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“[...] Há tantos anos me perdi de vista que hesito procurar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim.”

(LISPECTOR, 1978, p. 15)

O ponto a que Joana (LISPECTOR, 1998) e nós chegamos é sem volta. Esses desassossegos de nossas noções sobre animalidade e humanidade podem gerar em nós um medo de desacomodar um eu que talvez nos aliene em um nome próprio, em um humano com coordenadas fixas. Mas, como citado anteriormente, não precisamos ―seguir o próprio começo‖ (LISPECTOR, 1998, p.196), até porque o humano é ―este animal cuja natureza própria é não tê-la‖ (LESTEL, 2007, não paginado). Assim, não precisamos nos agarrar a somente uma noção do que constitui nossa humanidade e animalidade, mas sim colocá-las em relação e movimento, tal como nos propomos a fazer neste tópico e nos que se seguem. Mas, para tanto, é necessária uma leitura que pressupõe uma entrega e abertura ao estranho e diferente, um desassossegar-se constante e a inversão de uma lógica racional e cartesiana. Dominique Lestel (2007) nos mostra que nós, humanos, acabamos seguindo o caminho errado ao tentarmos estabelecer uma essência do humano ou da animalidade, sujeita a uma diferenciação sem ambiguidade. O autor nos questiona, a partir dos estudos dos primatólogos e etólogos, se o animal seria dotado também de qualidades que faltam ao homem. Assim, quem sabe, se invertermos a lógica do problema, poderemos mudar seus caminhos e suas respostas. Se o que entendemos por ser humano foi historicamente construído por meio de oposições contestáveis, se o humano é ―uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo‖ (FOUCAULT, 1999, p. 536), então, no momento em que definirmos algo sobre o ser humano, ele deixará de ser o que era? Ou passará a ser uma ideia em constante construção? E, talvez, ―seria a complementaridade entre homem e animal mais

56 interessante que sua oposição anteriormente suposta? A vida comum entre eles seria mais significativa que a oposição?‖ (LESTEL, 2007, não paginado).

Na visão de Lestel (2007), seria sim mais interessante e relevante pensar numa complementaridade entre humano e animal, na perspectiva de ―comunidades híbridas‖, onde as espécies animais (nas quais se inclui o humano) possam construir-se pelo compartilhamento de sentidos e de interesses que não necessitam de contratos sociais e de deveres recíprocos. São exemplos de ―comunidades híbridas‖ as sociedades mistas e interespecíficas do mundo rural, indígena e selvagem, sociedades que beiram a extinção, mas que nunca deixaram de estar presentes na literatura (MACIEL, 2016, p. 68) e nas artes visuais. A literatura e as artes visuais, segundo Lestel, em entrevista concedida à pesquisadora Maria Esther Maciel (2016, p.142), têm o papel de mudar nossa consciência, de desencadear uma revolução mental no Ocidente. Nessas comunidades possíveis ou imagéticas, a noção de animalidade assume um outro sentido possível: ―se a noção de animalidade não serve para caracterizar nem o animal nem as margens do humano, ela permite talvez precisar uma outra coisa mais complexa, a relação entre o humano e o animal. A animalidade remete, então, mais ao que lhes é comum do que aquilo que os distingue‖ (LESTEL, 2007, não paginado). Nessa visão, a animalidade é entendida como um espaço comum entre animais humanos e não humanos, mas que não serve nem para classificar o animal, nem o humano. Ela movimenta de outros modos a relação entre humanos e animais, relação que fomos levados a pensar como polaridades opostas. No entanto, nesta pesquisa começam a surgir pistas da complementaridade entre essas categorias, mesmo com suas diferenças, movimentando e imprecisando essa relação dúbia entre o que é humano e o que é animal.

Nas culturas não ocidentais, essa complementaridade é vista não pela via da oposição, e sim da diferença. Nessa visão, não somente os humanos podem existir como pessoas25, visto que o que os liga não é a animalidade, e sim a humanidade inerente a todas as formas de vida animal. ―Todos os animais e demais componentes do cosmos são intensivamente pessoas, virtualmente pessoas, porque qualquer um deles pode se revelar (se transformar em) uma pessoa‖ (CASTRO, 2015, p. 45-46). Na perspectiva das tribos ameríndias, a construção de ser humano não é fixada na espécie, nem num código normativo, e sim numa condição comum a todos os seres, a humanidade. A condição de ser humano não está

25 Castro (2015) define pessoas como ―entidades complexas, com estrutura ontológica de dupla face (uma visível e outra invisível), existindo sob os modos relacionais do

57 ligada a um corpo ou forma específica, e sim a uma condição interna comum, a alma. Segundo o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro (2011, p.347-348), os ameríndios têm uma visão de humanidade, sujeito, ou pessoa, diferente da que temos nós, ocidentais. Para eles, no mundo habita uma multiplicidade de pessoas, humanas e não humanas, que percebem o mundo à sua volta sob diferentes perspectivas, pois em sua concepção existem diversas formas de corpos, mas somente uma unidade de espírito. A partir desta visão, Castro (2015, p. 33) nos apresenta o conceito de ―perspectivismo ameríndio‖, que acredita poder redesenhar práticas que ainda não tinham sido exploradas em nossa sociedade ocidental. Essa multiplicidade de pessoas e perspectivas que coabitam a cultura ameríndia imprime diferentes pontos de vista sobre o mundo e os outros.

Nessas concepções não eurocêntricas, percebemos que a lógica de certas oposições humanistas entre humanos e animais não funciona, ou melhor, elas operam de outra forma, pois para os ameríndios a humanidade é o estado original de humanos e animais, e não a animalidade. ―Os humanos são aqueles que continuaram iguais a si mesmos: os animais são ex-humanos, e não humanos ex-animais‖ (CASTRO, 2011, p. 355). O conjunto da humanidade abarca corpos diferentes que em sua essência, porém, são iguais e humanos. Animais são humanos em corpos de animais e se percebem como pessoas. Por ―corpos‖, entende-se ―roupas‖, esse envoltório de cada espécie que esconde sua forma interna real, a forma humana, geralmente visível somente para a própria espécie ou seres transespecíficos, tais como os xamãs (CASTRO, 2011, p. 351). Os xamãs ameríndios exercem uma arte política que pressupõe uma travessia para a subjetividade do outro a partir do ponto de vista desse ser, estabelecendo assim um diálogo entre humanos e tais seres.

[...] O xamanismo ameríndio pode ser definido como a habilidade manifesta por certos indivíduos de cruzar deliberadamente as barreiras corporais entre as espécies e adotar a perspectiva de subjetividades ―estrangeiras‖, de modo a administrar as relações entre estas e os humanos. Vendo os seres não-humanos como estes se veem (como humanos), os xamãs são capazes de assumir o papel de interlocutores ativos no diálogo transespecífico; sobretudo, eles são capazes de voltar para contar a história, algo que os leigos dificilmente podem fazer. O encontro ou o intercâmbio de perspectivas é um processo perigoso, e uma arte política – uma diplomacia. Se o multiculturalismo ocidental é o relativismo como política pública (a prática complacente da tolerância), o perspectivismo xamânico ameríndio é o multinaturalismo como política cósmica (o exercício exigente da precaução). (CASTRO, 2015, p. 49-50).

Na travessia de acesso a essas subjetividades ―estrangeiras‖, o xamã acolhe a perspectiva de mundo desses seres, mas é preciso ter diplomacia e preocupação para não objetificar esse outro. Esse modo de operar implica um modo de conhecer e uma outra racionalidade de

58 relação com o outro, à qual não estamos acostumados. Nossa ―epistemologia objetivista favorecida pela modernidade ocidental‖ nos diz que conhecer é objetificar, dessubjetivar, ―explicitar a parte do sujeito presente no objeto, de modo a reduzi-la a um mínimo ideal‖ (CASTRO, 2015, p.50). Nesse processo epistemológico, mantém-se irreal e abstrato o que não foi objetivado, enquanto que, para o xamanismo ameríndio, ―conhecer é ―personificar‖, tomar o ponto de vista de vista daquilo que é conhecido. Tal modelo de relação e conhecimento dessas subjetividades ―estrangeiras‖ é inverso ao nosso, pois no processo de objetivação ―a forma do outro é a coisa‖, e no de personificação, ―a forma do outro é a pessoa‖ (CASTRO, 2015, p. 50).

Em suma, se no mundo naturalista da modernidade um sujeito é um objeto insuficiente analisado, a convenção interpretativa ameríndia segue o princípio inverso: um objeto é um sujeito incompletamente interpretado. Aqui, é preciso saber personificar, porque é preciso personificar para saber. O objeto da interpretação é a contra interpretação do objeto. Pois este último deve ser expandido até atingir sua forma intencional plena – de espírito, de animal em sua face humana –, ou, no mínimo, ter sua relação com um sujeito demonstrada, isto é, ser determinado como algo que existe ―na vizinhança‖ de um agente (GELL, 1998). (CASTRO, 2015, p. 50).

Esses sujeitos não humanos dotados de alma têm a capacidade de perceber o mundo de forma específica; logo, se eles têm uma perspectiva sobre o mundo, também terão uma posição de sujeito. Sobre isso, Castro nos esclarece que ―os animais e outros entes dotados de alma não são sujeitos porque são humanos (disfarçados), mas o contrário – eles são humanos porque são sujeitos (potenciais) [...] porque

humanidade é o nome da forma geral do Sujeito‖ (CASTRO, 2011, p. 374). Os sujeitos não humanos partilham da humanidade com os índios e

outros seres, percebem-se a si mesmos e seus comportamentos sob a forma da cultura humana. O que nós, humanos, interpretamos como sendo um comportamento e um modo de vida selvagem e bruto dos animais, para eles é altamente civilizado, ou seja, o que para nós é estranho e sem sentido, para eles faz todo o sentido. ―E assim, o que uns chamam de ‗natureza‘ pode bem ser a ‗cultura‘ dos outros.‖ (CASTRO, 2015, p.53). No mundo indígena, a forma imanente é a humanidade, uma visão incompatível com a visão antropocêntrica em que nós, humanos ocidentais, fomos produzidos. E assim, se adentrarmos na pele do animal, encontraremos uma alma semelhante à nossa, uma alma humana: em tal lógica, a subjetividade desse ser não seria estranha a nós, mas seríamos participantes de um mesmo conjunto, a humanidade. A diferença e a outridade

59 nada mais são que uma pele que esconde as semelhanças e o pertencimento. A semelhança das almas, porém, não sugere a homogeneidade ou identidade do que essas almas declaram ou veem, assim a maneira como os humanos veem e percebem os animais é completamente diferente de como o animal se vê e como ele vê e percebe os humanos. Os humanos enxergam os humanos como humanos e os animais como animais, já os animais predadores enxergam os humanos como animais de presa, e estes últimos enxergam os humanos como espíritos ou como animais predadores (CASTRO, 2015, p. 44). Isso nos mostra que existem diferentes perspectivas para pensar a animalidade e a humanidade e que todas carregam suas verdades, mas nenhuma se faz uma verdade, pois cada uma delas mostra uma pluralidade de perspectivas.

A escritora Veronica Stigger, no livro infantil Onde a onça bebe água (STIGGER, 2015), apropria-se da teoria do ―perspectivismo ameríndio‖, tendo como base a obra do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro que versa sobre as tribos ameríndias. Na história, Joaci, um jovem índio, após recostar-se num tronco, sonha com um encontro inusitado: uma onça que dormia na rede de seu irmão Ubirajara. No decorrer desse encontro permeado de tensão e dúvidas, Joaci relembra que o pajé de sua aldeia contou que, antigamente, os animais também eram humanos, e só se tornaram animais depois de já terem sido humanos, mas que seu ser sempre continuaria sendo o de seres humanos: no momento em que se encontram em casa com a família, retiram suas roupas de animais e agem como nós. A partir dessa lembrança, Joaci analisa de outro modo a onça e percebe que ela agia como gente. Com isso, Joaci questiona desconfiado: ―se a onça se via como gente, talvez ela o visse como bicho! Talvez ele não fosse um convidado, mas o prato principal‖ (STIGGER, 2015, não paginado). Criando coragem, Joaci questiona a onça sobre o que ela via quando olhava para ele. A onça responde: ―– Um porco-do-mato, ora [...]. – Um porco-do-mato assado, ainda quentinho, com cheirinho de brasa.‖ (STIGGER, 2015, não paginado). Joaci retruca que não era um animal, mas a onça assim o via e investe sobre ele. Ao tentar desvencilhar-se das garras da onça, o índio percebe um zíper no pescoço dela:

[...] mesmo achando aquilo muito estranho, Joaci puxou o zíper para baixo e a onça se abriu. Debaixo dela estava seu irmão Ubirajara.

Com o susto, Joaci acordou. O sapo-cururu não estava mais sobre a vitória-régia, mas em cima da cabeça de Joaci, lambendo sua testa. Ao ver Joaci acordar, ele coaxou. Joaci riu. Levantou-se, sem tirar o sapo-cururu da cabeça.

E foi até a beira do rio. Joaci tinha sede. Quando se abaixou para beber, viu refletida na água a cara de uma onça com um sapo em cima. (STIGGER, 2015, p. 29).

60 Essa história infantil nos provoca a olharmos humanos e animais de outra forma, pois nela estes seres vivos veem o mundo de diferentes pontos de vista. Quem olha, porém, sempre vê o mundo como um humano, sob a imanência da humanidade. Não existe nessa visão um mundo verdadeiro, mas antes a experiência e interpretação de quem o vê. Essa história pode parecer um pouco surreal para crianças e até mesmo para adultos, mas coloca em questão problemas importantes para nós nesta pesquisa, tais como: com que olhos vemos o mundo e os outros26? Estamos buscando nós mesmos no outro, ou seja, o outro é apenas um espelho no qual buscamos nos reconhecer? Ou, ao ver esse outro, em sua perspectiva, nos abrimos ao diferente, ao ―estrangeiro‖? Será que desta última relação retornamos iguais? Esse mundo que enxergamos sob nossa perspectiva se modifica ao nosso olhar? Ou nos modificamos quando nos colocamos a viver a experiência da exterioridade, dos outros? E nesse contato com o outro, com o estranho e ao mesmo tempo familiar, conseguimos retornar para a estabilidade de um eu com nome próprio e alienado? (LISPECTOR, 1978, p.15). Não temos respostas para essas perguntas, mas podemos ter alguns nortes para problematizá-las a partir da mesma história que nos fez formulá-las. Ao embarcar na travessia entre o humano e o animal, Joaci (STIGGER, 2015) não retorna de seu sonho o mesmo, ou melhor, não sabemos mais o que é sonho ou realidade, quem é Joaci, um humano-animal ou um animal-humano, ou talvez uma onça que ri e que se vê refletida como animal, mas pensa como humano. Joaci não usa ou analisa sua travessia, mas antes se modifica na experiência e contato com a onça, com essa animalidade que é ele mesmo. Trata-se de uma relação bem diferente da descrita por Castro (2015) na análise de uma parábola de Lévi-Strauss sobre a conquista da América. A parábola em questão fala sobre as comissões de inquérito realizadas pelos espanhóis nas Antilhas para saber se os indígenas possuíam alma ou não, ou seja, se eram humanos ou animais, e também submergiam corpos de prisioneiros brancos para analisar se estes apodreciam ou não, ou seja, se eram humanos ou deuses. Para o autor, Lévi-Strauss percebeu nessa parábola que ―uma das manifestações típicas da natureza humana é a negação de sua própria generalidade. Uma avareza congênita, que impede a extensão dos predicados da humanidade à espécie como um todo, parece ser justamente um desses predicados‖ (CASTRO, 2015, p. 35). O antropólogo segue dizendo que os espanhóis favoreceram sua própria humanidade às custas da humanidade desse outro desprezado. Ao analisar a citação de Lévi-Strauss na fala de Castro (2015), definimos o que não queremos na relação com o outro: não

61 queremos esse olhar para o outro como algo a ser verificado, usando o que dele retiramos somente em benefício próprio, objetivando e tornando a relação com o outro quase como uma análise científica e fria, para dela extrairmos respostas que sirvam para o eu; não queremos o outro tomado como representação para o eu, não queremos um outro desprezado. Não queremos mais movimentar na educação relações com o outro baseadas em ignorância, apoderamento e análise, nos moldes científicos cartesianos.

A história infantil de Stigger (2015) vivida por Joaci e por uma onça que supomos ser ele mesmo nos fez lembrar da expressão popular ―na hora da onça beber água‖(PRATA, 2001, p.117), que significa um momento perigoso, certo, decisivo, uma das poucas expressões que se dissemina a partir de um saber indígena. A onça bebe água ao anoitecer, e os índios, como bons observadores da natureza, sabiam de suas predileções, mas não os nossos colonizadores. Muitos homens brancos e jesuítas que impunham seu deus e um eu com nome próprio e afastado da natureza aos índios, foram presas fáceis dessa onça, dessa animalidade que luta por não se ver subjugada a uma domesticação e um aniquilamento. A história dessa expressão popular, a história do momento decisivo entre Joaci e a onça, bem como as questões levantadas sobre estes últimos, nos chamam a conversar com uma das obras da série Animales familiares (2011), da artista peruana Ana Teresa Barboza.

Na obra, vemos a parte inferior de um homem nu, do qual eclodem, fogem, ou no qual habitam, diversos animais. No topo da imagem, vemos a mão de outro humano, que não sabemos se é homem ou mulher, mas que tece os animais e as plantas que compõem a cena; estes últimos são construídos de fios coloridos em oposição ao cinza que forma o humano. Nessa obra parece ser tecida uma pele humana-animal ou animal-humana, que

IMAGEM 9 – Ana Teresa Barboza. (sem título), 2011, série Animales familiares. Grafite e pano bordado, (131 x 186 cm).

62 se compõe de muitas vidas, de instintos animais, de outros. Sua costura, que tece e compõe vidas, emaranha e decompõe em nós algumas certezas já desassossegadas pela história de Joaci (STIGGER, 2015). Refletindo um pouco mais sobre a pergunta que nos fizemos anteriormente – com que olhos vemos o mundo? – e buscando decompor seus fios, talvez pudéssemos partir do pressuposto de que olhamos o mundo e os outros com olhos de humanos pertencentes ao conceito de humanidade traçado no tópico O medo de entregar-se à animalidade. Mas, como nos mostram Joaci (STIGGER, 2015) e a obra de Ana Teresa Barboza, talvez habitem em nós, humanos, outros modos de humanidade e uma multiplicidade de outros animais, e precisaremos, nesse encontro de perspectivas, ter a precaução de um xamã que não objetiva esses seres, mas antes os ―personifica‖, dá vida a suas subjetividades e as acolhe em si mesmo. Talvez seja por isso que Lispector (1999) nos fala desse arrepio e medo ao vermos um animal. É possível que, na experiência com a alteridade radical dos animais, não retornemos mais os mesmos, e isso pode ser algo assustador, pois levaremos para dentro de nós essa diferença, esse animal, nós nos animalizaremos, viveremos essa diferença do outro que também é nossa. Quem sabe se, vivendo essa diferença em nós, multiplicando o que entendemos por animalidade, teremos mais responsabilidade e abertura para acolher os tantos outros que nos rodeiam e poderemos construir outras relações de alteridade na escola? Para tanto, vamos refazer nesta pesquisa a travessia de Joaci, entre humanos e animais, buscando um olhar xamã para pensar a animalidade com toda a sua potência de instintos e vida. É uma travessia que instiga a nos entregarmos, nos deixarmos ser habitados pela animalidade, nos desassossegarmos e embarcarmos em outras relações com nós mesmos e com os tantos outros da educação. Esses são os fios com os quais iremos tecer nosso pensamento nos tópicos seguintes.

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