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Capítulo 5 – Inferências sobre os processos de (inter) compreensão a partir de enunciados de sujeitos afásicos

2. Dados de episódios interativos com sujeitos fluentes

2.3. Episódio 8 (Sujeito AC)

Contexto: Na sessão de 23 de abril 2011, AC conta a Irf sobre a sua deficiência auditiva. Ele usa aparelho e a entrevista foi realizada antes de ele e sua esposa serem avaliados no CEPRE.

TURNO INTERLO-

CUTOR ENUNCIADO VERBAL ENUNCIADO NÃO-VERBAL OBSERVAÇÕES SOBRE OS

ENUNCIADOS

1 Irf

O senhor usa há quanto tempo?

2 AC

Faz pouco tempo que eu tô usando ele. 3 Irf Quanto tempo? 4 AC Há... Há... Há... 5 Irf

Mais ou menos? Uns dez anos, cinco anos, dois anos?

6 AC Ahã... 7 Irf Mais ou menos um mês? Aponta para a orelha esquerda 8 AC É... mais ou menos um mês 9 Irf Un-hú

10 AC Então, eu deixei de usar esse aqui e usava só esse aqui. O que não era pra ser usado, usava só esse aqui

Aponta para a orelha direita; depois aponta para a orelha esquerda. Aponta, novamente, para a orelha esquerda.

11 Irf Entendi. E o senhor começou a perceber que a audição da orelha esquerda começou a ficar pior que a orelha direita, mas a direita não melhorou. E Ela ficou um pouco melhor comparada com a esquerda depois do AVC

153 12 AC Exatamente. Então, por isso

eu não usava ele, entendeu?

Aponta para orelha direita

13 Irf Ahã.. Mas chegou a colocar e a incomodar o senhor?

14 AC Ahã... Me incomodava e.. Deixa pra lá.

Aponta para a orelha direita

15 Irf Como era o incômodo? Que tipo de incômodo que era?

16 AC É... É o coiso atrapalhava a gente...

17 Irf Atrapalhava... Mas tinha um zumbido... um barulho?

18

AC

Não, nada

19 Irf Só que o senhor começou a escutar mais do que antes, o que era um barulhinho virou um barulhão?

Aponta para a orelha direita

20 AC Não, a mesma coisa. O que atrapalhou mais foi esse aqui porque era pra mim usar. O médico falou: “usa só o que tá te atrapalhando”. ,É essa aqui. Então... Portanto... Que um é diferente do outro.

Aponta, primeiro para a orelha esquerda e depois para a direita

21 Irf E a perda é diferente, é? As audiometrias, os exames de audição estão todos no HC?

22 AC Não sei. Tá.

23 Irf Não tem nenhum exame em casa, tem?

24 AC Não, não, não

25 Irf

.... Silêncio. Irf olha

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Este dado visa ilustrar um caso onde observamos de forma mais evidente a relação entre alguns aspectos da dificuldade de compreensão de natureza linguístico- cognitiva, visto que AC tem uma afasia decorrente de lesão fronto-têmporo-parietal e também considerando-se seu déficit auditivo prévio ao AVC.

Em vários enunciados, principalmente nos primeiros turnos, fica evidente que AC parece não escutar muito bem o que Irf lhe pergunta. Em um dos enunciados, por exemplo, ela pergunta há quanto tempo ele usa o aparelho e ele não responde: “há... há... há...”. Para ajudá-lo, ela diz: Mais ou menos? Uns dez anos, cinco anos, dois anos? E ele diz: “A..hã”. Ou seja, não responde. Novamente, ela insiste: Mais ou menos um mês? E ele diz: “É. Mais ou menos um mês”, o que provavelmente não correspondia aos fatos, àquela época.

AC inicia a sua narrativa falando do “problema” que tem na orelha direita, constatado no exame de audição. Segundo ele, após o evento neurológico (o AVC), o problema “passou para o lado esquerdo”. Ele então deixou de usar o aparelho na orelha direita (antigamente relata que era a pior orelha) e passou a usar o aparelho na orelha esquerda. Comparativamente, acha que a audição, portanto, piorou no lado esquerdo.

No entanto, ao fazermos o exame de audição em 2012, constatamos uma perda auditiva com uma configuração ascendente da curva audiométrica em ambas as orelhas, dificuldade para discriminar sons na logoaudiometria e ausência do reflexo do músculo do estapédio em algumas frequências, compatível com a literatura. Segundo Colletti (1992), a ausência do reflexo estapediano pode levar a uma alteração da discriminação auditiva.

26 AC

Um dia tava. Não sei. Porque tava lá. Aí eu passei no aparelho dela lá... Não no no na... Não no médico, nela lá...

27

Irf

Fez o exame com ela? Irf se refere a fonoaudióloga do HC

155

Esta queixa de AC provavelmente possa ser explicada pela dificuldade maior deste sujeito para compreender a fala do outro. Compreender em vários sentidos. Em primeiro lugar, devido a uma dificuldade na discriminação auditiva, decorrente do mascaramento causado pelas frequências graves, que estariam preservadas nos sons agudos.

No arco reflexo contralateral, o estímulo sonoro sentido por AC ativa as orelhas externas, médias e internas, o nervo coclear, o núcleo coclear do mesmo lado e cruza a linha média; ativa o complexo olivar superior e o núcleo motor do nervo facial contralateral à orelha estimulada, até provocar a contração do músculo estapediano contralateral. Podemos inferir que é nesta passagem, após o cruzamento da linha média, que acontece a interrupção do estímulo provocado pela isquemia, na região têmporo-parietal, e consequentemente uma dificuldade na discriminação auditiva.

Além disso, haveria comprometimento de outros aspectos da compreensão propriamente dita, derivadas de sua lesão frontal, mas também devido às características de natureza subjetiva. AC parece ser um senhor de gênio bastante temperamental, conservador, um tanto machista, o que o leva simplesmente a não dar muita atenção a alguns tópicos discursivos iniciados por outros sujeitos ou a iniciar conversas paralelas enquanto outros falam, como observamos nas sessões do CCA. Ele chega a dizer que não se interessa, que não quer saber e às vezes é até meio rude com seus interlocutores.

Se concebemos a (inter) compreensão como um trabalho em que ambos os parceiros da comunicação verbal operam sobre os enunciados um do outro para construir a significação, podemos concluir que no caso de AC, muitos processos interativos ficam comprometidos sempre que não há, por parte deste sujeito, o desejo de colocar-se na escuta do outro – seja ele afásico ou não-afásico.