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Enunciados éticos e morais: a construção de um pluriverso moral

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Onze da noite era o horário marcado para saída do ônibus de São Paulo rumo ao dia de visitas nas penitenciárias de Cerejeira. Do mesmo ponto de encontro partiam ônibus para diversos estabelecimentos penais do interior paulista. Ao menos vinte ônibus deixavam a localidade por volta do mesmo horário. Entre 45 e 50 passageiras, era o limite de cada veículo. Eles estavam quase sempre lotados, o que mostrava o fluxo intenso de mulheres que tinham como destino a cadeia às sextas-feiras à noite9.

Depois de algumas semanas de trabalho de campo, ainda dentro dos transportes públicos rumo ao ponto de encontro com as cunhadas, conseguia identificar as mulheres que, assim como eu, destinavam-se à cadeia. O jumbo, as malas enormes, as mochilas lotadas, o cheiro de comida e o sentido do deslocamento, davam-me pistas das mulheres que fariam visita em algum estabelecimento penal. Passadas mais algumas semanas de pesquisa de campo, já trocava cumprimentos com mulheres no metrô, ainda que eu nunca viesse a saber onde visitavam, sequer os seus nomes, e nem elas nada sobre mim, sabíamos que partilhávamos o mesmo destino naquelas noites.

Da estação de metrô até o ponto de encontro com as mulheres que se destinavam às penitenciárias de Cerejeira, caminhava uns 700 metros. Próxima ao local, mas ainda do outro lado da rua, já podia avistar a guia de Cerejeira a marcar em seu caderno a ordem de chegada das visitas naquela localidade. Como mencionado na introdução, a ordem da lista produzida pela guia de acordo com de chegada das cunhadas no ponto de encontro em São Paulo era equivalente à ordem da fila de entrada para a visita na cadeia.

Atravessei a rua e vi a dona da excursão na porta do ônibus a distribuir as passagens para as mulheres que, calmamente, ocupavam suas poltronas dentro do ônibus. Noite quente e de início de mês, foi necessário chamar ônibus extras para atender toda demanda presente. Muitas mulheres a conversar, comer e fumar, e crianças a correr,

9 Somente para as penitenciárias de Cerejeira havia outros dois horários de saída de ônibus na sexta-feira,

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gritar, rir e chorar. Era preciso muito cuidado para caminhar e não esbarrar em ninguém ou em jumbos e malas enormes com os travesseiros e cobertores dobrados por cima. Cumprimentei a guia, a dona da excursão e as mulheres que conversavam em meio ao cheiro de churrasco dos espetinhos vendidos na esquina, ao lado do colorido produzido pelas malas e jumbos, intensificado pela luz do bagageiro:

Cunhada I: oi amor. Quer um espetinho?

Eu: valeu, querida. Acabei de comer. Você tá bem?

Cunhada I: Tô ótima. MOÇO DO CHOCOLATE!

A cunhada gritou ao ver o vendedor de barras de chocolates e outra cunhada interrompeu:

Cunhada II: eu quero um chocolate.

Cunhada I: escolhe, amor. Era só pro preso, mas vou te dar um.

Dirigiu-se ao vendedor,

Cunhada I: vou querer seis. VAI, ESCOLHE LOGO AÍ O SEU. E você tá bem?

A cunhada I voltou a falar comigo, mas demorei a me dar conta. Cunhada I: JACQUELINE!

Eu: eu tô bem também. Desculpe, não vi que voltou a falar comigo.

Estranhei a ausência de uma cunhada que sempre a acompanhava, então perguntei pela mulher.

Cunhada I: ela vai de carro essa semana e só amanhã de manhã pra esperar outra cunhada sair do serviço, acho que às 6h. Vão chegar 12h em Cerejeira. O ladrão me mata se eu chegar essa hora. Dona Maria, me vê mais uma cerveja?

Enquanto conversávamos, também passavam ambulantes a oferecer sacolas de jumbo, roupas, lingerie, selos postais, envelopes, cigarros e isqueiros. Estes produtos eram consumidos em abundância pelas visitas.

A guia guardava as bagagens das passageiras que chegavam e, não raramente, era interrompida por mulheres que pediam informações sobre os destinos e as regulamentações das cadeias, o que, em geral, sugeria que realizavam a sua primeira

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viagem. Apesar de viajar há algumas semanas e conhecer muitas mulheres (ainda que de vista) o cenário, no que concerne às visitas, era bastante instável. A guia fechou o bagageiro e nos pediu para entrar no ônibus. Já passava do horário combinado de partida e as mulheres que já ocupavam seus lugares começaram a se incomodar: “desse jeito a gente vai chegar às dez da manhã na cadeia, entrar meio dia e ficar nada com o preso”, diziam algumas mulheres claramente irritadas. Discretamente, a guia ainda pediu para a cunhada I (do diálogo descrito acima) não entrar no ônibus com a cerveja. O consumo de bebidas alcoólicas no veículo era proibido, assim como fumar, ouvir funk, utilizar um vocabulário grosseiro e desrespeitoso. As mulheres atribuíam essas atitudes a “uma falta de moral”, em um ambiente em que “é preciso ter ética”. Como veremos mais detalhadamente no capítulo 3, o cuidado com o vocabulário e os limites musicais são alguns dos elementos que compõem o que chamei de imagem da mulher fiel, a qual, provisoriamente, pode ser entendida como uma qualificação a distinguir as mulheres que estão na caminhada. Mas o que é a caminhada?

Em seu contexto de pesquisa, Biondi (2010: 33) indica a variedade de sentidos atribuídos ao termo caminhada condicionados às experiências vividas pelos seus interlocutores, a saber, homens presos em cadeias de domínio do PCC. Entre os sentidos por eles formulados, a autora ressalta os que fazem referências a situações e movimentos, além dos que indicam rumos compartilhados, mesmo que construídos individualmente. Quanto às mulheres dos presos, Biondi sugere que “a qualidade de sua caminhada está relacionada à sua dedicação ao marido” (: 34). Atenta à trama de relações provenientes da minha pesquisa etnográfica e certamente influenciada pelas críticas de Herzfeld (1980) a respeito das comparações, generalizações e traduções conceituais, aclaradas pela análise da produção antropológica do mediterrâneo, somada às considerações de Marques (1999: 136), que ressaltam o escamoteamento dos significados e da variedade dos fenômenos

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que podem brotar das etnografias, caso os antropólogos não deixem de encaixar particularidades em pressupostos conceituais teóricos ou do senso comum, esforcei-me em compreender o sentido atribuído ao termo caminhada mediante as elucidações das colaboradoras desta pesquisa, em circunstâncias e situações específicas.

A análise dos sentidos de caminhada, a equivocidade do termo, portanto, é a primeira tarefa que enfrentarei neste capítulo. Adianto que a convivência privilegiada com as cunhadas permitiu-me apreender que a formulação “estar na caminhada” constituía uma das distinções conferidas ao termo. Como pretendo mostrar, esta formulação implicava uma série de procedimentos a serem desempenhados pelas cunhadas, dentre os quais a frequência nos dias de visita, o jumbo e a comida, conformavam seus pontos de maior visibilidade. A realização destes procedimentos garantidos pela caminhada certamente relaciona-se ao cuidado das mulheres com o preso, como sugerido por Biondi (2010). Desse modo, com base no meu material de campo, descrevo nos tópicos subsequentes (sobre a frequência nas visitas, o jumbo e a comida) em que consiste isto que provisoriamente pode-se entender como dedicação ao marido e como ela não se constituía sem desvios, variações, alternativas ou eventualidades.

Com uma abordagem que diverge da minha, Spagna (2008) sugere que as mulheres que “visitam seus internos” (: 204) “desempenham o papel de dedicação ao companheiro preso, em função dos papéis sociais que lhe são atribuídos por sua condição feminina”. Substancialmente contrário às considerações da autora, minha convivência com as cunhadas não abriu qualquer possibilidade de vincular suas práticas discursivas a “papéis sociais”, sobretudo, derivadas de uma “condição feminina” rotulada de antemão. Pude observar que o ato de dedicação envolve, antes, uma profusão de intencionalidades das cunhadas, como se verá no decorrer das linhas apresentadas, especialmente, no

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capítulo 3. Todavia, ao que concerne ao capítulo 1, levar em conta o ponto de vista do corpo funcional da instituição carcerária sobre o que se diz quando se diz família, constitui um exemplo deste caráter intencional mobilizado pelas cunhadas. Assim, o segundo subcapítulo deste capítulo dedica-se aos sentidos conferidos à noção de família pela instituição prisional de acordo com as narrativas das cunhadas. Nos tópicos que lhe dão forma, abordo a distinção atribuída à noção quando a referência se fazia à família do preso ou ao considerarem que o preso tinha família. Acentuo que ambos os sentidos são concernentes às elucidações das cunhadas no que diz respeito ao ponto de vista da instituição.

1.1) Os diferentes sentidos atribuídos à caminhada - A