas ideológicos de racismo, etnocentrismo e chauvinismo religioso, ao formar hierarquias sexuais norteadas por discursos morais e éticos que distinguem as “sexualidades boas” daquelas sexualidades “perversas”, “depravadas”, “dissidentes”. Para ilustrar esse conjunto de sexualidades tidas idealmente como “aceitáveis”, em detrimento das “abjetas”, Rubin (1984) formulou o chamado “Círculo Encantado da Sexualidade” (fig. 1), um diagrama que representa em forma de círculo a hierarquia sexual, separada entre as sexualidades moralmente aceitáveis (na parte interna: heterossexual, monogâmica, casada, não-comercial, não-pornográfica, etc.) das sexualidades não-aceitáveis ou dissidentes (na parte externa: homossexual, não-casada, comercial, não-monogâmica, pornográfica, sadomasoquista, etc.). Uma vez estabelecido esse sistema de divisão, o debate se desloca para a linha imaginária que separa estas duas dimensões das sexualidades entre as “boas” e as “más”, mas que, em última instância, estabelecem a distinção entre o caos e a ordem sexual, sob os parâmetros daqueles que são privilegiados por essa ordem (RUBIN, 1984). Neste sistema de julgamento sexual, segundo Rubin (1984), cada ato sexual é julgado separadamente e classificado como pertencente a um lado ou a outro da linha, cabendo somente aos atos sexuais do lado “bom” o status de moralmente aceitáveis, portanto, socialmente legítimos.

Figura 1 – Círculo Encantado da Sexualidade

Fonte: Extraído de Rubin (2003, p. 17)

Logo, às sexualidades dissidentes, perversas e abjetas e aos corpos que expressam tais desejos caberia a utilização, a ocupação, de espaços também dissidentes e abjetos nos centros urbanos, conforme argumenta Teixeira (2013), em seu estudo sobre os locais frequentados por homossexuais masculinos nas cidades. Para o autor, seria nos centros urbanos o lugar onde as sexualidades são reproduzidas, onde os “reconhecimentos, controles e subversões são exercidos por e nos corpos sexuados”, onde os “nossos entendimentos sobre sexualidades são desenvolvidos e desempenhados, onde nossos preconceitos seriam praticados e/ou enfrentados, onde nossos desejos seriam permitidos, configurados ou reprimidos”, enfim, onde as identidades sexuais seriam desempenhadas, negociadas e organizadas espacialmente (TEIXEIRA, 2013, p. 30).

O autor parte do entendimento de que seriam simbióticas as relações travadas entre os corpos e as cidades, de forma que, ao mesmo tempo em que os corpos, suas sexualidades e desejos eróticos são estruturados, regulados e produzidos por elas, as cidades também são organizadas e reconfiguradas pela ação desses corpos. Assim, Teixeira (2013) afirma a produção dos espaços abjetos como resultado da atuação reguladora da “matriz heterossexual” butleriana na lógica de organização das cidades, agindo sobre a presença ou ausência desses corpos dissidentes em certas áreas do urbano, numa espécie de “geografia moral” da urbes. Ainda, Teixeira (2013, p. 37) fala de uma

[...] necessidade de produção espacial que permitisse uma repressão sexual mais eficiente, eliminando espaços intermediários, filtrando o potencialmente erótico, enclausurando corpos e promovendo a célula monogâmica heterossexual reprodutiva. Essa repressão não atuaria apenas sobre os corpos ou sobre a arquitetura doméstica, mas também na formação dos espaços urbanos, imprimindo nestes determinada ordem moral. Desta forma, uma cidade ordenada moralmente pelo espaço teria duas configurações: uma seria a cidade formada pelos espaços das sexualidades privilegiadas dos corpos inseridos no alto de uma escala moral; a outra seria formada pelos espaços de abjeção frequentados pelos corpos considerados “imorais”.

Nesse sentido, o autor toma a sua interpretação sobre os estudos de Herbert Marcuse e de Judith Butler, “ambos críticos da heterossexualidade procriativa enquanto norma civilizatória”, para sustentar a ideia de que a matriz excludente que age sobre os corpos possibilitaria a organização da cidade de acordo com a regulação da presença dos mesmos, vindo a produzir espaços abjetos para que esses corpos ocupassem (TEIXEIRA, 2013, p. 35). Tal matriz excludente surge da concepção de Marcuse (196822, citado por TEIXEIRA, 2013, p.

35) sobre o processo “civilizatório” do corpo, no qual este “seria um território físico que deveria ser ordenado funcionalmente e espacialmente com o objetivo de torná-lo ‘civilizado’”, ou passível de habitar a urbes, a partir da sua delimitação física (“genitalização”) e de sua função (“a cópula reprodutiva heterossexual”). Desse modo, todos os desejos eróticos que não fossem contemplados por essa genitalização e pela função procriativa seriam automaticamente considerados como “perversos” (TEIXEIRA, 2013).

Assim, para o autor, “se a matriz butleriana produziria corpos ‘abjetos’ (ou dissidentes) e se a matriz marcusiana definiria desejos ‘perversos’, os corpos considerados abjetos teriam desejos definidos como perversos” (TEIXEIRA, 2013, p. 35). Por outro lado, se “o espaço urbano seria organizado via ‘matriz heterossexual’, haveria então uma matriz excludente que produziria espaços abjetos nos quais os desejos perversos seriam procurados e desempenhados pelos corpos dissidentes” (TEIXEIRA, 2013, p. 35). Esses espaços podem ser identificados por uma gama múltipla de lugares, a ver: áreas de prostituição, cinemas pornôs, parques e banheiros públicos, boates de strip-tease, casas de massagem, saunas gays, bordeis, clubes de swing e clubes BDSM, entre outros (TEIXEIRA, 2013).

Embora as contribuições desses autores acerca das produções discursivas das identidades sexuais e a suas respectivas dinâmicas de espacialização na cidade sejam acatadas e respeitadas na literatura acadêmica, particularmente no que diz respeito aos movimentos de luta pelos direitos sexuais como possibilidade de resistência, ainda assim é necessário tomar

um certo distanciamento a fim de refletir sobre a forma com a qual eles trabalham os conceitos, que talvez não dialoguem completamente com uma base teórica foucaultiana, mesmo que algumas das autoras mencionadas, no caso de Rubin (1984) e Butler (2002, citada por FACCHINI, 2012), tenham sido influenciadas pelos escritos de Foucault. Isso significa perceber, nas separações entre as sexualidades dissidentes e as sexualidades legítimas promovidas por Butler (2002, citada por FACCHINI, 2012) e Rubin (1984), assim como nas dinâmicas de espacialização que dividem e organizam o urbano entre espaços “honestos” e espaços “abjetos”, articuladas por Teixeira (2013), a fixação dos binarismos, todo foco dado aos processos de diferenciação que fixam as identidades sexuais como parte de pares dicotômicos, inseparáveis, trabalhados numa lógica mais próxima ao que Foucault (2011a) chamou de “hipótese repressiva”, do que do dispositivo de poder sobre a sexualidade, surgido entre os séculos XVII e XIX.

Vale lembrar que este dispositivo de sexualidade, segundo Foucault (2011a), é constituído por mecanismos de poder que não somente interrogaram o sexo sobre a verdade dos seus prazeres e a verdade sobre o indivíduo, através do sacramento da confissão, mas que também inscreveram nos corpos a sexualidade revelada, diagnosticada pelo psiquiatra, pelo médico, multiplicando as sexualidades existentes, as “perversões”. Ou seja, a caça às sexualidades periféricas através da produção de um regime de verdade sobre o sexo por parte do discurso científico fez intensificar os efeitos desses mecanismos de poder nos corpos sexuados, multiplicando as existências das sexualidades e as inscrevendo nesses corpos, como no caso da homossexualidade, citado anteriormente. Logo, a separação, a classificação moral e a organização espacial são efeitos-instrumentos deste novo dispositivo de poder em operação sobre a sexualidade, e estão inseridos na dinâmica de poder-resistência foucaultiana que privilegia menos a formação de identidades fixas, de pares dicotômicos, do que o jogo estratégico no qual elas estão inseridas.

Assim, trata-se de fazer um deslocamento dos conceitos trabalhados pelos autores anteriormente, principalmente quando consideramos o que Foucault (2004) disse a respeito das identidades sexuais formadas em tornos de práticas como o BDSM, quando questionado se estas identidades não seriam limitadoras das possibilidades dos indivíduos. Para o autor,

[...] se a identidade é apenas um jogo, apenas um procedimento para favorecer relações, relações sociais e as relações de prazer sexual que criem novas amizades, então ela é útil. Mas se a identidade se torna o problema mais importante da existência sexual, se as pessoas pensam que elas devem “desvendar” sua “identidade própria” e que esta identidade deva tornar-se a lei, o princípio, o código de sua existência, se a questão que se coloca continuamente é: “Isso está de acordo com minha identidade?”,

então eu penso que fizeram um retorno a uma forma de ética muito próxima à da heterossexualidade tradicional. Se devemos nos posicionar em relação à questão da identidade, temos que partir do fato de que somos seres únicos. Mas as relações que devemos estabelecer conosco mesmos não são relações de identidade, elas devem ser antes relações de diferenciação, de criação, de inovação. É muito chato ser sempre o mesmo. Nós não devemos excluir a identidade se é pelo viés da identidade que as pessoas encontram seu prazer, mas não devemos considerar essa identidade como uma

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