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Para a análise empreendida até aqui foram selecionados 37 artigos da Gazeta Médica

da Bahia entre os anos de 1866 e 1895. Entre os casos escolhidos estão os mais descritivos,

que oferecem riqueza de informações, sendo que todas as ocorrências selecionadas sucederam em solo baiano, a maioria em Salvador.

Infelizmente não há uma descrição padrão do histórico das pacientes em todos os casos selecionados, o que é um fator limitador para que seja traçado um quadro mais complexo do perfil social dessas pacientes. São inúmeras as lacunas, e cada médico se porta de maneira diferente frente às pacientes e frente às doenças. Por outro lado, é importante esboçar um panorama, mesmo que geral, dessas mulheres, já que um quadro ainda que simples oferece informações relevantes sobre a relação entre gênero, classe e raça.

Das 37 publicações selecionadas, em 29 os médicos declaram a cor das pacientes. Destes 29 casos, 19 eram pretas, crioulas e pardas, uma cabocla e nove eram brancas. Talvez não seja difícil presumir porque a maioria dos casos aqui analisados foi protagonizada por mulheres negras. Isso explica-se, em parte, pelo número de atendimentos na Santa Casa de Misericórdia, lugar raramente freqüentado por mulheres brancas. Inclusive, a maioria das pacientes brancas mapeadas neste estudo foi atendida em seus domicílios. Por outro lado, talvez existisse uma razão ética mais apurada com relação às mulheres brancas. Pelo caráter científico e muitas vezes experimental das publicações da Gazeta Médica, frequentemente as pacientes eram vistas como ―cobaias‖ de tratamentos que poderiam ou não dar resultados. Portanto, por uma questão racial, era mais fácil expor as mulheres negras, relatando seus comportamentos levianos como exemplo e causa de doenças.

Ao longo da leitura dos artigos, duas publicações já analisadas em tópicos deste capítulo deixaram clara a importância da questão racial neste contexto. Um dos textos faz referência às ocorrências de ―prenhez‖ extra-uterina entre as mulheres negras, e o outro trata de eventos ligados à histeria em mulheres brancas. O debate é interessante porque em ambos os casos os médicos tecem reflexões sobre a conduta dessas mulheres. As negras, em especial,

68 QUEIROZ , Alicio Peltier de. Breves considerações sobre a physiologia da puberdade na mulher. Bahia:

são descritas como portadoras de uma sensualidade natural, uma voluptuosidade em seus comportamentos, o que resulta em certas enfermidades. Em um registro de 1869, o Dr. Pacífico Pereira descreve sua paciente da seguinte maneira:

F. crioula, de 24 a 25 anos de idade, de constituição forte, nulípara, achando-se em um dos períodos da menstruação, que fora sempre regular, apanhou um pequeno aguaceiro, e viu nesse mesmo dia se suprimirem suas regras, aparecendo-lhe na região hipogástrica uma pequena dor que se exacerbava à pressão. Apesar disto, F. daí a dois dias cometeu abusos de relações sexuais, e sentiu desde então aumentar- se-lhe a dor hipogástrica, aparecendo-lhe febre intensa e uma metrorragia abundante.‖69

Neste trecho, o médico fala de ações que implicitamente não seriam próprias a uma mulher solteira. Neste discurso fica subentendido que mulheres negras pobres adotavam hábitos impróprios, vivendo livremente sua sexualidade, transgredindo as regras de uma sociedade que buscava a higienização das relações. Por conseguinte, outro dado importante entre os casos selecionados no jornal, a maioria das mulheres solteiras tinha filhos, e as que não tinham já haviam sofrido um aborto, ou a criança falecera em seus primeiros anos de vida. O que ficava evidente é que na Bahia oitocentista o modelo de família patriarcal não era tomado como predominante entre todas as classes. O fato de que essas mulheres não constituíam uma família moralmente adequada aos olhos dos esculápios corroborava a idéia de degeneração social que estava diretamente relacionada à raça e ao gênero. Pensar a condição dessas mulheres (pacientes) em Salvador do século XIX a partir de suas relações sociais e hierárquicas é refletir sobre os conflitos entre homens e mulheres, e também sobre os conflitos raciais, mais eminentes ao fim do século. As mulheres no século XIX eram caracterizadas, pela maioria dos cientistas, em razão de sua natureza emotiva, seres destinados à maternidade, desprovidas de racionalidade e condicionadas às intempéries de seu aparelho reprodutor.

Para o discurso científico da medicina, as funções tradicionais atribuídas aos gêneros estariam iniludível e irreversivelmente enraizadas na anatomia e na fisiologia. Os médicos viam a mulher como produto do seu sistema reprodutivo, base de sua função social e de suas características comportamentais: o útero e os ovários determinariam a conduta feminina desde a puberdade até a menopausa, bem como seu comportamento emocional e moral, produzindo um ser incapaz de raciocínios longos, abstrações e atividade intelectual, mais frágil do ponto de vista físico e sedentário por natureza; a combinação desses atributos, aliada à sensibilidade emocional, tornava as mulheres preparadas para a procriação e a criação dos filhos.70

69 PEREIRA, Pacífico. Alguns casos que abonam a medicação isolante. Gazeta Médica da Bahia, Dezembro,

1869. p. 112.

70 MATOS, Maria Izilda Santos de & SOIHET, Rachel (Orgs.). O corpo feminino em debate. São Paulo:

Na Gazeta Médica da Bahia, algumas das mulheres brancas descritas como histéricas apresentavam algum problema em seu aparelho reprodutor. Assim, Pacífico Pereira atribuiu aos desvios uterinos alguns dos reflexos nervosos sofridos por suas pacientes. Outros eventos como menstruação também são citados como momentos de extrema atenção, já que poderiam causar sérios desequilíbrios em mentes tão sugestionáveis quanto as das mulheres.

Portanto, se a mulher era inferior ao homem à luz das concepções do período, e se os homens negros foram tão infantilizados quanto as mulheres brancas, as mulheres negras poderiam ser encaixadas em patamar ainda inferior, consideradas mais degeneradas, próximas a um estado de selvageria que as impedia de alcançar o estado de civilização.