• Nenhum resultado encontrado

EPIGRAMAS FÚNEBRES DEDICADOS AOS FILÓSOFOS MORTOS POR

A última seção deste capítulo se debruça sobre 4 epigramas de Diógenes Laércio, notório biografista do século III d.C.: 104, 105, 106 e 706. Os três primeiros epigramas fazem parte da longa sequência sobre pessoas ilustres que abre o livro VII da A.G., como apontados anteriormente128. Conhecido essencialmente pela sua obra Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, Diógenes Laércio escreveu a obra Panmetros, de que se tem notícia no livro I, 39.

Panmetros, texto que não chegou até os dias de hoje na íntegra, era composto

de epigramas fúnebres sobre homens ilustres, os quais foram incorporados pelo autor ao longo dos dez livros das Vidas. Além desse registro, os editores da Antologia Grega e os da Antologia Planudea compilaram tais epigramas, respectivamente, nos seguintes livros: Antologia Grega, livro VII (trinta e oito epigramas) e Antologia

Planudea, livro II (um epigrama), livro III (um epigrama), livro V (seis epigramas) e livro

VI (um epigrama).

Com relação ao processo editorial – termo anacrônico, porém necessário para a presente analogia –, Diógenes pode ser comparado, em certa medida, ao epigramatista Meleagro. Assim como Meleagro de Gadara no século I a.C. incorporou seus próprios epigramas em uma antologia de epigramas de diversos autores,

inaugurando a ideia de antologia de poesia – como se tem notícia – Diógenes Laércio incorporou seus próprios epigramas nas Vidas. Todavia, enquanto a obra de Meleagro tinha apenas o epigrama como gênero, a obra de Diógenes Laércio tem caráter híbrido por congregar diversas informações procedentes de fontes diferentes e por ser composta de vários gêneros: doxografia, biografia, literatura sobre escolas filosóficas, literatura sobre as sucessões dos filósofos em suas respectivas escolas, coleções de máximas, apotegmas, anedotas, máximas ilustradas por anedotas e breves sinopses. Além disso, há inserções de cartas, epigramas de sua autoria e de outros, citações de poetas e inscrições.

Embora não seja o objetivo aqui tratar da obra de Diógenes Laércio de forma mais detida, é importante ter algumas informações acerca da gênese do gênero biográfico e da composição do livro de Diógenes para se poder entender os epigramas fúnebres do autor que integram a presente seleção de maneira mais completa.

O ponto de partida para se abordar a obra de Diógenes Laércio é ressaltado no início do artigo de BRANDÃO (2013, p. 215-216):

Diógenes Laércio escreve biografia, o que tem diversas implicações: relata a vida do nascimento à morte – uma das definições de biografia – e não só o tempo de cultivo da filosofia; está preocupado com o caráter dos biografados; inclui pormenores anedóticos e de erudição, mas que nada acrescentam à filosofia; integra-se numa longa tradição, grega e romana; segue os métodos e as rubricas tradicionais do género biográfico.

Diante desses elementos, destaque-se a inclusão de pormenores anedóticos, que Brandão acentua não acrescentar nada à filosofia, e a longa tradição do gênero cultivado no mundo antigo. Para BRANDÃO (2013, p. 216), a biografia antiga tinha como uma de suas maiores preocupações registrar o caráter do biografado, o qual era ilustrado por anedotas e ditos próprios. No caso de Diógenes, guardadas as devidas diferenças de biografias para variados tipos de “homens ilustres”, parece que ele evidenciava o caráter dos filósofos em detrimento dos ensinamentos filosóficos: “o carácter, as virtudes e os vícios são ilustrados com exempla – para o que seria necessário recorrer a várias anedotas e ditos célebres que já circulavam em selectas.”

Segundo a síntese sobre a história do gênero biográfico que BRANDÃO (2013, p. 217) faz, entre os gêneros precursores da biografia estão: a saga heroica e as formas líricas voltadas ao tratamento de personalidade, como os hinos, ditirambos,

cantos fúnebres, encômios, epinícios e elegias. O autor aponta ainda que “os discursos e cantos fúnebres são virtuais biografias”, e que “os gregos interessavam- se também pelos relatos sobre heróis e semideuses (...) e sentem curiosidade por poetas do passado.” Depois de elencar maiores detalhes sobre a evolução do gênero, BRANDÃO (2013, p. 225) resume a biografia da seguinte maneira:

Em suma, a biografia aparece em circunstâncias de admiração por determinado personagem carismático (por exemplo Sócrates); o objectivo pode ser panegírico, didáctico, apologético, propagandístico, polémico (no caso de conflito entre escolas filosóficas) ou meramente lúdico. É um género flexível, facilmente adaptável, o que torna difícil a sua definição; apresenta geralmente o biografado do nascimento à morte; é frequentemente usado na esfera ritual e religiosa. A busca dos pormenores anedóticos e curiosidades coloca a biografia no âmbito do que mais tarde se chamou antiquária, uma designação moderna para uma realidade antiga que traduz o interesse por minudências do passado, por eventos fora do vulgar, monstruosidades, histórias locais, listas de magistrados, nomes próprios, leis, costumes, em suma, a erudição como um fim em si.

Diante dos precursores do gênero biográfico, os quais evidenciam o indivíduo, seus feitos e detalhes sobre suas vidas, e diante do caráter de registro do epigrama fúnebre, faz-se deveras pertinente o uso do epigrama fúnebre por parte de Diógenes Laércio para a homenagem aos filósofos nas suas duas obras. Acrescente-se a isso mais dois fatos importantes: 1) o epigrama, no tempo de Diógenes Laércio, era gênero mais que consolidado, tanto em sua vertente grega, quanto na latina, e 2) o subgênero satírico do epigrama já havia também atingido o seu auge. Assim sendo, o uso do epigrama fúnebre tratando das mortes, em certa maneira, anedóticas de alguns filósofos – as quais chegam a ser minissátiras – parece ser a melhor escolha diante da função por ele desempenhada e pelo seu papel dentro do gênero biográfico.

Os epigramas fúnebres compostos pelo próprio Diógenes estão, obviamente, posicionados nos momentos de descrição da morte dos filósofos, ou seja, os epigramas estão em destaque, porquanto “uma das rubricas mais importantes da biografia é seguramente o relato da morte”, e “na morte se revela a plenitude do

ethos”, como afirma BRANDÃO (2013, p. 228). PEIXOTO (2013, p. 87) também

(...) somos tentados a concluir que os relatos sobre as vidas encontram no relato das mortes o seu apogeu, ou que, em outras palavras, os relatos sobre a morte constituem um capítulo necessário à explicitação do valor de uma vida, à justificação do empreendimento nela realizado com a pesquisa filosófica.

Portanto, se o relato da morte é um dos elementos mais relevantes dentro da biografia, e se o epigrama fúnebre a pessoas ilustres são formas de elogio, mesmo que na vertente satírica, os epitáfios de Diógenes Laércio poderiam ser entendidos como a coroação dos seus verbetes, muito embora alguns comentadores depreciem a qualidade dos epigramas, como PATON (1917, vol. II, p. 50, n. 1), ao afirmar, em nota, sobre a série de epigramas fúnebres atribuídos a Diógenes no livro VII:

Os números 83-133 todos derivam das Vidas dos Filósofos de Diógenes Laércio. Os de sua própria composição não são apenas um trabalho muito pobre (talvez os piores versos já publicados), mas são geralmente ininteligíveis com exceção das estúpidas anedotas às quais eles se referem.

Ao abordar a mesma obra que não chegou até os dias atuais, PEIXOTO (2013, p. 80) diz:

Em sua maior parte, os pammetroi diogenianos aludem à morte dos filósofos, operando com esta alusão um juízo sobre suas vidas. Se são poucas as alusões diretas ao que um e outro pensava sobre a morte, ou seja, às suas concepções da morte –, são, contudo, significativos os relatos sobre as suas próprias mortes e parece-nos ser possível, a partir de seu exame, depreender a concepção que se esconde por trás deles.

Assim, PEIXOTO (2013, p. 69) acredita que os elementos que Diógenes Laércio compila em seus relatos biográficos deixariam evidentes as posições filosóficas do autor, pois “o fato de ser uma obra inscrita no duplo horizonte da doxografia e da biografia fez com que o seu autor e as suas próprias concepções do

modus vivendi e do modus operandi dos filósofos e da filosofia fossem, no mais das

vezes, negligenciados ou considerados de menor importância.” Logo, uma concepção própria da filosofia estaria escondida na obra de Diógenes Laércio, a qual era concebida como atividade em que não é possível dissociar vida e pensamento; ou

seja, dentro dessa concepção “o valor de uma filosofia e de um filósofo é tanto maior quanto mais tiver se mostrado sua capacidade de pensar e viver em conformidade com as teses capitais de seu pensamento.” Então, configura-se como τόπος em Diógenes o entrelaçamento de vida e pensamento, o qual seria a justificativa do seu gosto por anedotas e sua curiosidade pelas miscelâneas biográficas, pelo exótico, estranho e inabitual, segundo PEIXOTO (2013, p. 71). Ainda nesse sentido, não se pode deixar de ter em mente que, “no caso dos filósofos, a morte pode ilustrar ou desmentir algum aspecto da filosofia do biografado, com efeitos sobre a avaliação do caráter. Além disso, estava arraigada no imaginário grego antigo a ideia de que as mortes dos poetas e filósofos seriam terríveis e absurdas”, como informa BRANDÃO (2013, p. 228). É exatamente essa questão de descompasso entre princípios filosóficos e a prática deles, por assim dizer, que se reflete na maioria dos epigramas desta seção.

Dois epigramas estudados aqui, o 104 e 105, estão no livro IV das Vidas dos

Filósofos Ilustres de Diógenes Laércio, que trata dos discípulos de Platão na Academia. Já o epigrama 706 está no livro VII, que trata da escola estoica. Por fim, o

último epigrama é o 106 e se encontra no livro X de Diógenes, que versa apenas sobre Epicuro e a sua escola.

Como todos os epigramas estão inseridos no texto corrido de Diógenes Laércio, geralmente eles são antecedidos por quase as mesmas informações que o epigrama contém. Por conseguinte, o epigrama 104 sobre Arcesilau é antecedido pela descrição em prosa de sua morte por excesso de ingestão de vinho puro aos 75 anos de idade. Além disso, Diógenes coloca sempre antes do seu epigrama o registro que ele é de sua autoria: (45) ἔστι καὶ εἰς τοῦτον ἡμῶν·129 104 – DIÓGENES LAÉRCIO130 Ἀρκεσίλαε, τί μοι τί τοσοῦτον ἄκρητον ἀφειδῶς ἔσπασας, ὥστε φρενῶν ἐκτὸς ὄλισθες ἑῶν; οἰκτείρω σ᾽ οὐ τόσσον ἐπεὶ θάνες, ἀλλ᾽ ὅτι Μούσας ὕβρισας, οὐ μετρίῃ χρησάμενος κύλικι. 129 Edição de DORANDI (2013).

130 Seguiu-se aqui a edição de PATON (1917) para o texto grego dos epigramas de Diógenes Laércio,

Arcesilau, diga-me por que tanto vinho puro sem dó

bebeste, como se tivesses escorregado para fora de seu juízo? Tenho dó não tanto porque morreste, mas porque as Musas ultrajaste ao não desejar cálice moderado.

O epigrama em primeira pessoa do singular remete brevemente aos epigramas fúnebres enigmáticos por se abrir com pergunta endereçada ao morto. Diógenes introduz seu epigrama, portanto, com o questionamento da ação que precedeu ou levou Arcesilau à morte: a bebedeira. Esse fato, de acordo com WALTZ (1960, vol. I, p. 100, n.4), teria sido retirado das Vidas de Hermipo de Esmirna.

O primeiro dístico, portanto, poderia caracterizar o início do diálogo com o morto Arcesilau, como temos em alguns epigramas fúnebres analisados anteriormente131. Entretanto, o epigrama de Diógenes não dá voz ao morto, mas

apenas ao suposto transeunte que parece saber do fim que Arcesilau teve. Pode-se inferir isso por ele expressar um certo inconformismo com a razão da causa da morte do filósofo: a bebedeira excessiva que lhe tirou a razão. O questionamento do transeunte no primeiro dístico reflete a incongruência entre o modo de vida de um filósofo, que deveria se afastar de excessos e o que ele fez na prática. Tal questionamento será potencializado pelo desfecho do epigrama. Ao invés de lamentar o morto, como encontrado em epigramas fúnebres tradicionais, o transeunte condena sua imoderação dizendo que não se apieda de Arcesilau por conta da morte, mas porque ele ultrajou as Musas tomando quantidade excessiva de vinho.

Dessa maneira, Diógenes, ao se valer do epigrama fúnebre para retratar a vida de Arcesilau, utiliza da interpelação da lápide ou do morto sem retomar as fórmulas do lamento, mas para expressar a sua reflexão ou opinião contrária às ações de desmedida com o vinho do morto. Ao se valer de pergunta retórica que interpela a lápide ou o morto e imediatamente fornecer a resposta, Diógenes Laércio se aproxima da mesma estratégia retórica de construção de Calímaco em alguns dos seus epigramas fúnebres, como vistos na seção 1 deste capítulo durante a análise do 725.

Ao finalizar o epigrama ressaltando o ultraje das Musas decorrente do desejo por um cálice descomedido como fator de maior πάθος (ἀλλ᾽ ὅτι / Μούσας ὕβρισας,

οὐ μετρίῃ χρησάμενος κύλικι versos 5 e 6), Diógenes poderia estar fazendo referência

ao que foi primeiramente teorizado por Wilamowitz, segundo DORANDI (2013, p.55):

as escolas filosóficas eram sociedades religiosas dedicadas ao culto dos deuses, sendo que no caso dessas escolas as Musas seriam cultuadas de modo mais particular. Tal teoria, embora criticada amplamente, parece que não deveria ser totalmente rechaçada em relação às escolas filosóficas atenienses, como aponta o mesmo autor:

Parece não haver motivo sério para se opor ao reconhecimento das características de thiasos nas escolas filosóficas atenienses. De qualquer maneira, a necessidade de um instrumento legal e religioso de uma associação (koinon) devota das Musas, se desenvolveu com o tempo no caso da Academia: alguns imaginam que ele se tornou necessário na segunda fase da história da escola, no momento em que havia a probabilidade que um filósofo pobre e não-cidadão tal qual Xenócrates se tornasse escolarca.

O próximo epigrama de Diógenes é sobre o filósofo sucessor de Arcesilau na Academia, Lácide, o qual também teria tido o mesmo destino moldado pela imoderação em relação à bebida. No parágrafo onde o epigrama está registrado, Diógenes Laércio acrescenta que a bebida provocou paralisia em Lácide seguida de morte. 105 – DIÓGENES LAÉRCIO καί σέο, Λακύδη, φάτιν ἔκλυον, ὡς ἄρα καί σε Βάκχος ἑλὼν ἀΐδην ποσσὶν ἔσυρεν ἄκροις. ἦ σαφὲς ἦν· Διόνυσος ὅτ᾽ ἄν πολὺς ἐς δέμας ἔλθῃ, λῦσε μέλη· διὸ δὴ μήτι Λυαῖος ἔφυ;

Lácide, rumor também sobre ti ouvi:

Baco te pegou e pelas pontas dos pés ao Hades te arrastou. Era óbvio: quando Dioniso entra em todo o corpo,

os membros liberta. Afinal não é por isso que ele é o Libertador?

O epigrama se inicia com clara referência a rumores sobre a vida de Lácide e com presença palavra φάτιν no primeiro verso. O rumor propriamente dito aparece no segundo verso com metáfora de Baco arrastando o corpo de Lácide pelos pés em direção ao Hades. A imagem de ser arrastado pelos pés dá a ideia do movimento das três fases que o corpo passa até chegar ao Hades, a metáfora maior da morte. WALTZ

(1960, vol. I, p. 101, n.2) ressalta que Baco é geralmente figurado nos monumentos trajando veste feminina sem mangas. Segundo o autor, Diógenes, por escárnio, imagina que Hades puxa o bêbado pelo vestido, como se ele estivesse vestido de Baco.

Conforme o epigrama anterior, o segundo dístico é uma espécie de reflexão da

persona, pois há aqui a retomada da tradição poética grega com a atribuição de

libertador a Dioniso, com a palavra Λυαῖος no v. 4. A reflexão da persona no epigrama de Diógenes, na verdade, é apenas constatação da desmedida do filósofo, que é levado à morte mesmo ciente das consequências da falta de moderação no consumo do vinho. Tal como no primeiro epigrama comentado, a presença de tal reflexão acentua o paradoxo de mortes causadas pelo vinho nas vidas dos filósofos.

O terceiro epigrama de Diógenes Laércio registrado aqui é sobre Epicuro. Este epigrama se destaca em relação aos outros recolhidos nesta seção por duas importantes diferenças no que se refere à constituição dos versos: 1) o epigrama é em terceira pessoa, sendo, porém, o primeiro verso as últimas palavras do morto Epicuro em primeira pessoa e 2) ausência da crítica que arremata os outros epigramas que discutem a diferença entre as doutrinas dos filósofos e as suas condutas, uma vez que neste, o filósofo não é descomedido em relação ao vinho:

106 – DIÓGENES LAÉRCIO

‘χαίρετε καὶ μέμνησθε τὰ δόγματα·’ τοῦτ᾽ Ἐπίκουρος ὕστατον εἶπε φίλοις οἷσιν ἀποφθίμενος·

θερμὴν ἐς πύελον γὰρ ἐσήλυθε, καὶ τὸν ἄκρητον ἔσπασεν, εἶτ᾽ ἀΐδην ψυχρὸν ἐπεσπάσατο. “Adeus e lembrai das doutrinas!” Isso Epicuro disse por último aos amigos ao morrer.

Tendo entrado em uma banheira quente, bebeu vinho puro e depois uma morte gélida bebeu.

O primeiro verso retrata em discurso direto as últimas palavras de Epicuro que se dirige a um grupo de pessoas, χαίρετε καὶ μέμνησθε, e que é corroborado no verso seguinte com a palavra φίλοις. Epicuro exorta seus amigos em seu leito de morte a se lembrarem de sua doutrina, a qual não cabe ser exposta no epigrama devido a sua exiguidade por princípio. Assim, Diógenes se vale da característica principal do

epigrama – a concisão – e também do conhecimento prévio do seu leitor, ao omitir o que seria essa τὰ δόγματα, ou seja, os princípios epicuristas de controle das paixões.

Outro elemento importante na ambientação do epigrama sobre a morte junto aos amigos parece ser a prática cotidiana do Jardim de Epicuro descrita por DORANDI (2013, p. 57):

A sua organização, mais do que aquela de qualquer outra escola, era baseada nos princípios de emulação, comemoração e imitação. Uma vez que as grandes aspirações da filosofia epicurista eram a imitação da divindade, a emulação daqueles que alcançavam o estado de perfeição máxima na imitação dos deuses era, para os alunos no Jardim, uma consequência primária e vital. Já entre as primeiras gerações dos epicuristas a ideia de

kathegemones deu origem ao modelo ideal de uma “vida compartilhada”

(contubernium), a qual desenhou-se como “muitos membros de um único corpo” (...). O ideal de liberdade de expressão (parhesia) entre professores e alunos, a base de um estilo de vida comum inspirado pelos propósitos pedagógicos de amizade, bondade e boa vontade prevaleciam.

Tendo isso em vista, embora haja a presença do vinho no epigrama fúnebre de Epicuro, o mesmo não foi a causa da morte do filósofo, sendo apenas uma das últimas sensações sentidas pelo corpo do filósofo. O segundo dístico, portanto, é apenas o relato das ações que sucederam as últimas palavras do filósofo e mais uma vez não registram as opiniões da persona, provavelmente porque não há, por parte de Epicuro, nenhuma transgressão a ser debatida, já que sua morte parece não ter sido provocada por bebedeira. O único recurso estilístico passível de se notar no dístico final é a presença da antítese θερμὴν πύελον e ἀίδην ψυχρὸν que trata também da diferença entre o mundo dos vivos e dos mortos pela temperatura corpórea.

O último epigrama desta seção é sobre Crisipo:

706 – DIÓGENES LAÉRCIO ἰλιγγίασε Βάκχον ἐκπιὼν χανδὸν Χρύσιππος, οὐδ᾽ ἐφείσατο

οὐ τῆς στοᾶς, οὐχ ἧς πάτρας, οὐ τῆς ψυχῆς, ἀλλ᾽ ἦλθε δῶμ᾽ ἐς Ἀΐδεω.

Crisipo nada poupou:

nem o pórtico, nem a terra natal, nem a alma, mas foi para a casa de Hades.

Como já dito acima, antes de Diógenes colocar seu epigrama ele aponta a sua

σφραγίς. No caso do verbete sobre Crisipo o texto grego registra: καὶ ἔστιν ἡμῶν παίγνιον εἰς αὐτόν. Ao utilizar o termo παίγνιον para designar o seu epigrama,

Diógenes poderia querer expressar alguma reflexão poética? Crê-se que sim, pois esse conceito proveniente da poesia helenística se perpetua ao longo do tempo, desemboca no lusus da poesia latina e segue como uma das características do gênero epigramático nos séculos subsequentes.

Vale notar que um século antes das composições de Diógenes Laércio, o termo

παίγνια132 é utilizado em epigrama de Leônidas de Alexandria também como uma

espécie de reflexão metapoética:

A.G. VI – 322 – LEÔNIDAS DE ALEXANDRIA

τήνδε Λεωνίδεω θαλερὴν πάλι δέρκεο Μοῦσαν, δίστιχον εὐθίκτου παίγνιον εὐεπίης.

ἔσται δ᾽ ἐν Κρονίοις Μάρκῳ περικαλλὲς ἄθυρμα τοῦτο, καὶ ἐν δείπνοις, καὶ παρὰ μουσοπόλοις. Veja o trabalho da Musa vigorosa de Leônidas, este dístico lúdico e astuto.

Este vai ser um lindo brinquedo no tempo de Marcos e nos banquetes junto aos amantes das Musas.

Diógenes, portanto, ao se valer do termo παίγνιον no momento da σφραγίς do seu epigrama fúnebre para Crisipo, parece revelar que seus epigramas nada mais são do que joguetes com os supostos fatos das vidas dos filósofos, o que poderia também revelar sua intenção lúcida e não de construção de uma poesia elevada, esperada pelos comentadores como Paton, como afirmado anteriormente. Mesmo já tendo descrito a forma da morte de alguns filósofos nos trechos do verbete que antecedem os epigramas, Diógenes Laércio usa o gênero epigramático em suas composições

132 Para uma breve reflexão sobre o termo e a sua transposição para a poesia latina, cf. SULLIVAN

também como forma de mostrar sua erudição e de dar voz às contradições que os dados biográficos poderiam explicitar.

Nesse último epigrama, percebe-se o tom jocoso no segundo dístico, pois para

Documentos relacionados