• Nenhum resultado encontrado

O envelhecimento na sociedade capitalista excludente, desafios postos para as políticas

Hoje, falar sobre envelhecimento e idoso não é tão raro quanto na década de 1960, época que Beauvoir (1970) escreveu o seu clássico texto sobre a velhice. Eram raras as referências ao idoso, e a autora destaca como a “conspiração   do   silêncio”,   logo   na   introdução   do   seu   livro   (FÉLIX,   2014).   Atualmente, evidencia-se uma maior produção acadêmica sobre o idoso, a família, o impacto do envelhecimento sobre as políticas públicas e o papel do Estado diante da transição demográfica. É notória também a propagação de dados sobre o envelhecimento e uma maior organização da sociedade em torno do tema.

Em contraposição, as políticas sociais estatais estão longe de colocar em prática a vasta legislação que trata do idoso, sobretudo no Brasil, assunto que abordaremos com mais especificidades posteriormente. Já no Canadá, por ter uma economia mais desenvolvida, percebe-se uma trajetória histórica de consolidação da política para o idoso, porém ainda distante de alcançar o modelo ideal. Entram em cena discussões antigas que permeiam a questão social e os problemas advindos de um sistema excludente e marginal.

Estudar sobre o idoso nos dias de hoje, portanto, deixou de ser raro, a “conspiração  do  silêncio” (BEAUVOIR, 1970), e passou a ser realidade. Nesse contexto, nota-se a evolução das áreas relacionadas ao idoso e ao

48 envelhecimento, como a geriatria e a gerontologia.

Mais do que avançar para além da Geriatria e outras áreas da Medicina, o tema da velhice invadiu quase todos os campos de estudo – criando até mesmo um específico, a Gerontologia – e, num segundo momento, empurrou pesquisadores a rever conceitos (e preconceitos) estabelecidos, ora por incapacidade de compreender a totalidade das implicações do objeto de estudo, ora pelo avanço natural da tecnologia, da ciência e do capitalismo contemporâneo a arrastar como torrente construções erguidas sobre terreno frágil. (FÉLIX, 2014, p. 46).

Desde o final do século XX, foram criados centros de pesquisas nos países com avançado estágio de envelhecimento, com o objetivo de ampliar o escopo da pesquisa sobre o tema. Alguns deles definiram esse campo como “Economia  do  Envelhecimento”,  como  aborda  Félix (2014, p. 46), e mais:

No amadurecimento deste debate conceitual, passou a ser aceito em ampla  bibliografia   o  termo  “reinvenção  da  velhice”  de  Debert  (1999)   assim   como   seu   diagnóstico   de   uma   “reprivatização   da   velhice”   empreitada pela sociedade contemporânea.

É fato que as mudanças na faixa etária da população ultrapassaram os limites da Europa e chegaram ao Brasil e a outros países em desenvolvimento. Os países europeus tiveram um longo período para se adaptar à nova realidade; aqui, a situação é outra. O Estado classifica como rápido o processo de envelhecimento, e considera que para se adaptar a essa nova realidade é preciso tempo. Mas quando pensamos em pessoas, principalmente nos idosos, o tempo corre contra o próprio tempo; principalmente se o idoso tem alguma dependência e requer maior atenção por parte do Estado.

É precisamente na década de 1990 que a questão do envelhecimento passa a ser tratada de forma mais intensa nos países em desenvolvimento, porém o debate ainda girava em torno de uma população idosa homogênea, sem peculiaridades. Assim, disseminava um discurso de uma população ativa, produtiva e com capacidade de consumo, sem considerar uma grande parcela da população vulnerável, com seus direitos fundamentais violados. (SOARES; POLTRONIERI; COSTA, 2014, p. 139).

Porém, é necessário destacar que, em 1978, a Organização das Nações Unidas (ONU) convocou uma Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento, realizada em 1982, na cidade de Viena, na Áustria. Dessa assembleia saiu o primeiro documento da ONU sobre a questão do envelhecimento, com as

49 seguintes metas: fortalecer a capacidade dos países para abordar de maneira efetiva o envelhecimento de sua população e atender às preocupações e necessidades especiais das pessoas de mais idade e fomentar uma resposta internacional adequada aos problemas do envelhecimento com medidas para o estabelecimento da nova ordem econômica internacional e o aumento das atividades internacionais de cooperação técnica, em particular entre os próprios países em desenvolvimento (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2003).

Destacamos aqui os três princípios básicos desse documento:

Participação ativa dos idosos na sociedade, no desenvolvimento e na luta contra a pobreza; fomento da saúde e bem-estar na velhice: promoção do envelhecimento saudável; criação de um entorno propício e favorável ao envelhecimento. (CAMARANO; PASINATO, 2004, p. 259).

Em 2002, foi divulgado o Plano de Madri, que teve impacto, sobretudo, nas políticas públicas dos países da América Latina, principalmente no que se refere à proteção dos direitos humanos das pessoas idosas.

O Plano de Madri é um documento amplo que contém 35 objetivos e 239 recomendações para a adoção de medidas dirigidas aos governos nacionais, mas insistindo na necessidade de parcerias com membros da sociedade civil e setor privado para a sua execução. (CAMARANO; PASINATO, 2004, p. 260).

Mas como tratar a questão do idoso na sociedade capitalista ditada pelo valor, na qual o sujeito tem de ser lucrativo, visto muitas vezes como mercadorias, e os idosos muitas vezes são tratados como um ônus dentro desse sistema? Para muitos, envelhecer significa perder o valor, e envelhecer é um processo diferente em cada país e em cada região.

Ao se falar em velhice é preciso olhar a complexidade desse campo e suas múltiplas determinações nas relações com a demografia, com as perdas biológicas, de funcionalidade, e sociais, no processo de trabalho, de trocas em diversos âmbitos (família, amigos, gerações, cultura), e de estilos de vida. (FALEIROS, 2014, p. 6).

Assim, o envelhecimento precisa ser contextualizado pelas mudanças que vive a sociedade, pois cada país envelhece de uma forma, dependendo da correlação de forças existentes, da conformação do Estado na implementação

50 de políticas sociais e do histórico de estruturação da rede de proteção social, que expressam conflitos nas relações de produção e poder.

O envelhecimento implica, ao mesmo tempo, o desenvolvimento pessoal e garantia das condições de vida, da proteção social, da saúde, dos serviços e de um ambiente favorável a ele, conforme preconiza o Plano de Ação Internacional para o Envelhecimento. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2003, p. 35).

Quando falamos sobre envelhecimento, está implícita a relação que se estabelece com a transição demográfica, mas também não podemos esquecer as implicações para as várias esferas da vida em sociedade, na qual particulariza e individualiza a questão do idoso, traz para o seio das famílias a responsabilidade única e exclusiva de cuidar de seus idosos. Essa visão contribui   para   a   chamada   “reprivatização   da   velhice”   (GIACOMIN, 2014), ou seja,   “[...]   que   transformam   a   velhice   numa   responsabilidade   individual   – e, nesses termos, ela poderia então desaparecer do nosso leque de preocupações  sociais”  (DEBERT,  1999,  p.  14).

Fica implícito e explícito que no mundo neoliberal a ausência do Estado na atenção do idoso ratifica ainda mais a marginalização dessa parte da população, que requer uma maior atenção e proteção social, aguçando a questão social, tão representativa no capitalismo.

As políticas sociais surgem para responder as expressões da questão social. Geralmente são criadas e geridas sob a égide do Estado e possuem a contraditoriedade, em sua essência, já que se desenvolvem a partir de demandas evidenciadas e atuam como instrumento de manutenção do modo capitalista de produção. (SOARES; POLTRONIERI; COSTA, 2014, p. 137).

O capitalismo se reinventa e traz explicações para o processo de envelhecimento, e cada Estado adéqua o discurso conforme a sua especificidade. Uma das premissas é a de que os países centrais se desenvolveram antes de envelhecer e os periféricos fizeram o inverso. Isso pode servir apenas para justificar a ineficiência e reforçar a noção de envelhecimento como um problema complexo para o qual muitos países não estão preparados.

Os estudos sobre o envelhecimento populacional já vêm apontando para esse problema. Será cada vez mais comum vermos idosos excluídos de

51 políticas sociais e da atenção do Estado e uma sobrecarga da família e dos seus cuidadores. Dentro desse contexto, Félix (2014, p. 50) traz a discussão da “Economia  do  Care”:

A  “Economia  do  Care”,  como  visto,  é  um  conceito  amplo  por  englobar   todos os tipos de cuidados a partir de sua visão moral dessa atitude. Os cuidados com a criança, o trabalho doméstico, a enfermaria, o porteiro, ou seja, qualquer   “preocupação   com   o   outro”   que   tenha   impacto em uma decisão econômica está acolhida por este conceito. Na  especificidade  de  uma  vida  mais  longa,  portanto,  a  “Economia  do   Care”  abriga  os  cuidados   de  longa  duração  da   pessoa  idosa  dentro   de sua concepção do homo vulnerabilis.

Mas ao mesmo tempo em que está havendo o envelhecimento populacional (melhoria no acesso à saúde, desenvolvimento das ciências da saúde, maior tecnologia, aumento da expectativa de vida), vivemos em um mundo neoliberal de redução do Estado, e prover os mínimos sociais é a retórica da atualidade, diante da multiplicidade de problemas advindos da questão social, de um sistema que exclui, sobretudo os que estão inaptos para o trabalho.

O estudo sobre o envelhecimento busca criar estratégicas do poder público para as decisões de políticas públicas, de empresas e dos indivíduos voltadas a atender as necessidades econômicas da nova dinâmica populacional e reduzir o risco velhice (FÉLIX, 2014). Para tanto, houve um avanço nas legislações e nos pactos internacionais voltados para os direitos dos idosos, como tratamos acima. Porém, sabemos que para uma política e um direito existirem não basta estarem descritos na lei, eles precisam ser apropriados e amplamente discutidos na sociedade. Caso contrário, estão fadados a se transformarem em uma legislação simbólica:

A  legislação  simbólica  é  a  expressão  jurídica  do  comportamento  “para   inglês   ver”,   que   varia   de   uma   maquiagem   jurídica   da   realidade   à   expressão de um desejo da sociedade de que a realidade fosse assim, mas que na prática funciona como mais um engodo ao cidadão. (GIACOMIN, 2014, p. 3).

Há uma tendência nessas novas legislações de responsabilizar o indivíduo  e  a  família  pelos  cuidados  e  aparato  com  o  idoso  (“reprivatização  da   velhice”).  Mas envelhecer significa um novo arranjo familiar para com a pessoa idosa, sobretudo se esta tem alguma dependência. O processo de

52 envelhecimento relaciona-se com a nova configuração das famílias, seja por conta da diminuição de filhos (baixa natalidade), seja pela inserção da mulher no mercado de trabalho. Aí se discute também a relação de gênero, pois historicamente a mulher tem o papel da cuidadora.

Para se pensar o cuidado é necessário que haja a articulação da rede de serviços para atender ao idoso e sua família, sobretudo o cuidado do cuidador.  “A  rede  pessoal  e  primária  das  pessoas  idosas  é  fundamental  para  o   cuidado, mas precisa estar articulada à rede secundária de serviços, que, aliás, precisa funcionar como rede compartilhada de responsabilidades.”  (FALEIROS,   2014, p. 18). Acreditamos que sem essa articulação o idoso e sua família ficarão desprovidos da atenção estatal e fadados a aumentar mais o fosso da vulnerabilidade.

Veremos nos próximos capítulos a relação entre Estado, sociedade e mercado na formulação das políticas sociais, dando destaque a dos idosos, no Canadá e no Brasil, em diferentes conjunturas de sua história e da construção do pacto federativo. A análise é feita sob uma perspectiva crítica, tendo como base a ideia de que as políticas sociais se articulam ao econômico e à dinâmica política do capitalismo e das suas crises e dos movimentos da sociedade.

53

3 A REDE DE PROTEÇÃO SOCIAL CANADENSE