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Episódios de caráter biográfico

No documento SÉRGIO RIBEIRO DE ALMEIDA MARCONDES (páginas 100-103)

“O cientista do povo”: Gastão Pereira da Silva e a divulgação da psicanálise em O Malho

3.3. Episódios de caráter biográfico

No quarto artigo assinado em O Malho, Gastão Pereira da Silva introduz o tratamento de figuras notórias, do passado ou contemporâneas, geralmente com a narração de episódios curiosos da vida dos personagens tratados. O artigo, de tom humorístico, fala de uma alucinação que o autor teria tido sobre Sócrates e Platão504. O autor conta que “procurava não pensar em

cousa alguma, quando, no tablado do meu subconsciente, surgiu uma figura austera que eu

501 Ibidem.

502 SILVA, Gastão Pereira da. Curiosidades da psicanálise. O Malho, n. 225, 23/09/1937, p. 32. 503 Ibidem.

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conhecia muito através dos seus ensinamentos e das gravuras antigas em certos livros clássicos”. A figura se identifica como o filósofo grego Sócrates, e demonstra sua mágoa com os acontecimentos: “um dia, quando eu pensei ‘conhecer a mim mesmo’, quando julguei-me credor das mais justas honrarias e recompensas, deram-me cicuta!”. A seguir, Sócrates conclui que nem a verdade existe nem ele mesmo existiu, quando uma outra voz entra na discussão, afirmando claramente o contrário; quando Sócrates pergunta quem era o outro participante, ele responde “Platão”, o que leva Sócrates a não dizer mais nada e desaparecer “em soluços desesperados”505. Podemos perceber neste curto artigo um dos primeiros exemplos de um dos

temas mais recorrentes no discurso de Gastão: a identificação com uma figura não valorizada pelos seus contemporâneos, que, mesmo julgando-se devedora “das mais justas honrarias e recompensas”, acaba sendo morta ou então condenada ao esquecimento, da mesma maneira que o autor se refere a si mesmo em outros textos.

Na edição 175, sob o título de “A página que Liszt não escreveu”506, Gastão se refere a

outro episódio que teria acontecido com figuras notáveis: uma anedota segundo a qual Ludwig van Beethoven havia beijado Franz Liszt quando este tinha nove anos e acabara de tocar para uma grande plateia em Viena. Segundo Gastão, Liszt era “predestinado”, pois a “música salta- lhe dos dedos nervosos, imensa, profunda e grandiosa, sem ele mesmo saber porque”. Gênio precoce, ele desafiava a ciência e complicava “os capítulos da mais profunda psicologia”. O beijo de Beethoven teria sido “um beijo de luz”, representando “a mensagem divina de sua glória!” A conclusão do artigo, justificando seu título, é que, apesar deste episódio ter sido “sem dúvida alguma, o dia mais bonito da vida do grande e genial compositor [Liszt]”, ele não o teria transformado em música: “Oh, como seria bela a partitura lírica do ‘Beijo de Beethoven!’”507

Um detalhe curioso é que este mesmo episódio foi tema do último artigo assinado por Gastão em O Malho, em 1951508, com outro título e texto praticamente idêntico, sendo apenas o último

parágrafo diferente: no artigo de 1951, Gastão conclui o texto com o comentário do professor de piano de Liszt, Czerny, dizendo-lhe que, por ter sido beijado por Beethoven, ele se tornaria “melhor pianista do que nós todos”509. Mas as mesmas referências à precocidade do gênio

desafiando a ciência e a psicologia estão presentes, indicando não ter havido mudança no pensamento do autor a esse respeito após quinze anos.

505 Ibidem.

506 Idem. A página que Liszt não escreveu. O Malho, n. 175, 08/10/1936, p. 11. 507 Ibidem.

508 Idem. O beijo de Beethoven. O Malho, n. 140, 09/1951, p. 41. 509 Ibidem.

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Em 1944, Gastão escreveu um texto extenso sobre Francisco Serrador, o criador da Cinelândia510. Colocado em uma página que tem o título de “Cinearte. O suplemento

cinematográfico d´O Malho”, o artigo recuperava os esforços de Serrador como o “precursor do cinema falado entre nós”, através da exibição de filmes, desde 1907, com orquestra e cantores colocados atrás da cortina511.

Desde o início da década de 1930, Gastão participava ativamente do cenário teatral da cidade, tendo parte de sua clientela e grandes amizades, como Procópio Ferreira e Mario Lago512, se originado deste meio teatral, segundo sua filha513. Estudo com base psicanalítica da

vida do ator e diretor de teatro Procópio Ferreira514, então ainda em plena atividade, a biografia

escrita por Gastão, Um para quarenta milhões, foi um dos livros mais vendidos do autor, que também traduziu várias peças de teatro para a companhia de Procópio ao longo das décadas de 1930 e 1940515. Outro indicador da amizade que havia entre os dois são as dedicatórias trocadas.

No livro O ator Vasques (1939), de autoria de Procópio Ferreira, a dedicatória é para Gastão: “Meu querido Gastão Pereira da Silva: Você, que é todo inteligência e bondade, recolha, em seu coração, a memória deste outro homem também inteligente e bom − o nosso grande Vasques516. Procópio”517. De maneira correspondente, a quinta edição de Para compreender

Freud (1940) é dedicada a Procópio: a “melhor homenagem” a um “artista genial – amizade que tanto me orgulha, e que o tempo cada vez mais confirma”518.

Gastão escreveu vários outros livros biográficos. Em 1937, publicou a biografia de Oswaldo Cruz, cujo título deixa claro as intenções de seu autor de narrar a vida do sanitarista de forma heroica e romanceada: O romance de Oswaldo Cruz. Muitas das biografias escritas por Gastão posteriormente tratam de figuras políticas brasileiras: os ex-presidentes da

510 Francisco Serrador Carbonell (1872-1941) foi um empresário espanhol, construtor de vários cinemas no Rio de

Janeiro, que, em 1921, deu início às obras para a urbanização do bairro denominado posteriormente de Cinelândia. Gastão Pereira da Silva publicou uma biografia de Serrador em 1940, pela Editorial Vieira de Melo. Segundo o jornal A Noite, todos os exemplares desta biografia foram comprados pela família de Serrador e depois doados para a esposa do então prefeito da cidade, Henrique Dodsworth, para que os livros fossem encaminhados às escolas municipais (A Noite, 08/08/1944, p. 5).

511 SILVA, Gastão Pereira da. O precursor do cinema falado entre nós. O Malho, n. 49, 02/1944, p. 47.

512 Mário Lago (1911-2002) foi ator, compositor e radialista, tendo atuado no teatro de revista carioca na década

de 1930 e na Rádio Nacional nas décadas de 1940 e 1950, espaços onde provavelmente encontrou Gastão Pereira da Silva.

513 RUSSO. Entrevista com Dona Nilza. op. cit.

514 Procópio Ferreira (1898-1979) foi um dos atores cômicos mais populares do teatro brasileiro nas décadas de

1930 e 1940, tendo fundado uma companhia teatral em 1924, para a qual Gastão traduziu várias peças. Ver PRADO, Décio de Almeida. Procópio Ferreira. op. cit.

515SCHMIDT, Bernardo. “Bibliografia comentada de Procópio Ferreira”. In O Patativa, 10/12/2009.

516 Francisco Corrêa Vasques (1839-1892) é considerado o maior ator cômico brasileiro do século XIX (Ver

SCHMIDT. “Bibliografia comentada de Procópio Ferreira”. op. cit.).

517 FERREIRA, Procópio, apud SCHMIDT. “Bibliografia comentada de Procópio Ferreira”. op. cit.

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República Velha Prudente de Morais (Prudente de Morais, o pacificador, 1938) e Rodrigues Alves (Rodrigues Alves e sua época, 1940), o brigadeiro Eduardo Gomes (lançada durante a campanha eleitoral de 1945, na qual o brigadeiro concorria a Presidente da República) e os constituintes de 1946, num livro que saiu em 1947 pela Gráfica Tupi. Mas as exceções são significativas, e incluem personalidades de campos muito diferentes de atuação: além de Oswaldo Cruz, Freud (1940), o já citado Francisco Serrador (1940) e o pintor Almeida Júnior (1946). Percebe-se na sua escolha de nomes para biografar o mesmo ecletismo presente em seus artigos em revistas, onde muitas vezes Gastão também redigia curtos perfis biográficos.

No documento SÉRGIO RIBEIRO DE ALMEIDA MARCONDES (páginas 100-103)