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Entre a igualdade e a diferença, os feminismos do Sul global

CAPÍTULO 1 CORPORIFICAR O CONHECIMENTO: PERSPECTIVAS

1.2. Entre a igualdade e a diferença, os feminismos do Sul global

Pensando nas relações de poder que perpassam a produção de conhecimento, diversas pensadoras feministas do Sul global, a partir de diferentes lugares e posições subjetivas e políticas, têm nos alertado sobre a necessidade de olharmos criticamente os “feminismos hegemônicos” que privilegiam as mulheres brancas, cisgêneras, heterossexuais, urbanas e de classe alta, repetindo padrões de dominação que excluem, segregam, silenciam e invisibilizam outros grupos de mulheres.

Neste movimento, Darlane Silva Vieira Andrade, docente do Departamento de Estudos de Gênero e Feminismo, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em seu artigo

Para abaixo da linha do Equador: o standpoint e as produções feministas acadêmicas do terceiro mundo (2015), indaga qual é o lugar das latinas, chicanas, não-ocidentais, negras,

camponesas e outras diversidades de mulheres que querem falar.

Elas (nós) produzem(imos) um conhecimento feminista a partir deste lugar “de baixo” e é importante o reconhecimento das diversidades existentes deste lugar, bem como das inúmeras e ricas possibilidades de se falar desta posição. Mas será que conseguimos produzir algo autêntico e próprio, tendo nossas referências as produções de brancas, burguesas americanas e europeias? E nossa voz está sendo ouvida por quem? (ANDRADE, 2015, p.44).

Para o fortalecimento de produções científicas feministas mais democráticas e acessíveis, a autora defende que nós, pesquisadoras que estamos no Sul global, temos “o compromisso de mostrar o quanto o feminismo é plural e como as diferenças devem ser discutidas, consideradas e afirmadas” (ANDRADE, 2015, p.46). Temos, ainda, o compromisso de apresentar novas interpretações sobre sistemas outros de saber-poder, não apenas desconstruindo os paradigmas androcêntricos e etnocêntricos do sistema moderno- colonial-patriarcal, como trazendo novas categorias analíticas a fim de construir um conhecimento enraizado em nossas experiências de resistências e lutas na busca pela autonomia, transformação e emancipação social. Um processo que apresenta possibilidades de novos agenciamentos políticos e de construção de epistemologias situadas e engajadas (TAIT, 2014), que nos permitem compreender o mundo a partir do próprio mundo em que vivemos e das epistemes que nos são próprias.

A partir do diálogo entre as práticas e discursos de coletivos de mulheres camponesas do Brasil e da Argentina, em sua tese Elas dizem não! Mulheres camponesas e

resistências aos cultivos transgênicos no Brasil e Argentina, Márcia Tait (2014),

pesquisadora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor/Unicamp), aponta que as mulheres camponesas vêm gerando epistemologias que têm se destacado por sublinhar as noções de bem comum, comunidade, bem viver, articulando as reivindicações das mulheres às lutas pelos territórios, o que inclui o exercício da solidariedade, do cuidado e da proteção à natureza, e um rompimento com a própria separação entre natureza e cultura que marcou (e ainda marca) diversas teorias sociais. A partir do enfrentamento ao agronegócio e à mercantilização da vida, as mulheres trazem questões centrais e concretas como sementes, proteção da biodiversidade, produção de alimentos saudáveis, soberania alimentar, exploração

do trabalho e desigualdades de gênero. Comprometidas com uma ética singular em relação aos humanos e não humanos, Tait (2014) aponta para a construção de uma epistemologia crítica denominada pela autora como ética feminista e com a natureza, trazendo uma abordagem não reducionista sobre a vida e o ambiente, cuja potência está em responder questões fundamentais envolvidas nas crises ambiental, social e alimentar contemporâneas.

Em sua tese A construção de saberes no Movimento de Mulheres Camponesas:

uma análise a partir do Programa de Sementes Crioulas, no oeste de Santa Catarina – Brasil, Sirlei A. Kroth Gaspareto (2017) também defende a construção de outras

epistemologias a partir da experiência das mulheres camponesas em resgatar, produzir e melhorar sementes crioulas de hortaliças. Apontando outros sentidos e significados para a compreensão do mundo camponês na visão das mulheres camponesas, esse conjunto de práticas, saberes, processos organizativos e de lutas originou, defende a autora, uma

perspectiva epistemológica feminista camponesa, que segue em construção no MMC.

As sementes, os saberes produzidos e recuperados pelas mulheres camponesas são ressignificados e adquirem relevância visto que reportam aos acúmulos de ancestrais, reforçam perspectivas históricas, lembram diferentes sociedades, explicitam culturas e identidades variadas, resistem às formas de dominação e criam alternativas para uma vida melhor, mesmo que, muitas vezes, sejam desqualificados e considerados inferiores por visões hegemônicas, patriarcais e eurocêntricas. Observamos que as práticas com sementes crioulas a partir das mulheres camponesas em seus territórios possibilitaram a elaboração de outros conhecimentos, outras concepções, e esse processo vai construindo outras perspectivas epistemológicas (GASPARETO, 2017, p.131-132).

Outro ponto destacado por Gaspareto (2017) é que, ao retomarem a produção, recuperação e melhoramento de sementes crioulas de hortaliças, as mulheres também redescobrem o valor das práticas, dos conhecimentos e de seu trabalho, construindo o projeto

popular de agricultura camponesa, de bases feminista e agroecológica, dentro de uma visão

mais ampla, e não apenas referindo-se à produção. Em movimento, tomam contato com novas teorias e práticas, resistem à cultura patriarcal e se assumem como camponesas e feministas. Um processo que também segue em construção no Movimento de Mulheres Camponesas e nas demais organizações que compõem a CLOC-Via Campesina18. Denominado feminismo

camponês e popular, trata-se de uma formulação política, organizativa e teórica, que

intersecciona gênero, raça, classe e etnia com temáticas da vida no campo, como reforma agrária, agricultura camponesa, resgate e multiplicação das sementes crioulas, produção de alimentos saudáveis e soberania alimentar dos povos.

Antes de compreender como o feminismo camponês e popular tem se construído na práxis do MMC, no próximo item, apresento alguns momentos representativos em décadas de luta e resistência das mulheres organizadas no Movimento. O objetivo, com isso, não é construir uma historiografia do MMC, mas trazer alguns apontamentos que contribuam para contextualizar as reflexões que seguirão ao longo deste capítulo, bem como nesta dissertação como um todo.