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Considerações acerca de uma cartografia afetiva

Um considerável número de fotografias, desenhos e arquivos sonoros espalhados sobre a mesa compõe, em seu conjunto, uma imagem caleidoscópica que ilustra de forma multifacetada os meses que convivi com Rafael e Seu Juquinha no pequeno vilarejo de Lapinha da Serra. Cada imagem realizada por Rafael, cada relato proferido por Seu Juquinha é uma dentre tantas facetas que compõe esse mosaico polissêmico, e cada uma delas se apresenta como um possível ponto de partida, um entre tantos pontos de vista, uma dentre tantas formas de abordar uma história. Meus olhos e ouvidos percorrem cada detalhe desse conjunto, na busca por pontos de conexão, por um fio condutor capaz de ordenar cada fragmento junto ao outro e, assim, quem sabe, alcançar uma possível tradução.

Mesmo esforçando-me por efetuar as melhores escolhas, percebo como cada nova imagem suscita uma série de novas conjecturas que evidenciam a inconsistência de qualquer procedimento que se faça pela repartição, por uma ordenação e seriação no tempo. Trata-se de um conjunto que diz respeito a matérias não formadas, não organizadas, como também a funções não formalizadas, não finalizadas.

Mas como alcançar uma ordenação que dê conta dessa dimensão informal? Como tratar dessa história que se liquefaz, borrando qualquer registro ou traço de orientação, dentro do que consideramos como lógico numa estrutura narrativa? Os mapas que porventura orientavam tanto as minhas ações e intenções como as de Rafael e Seu Juquinha ao longo desses meses não coincidem. Cada um deles aponta para direções específicas, diz respeito a intenções particulares que raramente coincidem (no máximo tangenciam) com o rastro deixado pela ação do outro. Qualquer tentativa de alcançar um traçado comum converte-se em artifício redutor, inviabilizando que o produto final acolha as inúmeras linhas de força que atuavam e animavam aquele convívio. Tal tarefa envolve decisões que não cabem só a mim. Para que uma possível

cartografia desse encontro se configure minimamente seria necessário que, mais uma vez, estivéssemos os três juntos, caso contrário, o melhor é que boa parte dela se mantenha incompleta. Abrir mão de determinadas orientações é o modo de permitir que detalhes que passam despercebidos por um brilhem aos olhos do outro, e espaços aparentemente vazios se encham de significado.

Na busca por referências que me auxiliem nesse entendimento, chego ao pensamento de Michel Foucault, onde encontro, talvez, a designação mais plausível e a mais clara orientação para a configuração desse novo desenho: o diagrama. Segundo ele, um diagrama esboça “o funcionamento abstrato de relações de forças instáveis e devanescentes que operam em uma determinada relação, um mapa de densidades, de intensidades”.22

O diagrama não é um arquivo, auditivo ou visual, é uma cartografia coextensiva a todo campo social que busca dar forma a uma matéria fluida e à sua função difusa. Uma disposição que destaca mais do que ordena e compõe. Um sentido de ordenação profundamente instável e flutuante que, ao misturar incessantes matérias e funções, nunca funciona para representar um mundo preexistente, mas sim, produz um novo tipo de realidade, um novo modelo de verdade. Desse modo, o diagrama faz a história desfazendo as realidades e as significações precedentes, constituindo outros tantos pontos de emergência ou de criatividade, conjunções inesperadas.

A decisão de tomar tal conceito como ponto de partida para lidar com esse conjunto de fotos, desenhos e relatos orais, considerando seu caráter aberto e difuso, demanda outra forma de abordagem e interpretação. Não há como analisá-los por um ponto de vista formal, pela “coisa” em si ou por um simples efeito compositivo, como suporia uma estética formalista, mas sim pela estreita relação entre valores éticos e estéticos que orientam o desenrolar das ações que os geraram. Dedico então momentos de minha permanência na vila para, junto com Rafael, revisitar os arquivos de imagens armazenados em meu computador e, ao

contemplar cada imagem, desafiá-lo a revisitar aquele momento e assim vislumbrar as forças que o animavam.

A excitação característica de quem descobre pela primeira vez as possibilidades do equipamento fotográfico ou, quem sabe, a velocidade com que o olhar infantil vasculha as coisas do mundo faz com que Rafael dirija o equipamento para uma direção, sem se preocupar com o enquadramento. As imagens resultantes não têm qualquer intenção descritiva, afastando-se do compromisso de registro do instante decisivo (tomando emprestado o conceito de Cartier-Bresson) para dirigirem-se a um campo aberto de inúmeras interpretações e recepções. Delas irradia uma noção de duração, de ação, de uma atmosfera que reina. E é entre risos e comentários proferidos ao longo de nossa apreciação, que Rafael me apresenta pistas: “Esse foi um dia em que o ônibus da escola quebrou”. Ou ainda: “Nesse dia estava frio e eu dormi ao lado de minha mãe.”

É por essa aura poética e não por um compromisso de registro fiel que essas imagens ganham valor. Não me sinto apto, muito menos interessado em defendê-las sob qualquer outro ponto de vista, seja ele estético ou documental. Trata-se de um arquivo que se oferece como importante elemento para uma possível configuração final do trabalho, e sei o quanto desvelar as sutis camadas de sentido que se depositam sobre cada imagem, é indispensável para uma tomada de decisão quanto à sua melhor utilização. Até então, na impossibilidade de interpretá-las com maior clareza, procuro atentar para que, qualquer possível incorporação ao trabalho se dê a partir do respeito à relação de confiança e companheirismo que construí com o pequeno Rafael. Tomo-as então, acima de tudo, como uma prova de afeto, que devo cuidar com muito zelo. Sei que o tempo se encarregará de apontar um caminho.

Procuro, então, extrair da apreciação das imagens que fazemos juntos, tão somente palavras-chave, pontos de interesse que orientam a crônica visual que Rafael constrói com sua máquina fotográfica. São esses indicativos que me sinalizam o que diz respeito tão somente a Rafael; o que diz respeito a nós e o que merece retornar ao coletivo como possível tradução poética do que anima nosso convívio.

Do mesmo modo, analiso minuciosamente os arquivos sonoros de meus encontros de prosa com Seu Juquinha, na busca dos mesmos sinais. Não se tratam de entrevistas, relatos com qualquer compromisso com uma narrativa informacional. São livres flutuações de duas pessoas que estreitam relações pela troca de impressões de mundo num momento de encontro informal; falas entrecortadas por um canto de galo, pelo ruído do milho que, debulhado no decorrer da conversa, cai no fundo do tacho, para depois ser lançado aos animais; do som do foguetório que anima as festividades religiosas da vila. Da audição dos arquivos sonoros traço então a mesma estratégia. Que fragmentos sonoros dizem respeito ao universo particular de Seu Juquinha? Que palavras ou sons podem se converter num recorte que evoca um lugar – legado oral de importância, não só para os moradores da vila como para qualquer outra pessoa e, por esse motivo, mereçam ser replicadas?

São dessas palavras-chave, desses indicativos, que lanço mão para desenhar meu diagrama, como contas que, alinhavadas uma a uma, constroem em seu conjunto um colar. E quem sabe, ao fim, esse colar seja capaz de unir as duas pontas de uma mesma história (Figura 4). A ética não tem uma fundamentação racional, mas sim emocional e, nesse caso, pode ser entendida de maneira simples e objetiva como a preocupação com as consequências que nossas ações têm sobre o outro; pelo devido cuidado e atenção na construção de uma rede de afetos que sustente e oportunize as relações humanas e promova a construção de novos sentidos e valores entre os que delas participam. Do ponto de vista estético, a opção por essa nova perspectiva de interpretação do material que tenho à minha frente promove a sua aproximação de questões éticas,

na medida em que estende a esfera de tais práticas artísticas à dimensão de uma experiência, um jogo de viver, no qual meios e fins, sujeito e ações se integram numa unidade capaz de contribuir para a modelação e transformação da vida.

E é assim, a partir do reconhecimento do “meio” ou do “campo” enquanto a própria essência do objeto artístico, da reunião de dados que contribuam no entendimento das possibilidades de conversão de valores estéticos numa práxis de vida, que busco alcançar um entendimento do material reunido durante a pesquisa. Essa é a direção que tomo em minhas análises e os princípios que regem a escolha de contribuições teóricas e práticas que reúno a partir de então nos capítulos que compõe a segunda parte desta dissertação.

11.Arte e participação