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Capítulo 2 Os (Des)caminhos de uma Antropóloga – a relação em campo

2. Entre homens

Minha relação com os homens foi pontuada de interditos. O principal deles o da própria possibilidade de conviver com eles que se delineou para mim desde o início do trabalho de campo. Indo ao encontro que havia marcado com um pastor, me dirigi à primeira pessoa que encontrei para indagar onde poderia encontrá-lo. Era do sexo masculino e, de maneira simpática e calorosa, me informou que estava ocorrendo ali uma assembléia de obreiros da qual o pastor participaria quando chegasse. Convidou-me a entrar e aguardá-lo, o que interpretei como uma atitude de abertura da igreja, afinal tratava-se de uma reunião fechada ao grupo. Fui encaminhada a uma das mesas, onde ele me apresentou à sua esposa, e onde estavam outras mulheres que, depois eu viria a saber, eram todas esposas de pastores e diáconos de diversas igrejas do Distrito Federal. Ali permaneci em torno de quarenta e cinco minutos, sem que nenhuma delas demonstrasse qualquer curiosidade sobre quem eu era ou o que fazia ali. O silêncio foi quebrado uma única vez para me indicarem a chegada da esposa

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do pastor com o qual eu me encontraria. Era uma sinalização de que ele também estava chegando. Foi então que me dei conta de que a reunião mesmo não havia começado, que eles estavam apenas apresentando relatórios das tarefas que lhes cabia. Quando a reunião se iniciou, eu fui convidada pela coordenadora de um dos grupos da igreja local, a esperar em uma ante sala. No intervalo da reunião, o pastor me atenderia. Esta coordenadora ficou comigo neste tempo, me ensinando que ali um homem casado era sempre acompanhado pela esposa, que estava a par e compartilhando das atividades do marido. Foi minha primeira experiência das dificuldades que enfrentaria para me aproximar dos homens. Mesmo os solteiros, porque logo soube pelo pastor que a homens e mulheres é vedada uma relação de proximidade sem a presença do(a) respectivo(a) parceiro(a), como se a presença destes fosse a garantia da inexistência de qualquer intenção de sedução da parte deles. Esta perspectiva se confirmaria durante as entrevistas, nas quais eles geralmente faziam algum comentário relacionado ao fato de suas esposas não estarem presentes, lamentando a ausência, afirmando que entre eles e suas mulheres não havia segredos, além de fazerem questão de introduzir o assunto do “aconselhamento” por sexo.

A convivência com os homens se restringiu a compartilharmos o mesmo espaço durante os cultos e a escola dominical, momentos em que eu podia observá-los relacionando- se com outros homens e com as mulheres. O outro momento foi o da entrevista.

As dificuldades em conseguir homens que aceitassem ser entrevistados foram muito maiores do que as que eu tive com as mulheres. As entrevistas com eles resultaram de relações de confiança que eu estabeleci com algumas mulheres que as intermediaram para mim e que eram também alvo da confiança dos entrevistados. Mesmo assim, apenas um deles se dispôs a conversar comigo no dia combinado. Com os outros, eu tive que remarcar inúmeras vezes, todos demonstrando, de uma maneira ou de outra, ter receio do que eu iria perguntar e, principalmente, como ‘deveriam’ responder. Mais um dos interditos com que tive de lidar: o temor deles de por em risco a imagem da Assembléia de Deus, construída pela observância de seus princípios e que aparece publicamente como uma “comunidade moral”. Neste sentido, não foi simples coincidência o fato de Ismael, que compareceu ao primeiro encontro marcado, tenha sido aquele que se mostrou mais crítico e questionador de certos princípios morais da Assembléia de Deus.

Ficar na dependência de mediadores para conseguir as entrevistas resultou numa certa homogeneização, na medida em que eu era apresentada apenas àqueles que eram considerados “firmes” nos ensinamentos bíblicos e tinham uma formação teológica. Neste sentido, ficou claro o compromisso dos mediadores com a imagem da Assembléia de Deus

como uma denominação na qual os adeptos formam uma comunidade moralmente homogênea em termos dos preceitos bíblicos a que minha presença não poderia ameaçar. A conclusão de que estes entrevistados seriam incorruptíveis viria a se confirmar mais tarde, quando o meu acesso aos homens que estavam sendo preparados para o “batismo nas águas”, portanto iniciando sua trajetória como “crentes”, foi sutilmente barrado pelo pastor responsável por este grupo.

Durante as entrevistas, era clara a preocupação em reforçar a inexistência de qualquer possível intenção de sedução. Neste caso, eles reforçavam, negando, o caráter ambíguo do ‘marido fiel’, que não descarta a conquista como possibilidade sempre presente e que necessita de instrumentos que a neutralizem.31 Na situação das entrevistas, ficava patente a dificuldade de naturalizar as relações homem/mulher e a tendência de transformá-las sempre numa “tensão insolúvel”, para usar a expressão de Almeida (1996).

Como eu sempre iniciava as entrevistas com a trajetória religiosa, embora todos fossem informados do roteiro completo, eles se mostravam fluentes e animados, o que mudava quando o tema passava a ser a vida sexual e afetiva. Diziam não entender o que eu queria que falassem e freqüentemente indagavam sobre o propósito das perguntas demonstrando não perceberem sentido nas mesmas. Neste campo, a dificuldade foi imensa, principalmente quando a questão apontava para a iniciação sexual. Eles só retomavam a segurança quando conseguiam criar algum fio que os levasse a se reportar à bíblia - como o tema da relação sexual fora do casamento-, fonte de confirmação do que diziam e discurso visto como absoluto, no qual não há espaço para questionamentos. Uma surpresa foi a revelação por parte deles de que não se casaram virgens e tiveram sua primeira experiência sexual com uma “mulher da vida” ou uma “garota à toa”. Apenas um deles me disse, muito envergonhado (perguntou se eu ia continuar gravando), que era virgem quando se casou. Ainda no campo sexual foi surpreendente a uniformidade dos discursos: todos justificavam suas experiências no registro da associação sexo/amor/prazer, e acrescentavam que, para eles, “intimidades” não se expõem a não ser para os conselheiros, apesar de mesmo com eles haver dificuldade de abordar o tema.

Ao pontuar os limites do meu contato com os homens assembleianos, me encontro também diante dos limites da entrevista como instrumental de pesquisa e sou obrigada a procurar as brechas do “dever ser”, ou seja, do discurso público e oficial do grupo.

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Sobre a presença deste ethos masculino e sua relação com a construção dualista da família patriarcal brasileira, ver a interpretação que Almeida (1996: 60/8) tece a partir da obra de Antonio Candido.