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EPISTEMOLOGIA DA PULSÃO: FANTASIA, CIÊNCIA, MITO

Gilson Iannini  

     

Então é preciso mesmo que a feiticeira intrometa-se

(GOETHE)

AS AMORAS DE FALSTAFF E O PÃO DA GUERRA

Era a guerra. O continente que melhor havia implementado o programa das Luzes, não apenas com inimagináveis avanços industriais e científicos, mas sobretudo em que as mais altas realizações artísticas e culturais haviam sido conquistadas, submergia numa noite que parecia não ter fim. Os anos que precederam a eclosão do conflito experimentavam uma cisão profunda: de um lado, fermentava o modernismo estético e social de inclinação cosmopolita e internacionalista, de outro lado, ganhavam fôlego ideologias nacionalistas. As primeiras notícias da guerra foram recebidas com certo entusiasmo pelas reinantes ideologias nacionalistas, saudosas das antigas virtudes heroicas, ciosas de mostrar a superioridade cultural em relação ao vizinho decadente. Nunca a expressão freudiana “narcisismo das pequenas diferenças” havia ganhado contornos tão sombrios. Antes que mostrasse sua verdadeira face, a iminência da guerra inflara parcela considerável da população com um ardor febril, e a deflagração do conflito fora saudada por

alguns eminentes intelectuais, cientistas, artistas, além, é claro, da grande imprensa. No famoso Manifesto de Fulda, nomes de peso da Ciência declararam seu incondicional apoio às ações militares alemãs. O Manifesto foi assinado por diversos ganhadores de prêmios Nobel. Entre seus 93 signatários, destacam-se nomes como Max Planck e Wilhelm Wundt. Alguns poetas também cantaram seu apoio à guerra. Contudo, a poesia modernista, em suas diferentes vertentes, foi essencialmente antibélica. Nisso, o diagnóstico dos poetas fora mais certeiro do que o dos demais intelectuais.68 Em todo caso, não demoraria muito para que toda aquela

febre fosse transformada em profunda desilusão. A Europa assistiria atônita a um desastre sem precedentes, em que o poderio das máquinas pela primeira vez era utilizado de maneira ostensiva, ocasionando perdas humanas incalculáveis.

Em Viena, Freud vivenciava a guerra com intensa apreensão e desilusão. Três de seus filhos combateram; dois deles, Ernst e Martin, em diversas batalhas. A duração inesperada dos confrontos iniciados em 1914 deixaria Viena numa situação de escassez de toda ordem. Não demoraria muito para que a família Freud precisasse recorrer à ajuda de amigos estrangeiros, que enviavam alimentos, charutos e outros itens. Perto de completar 60 anos de idade, quando a guerra foi deflagrada Freud não tinha muito que fazer, senão continuar sua atividade clínica, ou o pouco que restou dela naqueles tempos difíceis, dedicar-se às igualmente poucas tarefas editoriais que ainda restavam e escrever. Escreveu de maneira abundante. Não escreveu apenas textos psicanalíticos diversos e farta correspondência, mas até sobre o próprio fenômeno da guerra. Nos últimos tempos daquele período não havia nem mesmo aquecimento em seu escritório, o que tornava a tarefa de escrever praticamente impossível, principalmente nos meses frios. Foi durante essa longa noite da guerra que alguns de seus mais brilhantes ensaios e mais sistemáticos estudos foram escritos.

Interessado em investigar as consequências psíquicas da guerra, Freud examina a desilusão e a atitude diante da morte. Até mesmo a imparcialidade da ciência, afirma, é ameaçada pela devastação psíquica da guerra. Nosso intelecto só trabalha de maneira fiável quando protegido das ingerências do afeto. Nesse sentido, escreve:

[...] logo, argumentos lógicos seriam impotentes perante os interesses afetivos, e, por isso, a contenda com fundamentos [Gründen], que segundo Falstaff são tão comuns como as amoras, é tão infrutífera no mundo dos interesses. [...] A cegueira lógica que esta guerra magicamente provocou, justamente nos nossos melhores concidadãos, é, portanto, um fenômeno secundário, uma consequência da excitação dos sentimentos que esperamos poder ver desaparecer junto com ela (FREUD, Gesammelte Werke, t. X p.

339).69

A alusão à celeuma em torno do Manifesto de Fulda parece bastante clara. Em contrapartida, a guerra desnuda as camadas de cultura que se depositaram nos homens pelo processo civilizatório e “faz vir à tona o homem primitivo em nós” (FREUD, G.W., t. X p. 354). Ao investigador da

subjetividade humana, uma dupla injunção impõe-se imediatamente: se, de um lado, a imparcialidade científica parece temporariamente ameaçada, por outro lado, o objeto da psicanálise aparece de maneira mais crua e nítida, uma vez que as camadas civilizatórias parecem descamar com muito mais facilidade.

É nesse contexto que Freud resolve escrever sua Meta-psicologia, conjunto planejado de 12 textos que visavam formalizar e consolidar quase duas décadas de atividade clínica e de prática teórica. A iniciativa era tanto mais urgente quanto as próprias guerras intestinas da Psicanálise pareciam querer diluir numa psicologia geral algumas das suas descobertas fundamentais. Freud concentrou seus esforços contra os desvios efetuados por Adler e, principalmente, por aquele que um dia havia sido chamado de príncipe herdeiro, Jung. Adler teria reformulado as ideias de Freud numa espécie de “psicologia geral, reacionária e retrógrada” (GAY, 1989, p. 213),

que praticamente desconsiderava o caráter pulsional da sexualidade e o inconsciente. Jung, durante viagem a Nova York, se gaba do sucesso de sua conferência, justamente por ter apresentado uma versão da Psicanálise que fazia economia da sexualidade infantil e do Édipo. Pouco depois, em 1913, em Londres, anuncia outra conferência, ainda com o título de Psicanálise, em que pretendia dar seguimento ao seu programa deliberado de desvincular a libido e a sexualidade, negligenciando justamente o caráter pulsional da sexualidade. Nos anos seguintes, Jung passa a usar o título de

“psicologia analítica” para designar as reformulações que ele propunha à doutrina freudiana. Aos poucos, a afinidade com a experiência religiosa e com uma certa abordagem da mitologia forneceria a Jung toda a trama conceitual dos arquétipos e do inconsciente coletivo. Viena declara guerra a Zurique.

As armas de que Freud dispunha eram os conceitos fundamentais, que precisavam agora ser dispostos de uma forma capaz de garantir a especificidade da Psicanálise, delimitando seu discurso e sua prática em relação a outras práticas. Preocupado não apenas com a manutenção de certos princípios teóricos, mas fundamentalmente com a sustentação de certos preceitos éticos e procedimentos clínicos, Freud resolve escrever uma síntese de seus achados metapsicológicos. Tudo indica que ele planejara um livro coeso e sistemático. Como era de costume, comunicou o projeto em diversas cartas e fez circular um ou outro manuscrito entre seus discípulos. Além disso, resolveu publicar aos poucos os capítulos que redigia, na forma de artigos. Os três primeiros foram escritos num ritmo frenético, pouco depois de iniciada a Grande Guerra. Em poucos meses, havia completado alguns de seus mais conhecidos ensaios metapsicológicos. No final de abril de 1915, informa a Ferenczi que havia concluído os capítulos sobre as pulsões, sobre o inconsciente e sobre o recalque, que sairiam ainda naquele ano na Internationale Zeitschrift für

Psychoanalyse. Essa disposição para o trabalho teórico, que ele próprio

admitia ser incomum, podia ser atribuída a vários fatores, entre eles “a dureza do pão de guerra”, como confessa em carta a Ferenczi (GAY, 1989,

p. 334).

Dos 12 artigos planejados inicialmente, apenas cinco foram efetivamente concluídos e publicados. O destino dos outros sete é incerto, provavelmente destruídos pelo próprio autor.70 De toda forma, é digno de

nota que o primeiro artigo seja dedicado justamente às pulsões. Esse artigo deveria servir como a porta de entrada no edifício da Psicanálise. Em carta a Lou Andreas-Salomé, informa entusiasmado que o livro consistiria em “12 ensaios, introduzidos por pulsões e seus destinos”, sem aspas (GAY,

1989, p. 334). Pela primeira vez, o conceito de pulsão aparece em seu justo lugar: tão ou mais fundamental do que o próprio conceito de inconsciente. Isso porque a pulsão é “anterior” ao próprio aparelho psíquico: ela é o elemento de ligação entre o corpo e a psique. Seu caráter é fronteiriço,

limítrofe, como não cansa de insistir Freud, com metáforas que poderiam claramente remeter a guerras de trincheira. A pulsão opera numa certa zona de indeterminação, de indistinção entre corpo e aparelho psíquico: embora sua fonte seja sempre somática, só conhecemos dela seu representante psíquico, conforme estabelecido desde os Três ensaios sobre a sexualidade (1905). É nesse hiato, nessa fronteira que se situa a pulsão. A pulsão é, tanto do ponto de vista lógico quanto do topográfico, anterior até mesmo ao próprio sistema inconsciente, até mesmo a qualquer inscrição no aparelho psíquico ou neuronial. Por isso, no artigo metapsicológico sobre as pulsões, Freud insistia quanto a seu caráter de conceito fundamental e de conceito fronteiriço, limítrofe. O que não o impede de admitir, no mesmo gesto, o caráter “convencional” e até mesmo “obscuro” de seu conteúdo semântico, que guarda ainda alguma indeterminação e permanece aberto a futuras reformulações.

Nisso, porém, continua, o conceito de pulsão não diferiria nem mesmo dos conceitos mais fundamentais da Física: embora estes parecessem firmemente estabelecidos, àquela altura sofreriam uma profunda modificação de seu conteúdo.71 Com efeito, no início do século XX,

conceitos fundamentais da mecânica newtoniana sofreriam uma profunda alteração. Ernst Mach foi um dos pioneiros, Albert Einstein, um dos mais célebres. Freud não alude explicitamente a nenhum cientista em particular, mas compara, tacitamente, sua atitude científica diante da construção conceitual com a atitude do cientista. Não demoraria muito para Freud comparar-se, em 1919, a Mach a propósito de uma experiência inquietante de percepção da própria imagem. Explicitamente, faz de Mach seu “duplo” diante de uma inquietante experiência; uma experiência, justamente, do duplo (cf. Unheimliche). Dentro de alguns anos, Freud e Einstein se encontrariam em Berlim. Em carta a Ferenczi, o psicanalista teria afirmado que “ele entende tanto de Psicologia quanto eu entendo de Física, de modo que tivemos uma conversa muito agradável”. Em seguida, os dois eminentes cientistas trocariam alguma correspondência, a propósito da guerra.

Mas essa não foi a única ocasião em que Freud comparou sua atitude com a atitude de eminentes cientistas. Ainda durante a guerra, já quase ao seu final, escreve um texto combativo que pretende defender a Psicanálise contra alguns de seus críticos. Sua estratégia argumentativa é a de associar

as resistências à Psicanálise não apenas a fatores lógicos ou epistemológicos, mas também, e talvez sobretudo, a fatores afetivos. Ao afirmar que “o eu não é o senhor em sua própria casa” (FREUD, G.W., t. XII,

p. 11), Freud se junta a Copérnico e a Darwin, que teriam retirado a Terra e o homem de suas respectivas posições de exceção em relação ao determinismo que a ciência supõe. Com efeito, Freud reclama para si uma filiação científica: esse é o sentido maior desse mito de origem da Psicanálise, dessa parábola de fundação. Logo depois de situar as descobertas da Psicanálise na esteira do astrônomo e do naturalista, no parágrafo imediatamente seguinte, presta homenagem a um filósofo, Schopenhauer, que por pouco não qualifica como seu predecessor. Evidentemente, não sem afirmar imediatamente a especificidade de sua própria empresa: ao passo que o filósofo se contenta em afirmar abstratamente as teses concernentes à impotência da consciência e à importância da sexualidade, a Psicanálise se ocupa de “demonstrá-las em questões que tocam pessoalmente cada um individualmente e os força a assumir alguma atitude em relação a esses problemas” (FREUD, G.W., t. XII,

p. 12). Notemos que o que aqui se propõe poderia parecer, aos olhos de um cientista, uma estranha coabitação: um regime próprio à demonstração – uma demonstração, em sentido estrito, não envolve assentimento – e a exigência de posicionamento subjetivo, na qual podemos reconhecer o retorno até certo ponto inesperado de uma dimensão retórica. O que exige do leitor não um rebaixamento de sua atividade crítica, como pensava Wittgenstein, mas justamente o contrário:72 que a avaliação fosse feita em

nome próprio, e não apenas em nome de parâmetros metodológicos ou epistemológicos preestabelecidos, cuja natureza também incerta e transitória as recentes mudanças na Física comprovariam. Mas o que nos interessa aqui é retomar a maneira como Freud resume o que ele mesmo chama de as duas descobertas fundamentais da Psicanálise: “[...] que a vida pulsional da sexualidade em nós não se deixa domar plenamente e que os processos anímicos são em si mesmos inconscientes, não se tornando acessíveis ao eu e não lhe sendo submetidos a não ser através de uma percepção incompleta e não fiável” (FREUD, G.W., t. XII, p. 11).

O texto não poderia ser mais claro: pulsão e inconsciente são os dois conceitos mais importantes da Psicanálise. É bastante comum que livros de introdução e de divulgação apresentem Freud como o descobridor do

inconsciente. Embora verdadeira, essa descrição é, no mínimo, incompleta. Pois a especificidade do inconsciente freudiano aparece em toda sua radicalidade apenas quando articulada com a centralidade do conceito de pulsão. É o que podemos constatar ao retornarmos à saga dos artigos que deveriam compor a Metapsicologia, tal como sonhada entre 1914 e 1915. Ao buscar uma apresentação sistemática dos conceitos fundamentais da Psicanálise, aqueles que emprestam inteligibilidade à própria clínica e que conferem a identidade epistemológica à Psicanálise, Freud prioriza o conceito de pulsão. Ao perceber os descaminhos que arriscavam diluir a Psicanálise numa psicologia geral reacionária ou mística, Freud não apenas coloca lado a lado inconsciente e pulsão, mas também confere à pulsão um estatuto privilegiado. Não é difícil perceber essa estratégia como um gesto, ao mesmo tempo, epistemológico e político.

O caráter fronteiriço, limítrofe do conceito de pulsão, deve-se à sua anterioridade lógica ou mesmo topográfica quanto ao sistema inconsciente. Isto é, sua ligação com as excitações endossomáticas, das quais o aparelho não tem como se abrigar, é o fator que justifica por que a teoria das pulsões possui um caráter ainda mais fundamental. Não por acaso, o conjunto dos 12 artigos metapsicológicos deveria ser precedido pela análise dos destinos das pulsões. Na própria forma planejada do livro, o texto sobre as pulsões teria uma posição de destaque, funcionando como uma espécie de prólogo, como algo que vem antes (prós) do discurso (lógos). As pulsões e seus

destinos é o prólogo que o próprio Freud planejou para sua Metapsicologia.

Não por acaso, a página introdutória do referido ensaio é uma verdadeira carta epistemológica, que serve não apenas como porta de entrada a esse texto, mas como uma espécie de introdução à própria Metapsicologia, na medida em que o referido artigo seria essa espécie de prólogo dos artigos reunidos. Tal como o Discurso do método servia a Descartes como uma espécie de introdução metodológica a seus textos científicos, essa página e meia de Freud, aparentemente despretensiosa, funciona não apenas como uma reflexão acerca da cientificidade da Psicanálise, mas sobretudo como uma preparação do leitor para a introdução do conceito de pulsão. De fato, ela prepara a disposição intelectual e afetiva que o leitor deve ter quanto ao estatuto epistemológico dos conceitos fundamentais da Psicanálise. Ali são estabelecidos, com clareza e concisão invejáveis, alguns aspectos essenciais quanto à maneira freudiana de pensar as continuidades e as

descontinuidades com a ciência. De modo especial, quanto à maneira como lida com a formação de conceitos: de um lado, como conceitos são originados a partir de ideias abstratas oriundas de lugares e fontes as mais diversas e, de outro lado, como tais ideias se articulam com o material empírico e constituem, desse modo, conceitos. Uma página aparentemente simples, mas que contém todo um programa epistemológico, programa este que decorre não da leitura do que os filósofos escreveram sobre o que a ciência deveria ser, mas de sua própria prática teórica e clínica.

A CARTA EPISTEMOLÓGICA DE FREUD: IDEIAS, CONCEITOS, FATOS

É inevitável que iniciemos este comentário com uma paráfrase das primeiras linhas de As pulsões e seus destinos, mostrando quantas teses sofisticadas se infiltram por sob uma primeira camada aparentemente naïve de texto. Antes de prosseguir, peço ao leitor que releia com cuidado os dois primeiros parágrafos do texto de Freud que tem em mãos (neste volume, p. 15 e p. 17). Trata-se, com efeito, de um dos raros momentos em sua obra em que ele explicita seu próprio procedimento conceitual e estabelece alguns parâmetros para a discussão do estatuto científico dos conceitos fundamentais da Psicanálise. O que se segue é um esforço de análise daquelas poucas e condensadas linhas. O resultado desse esforço será o de situar o estatuto epistemológico do conceito de pulsão.

A primeira coisa que Freud nos mostra é que a exigência de que uma ciência deva partir de conceitos claros e precisos, embora seja uma concepção amplamente difundida na cultura – por isso “frequentemente ouvimos” –,não corresponde à efetiva história das ciências, nem à prática científica concretamente realizada pelos cientistas. Isso é verdadeiro até mesmo no que concerne às ciências mais exatas.73 Logo em seguida, Freud

parece subscrever, ainda que por um breve momento, uma visão positivista da ciência, ao dizer que a atividade científica consiste, primeiramente, na descrição de fatos empíricos positivamente dados, que apenas num segundo momento seriam correlacionados entre si. Por um instante, Freud parece esposar o credo empirista radical da descrição ateórica (ou teoricamente neutra) de fenômenos que se mostrariam ao pesquisador em toda sua

objetividade e que apenas num segundo momento seriam inseridos numa estrutura teórica, i.e., agrupados e ordenados através de conceitos. Em suma, tudo parece indicar o endosso de uma visão segundo a qual a ciência começa pela observação de fatos e ascende gradualmente a níveis mais elevados de conhecimento, em que leis são formuladas e predições realizadas. O leitor apressado, com inclinações positivistas talvez inconfessas, poderia facilmente deixar-se levar. Mas Freud rapidamente dá uma terceira volta no parafuso. A ciência não começa com a descrição pura de fenômenos objetivamente dados. E isso ocorre por uma razão muito simples: não existem fenômenos puros, isentos de alguma estrutura ou elemento de natureza não empírica que torne possível a própria descrição.74

Freud emprega o termo mais genérico que pode: são “ideias abstratas” que parecem derivar do material empírico, mas que na verdade se antecipam à própria apreensão e impregnam a própria descrição do material.75 Tais

ideias são oriundas “de algum lugar” (irgendwoher). Na verdade, importa pouco saber a fonte desta ou daquela ideia, elas podem provir de qualquer lugar.76

Nesse momento inicial, o conteúdo delas é amplamente indeterminado. É justamente enquanto ainda possuem esse grau de indeterminação que devem ser reiteradamente confrontadas ao material. Freud descreve um complexo jogo de vai e vem entre ideias abstratas e fenômenos – no caso, o material da clínica psicanalítica, como sonhos, sintomas, atos falhos, etc. – cujo estatuto cabe ainda interrogar. Não poucas vezes, sublinha que tais ideias abstratas possuem contornos amplos e são semanticamente abertas, isto é, aptas a serem transformadas pelo confronto com o material empírico. É necessário tolerar certo grau de indeterminação e de obscuridade para que a experiência possa surpreender o investigador e obrigá-lo a redefinir os contornos de suas ideias iniciais. Desse confronto permanente, desse

trabalho de determinação recíproca entre o abstrato e o empírico, decorre o

caráter convencional do significado (Bedeutung) que será atribuído aos futuros conceitos. Até aqui, não custa lembrar, Freud está falando da relação entre ideias abstratas amplamente indeterminadas e material empírico: não se trata ainda de conceitos. A rigor, só podemos falar propriamente de conceitos após esse trabalho recíproco exaustivo através do qual ideias indeterminadas são constantemente referidas e confrontadas ao material clínico. Apenas nesse momento caberia falar em conceitos, cujo

estatuto convencional é reiterado. Apenas depois disso cabe ousar defini- los. Aliás, um dos traços marcantes do investigador Freud, que “denuncia a presença do escritor na raiz de sua obra”, é sua “tolerância à incerteza e à contradição própria aos fenômenos psíquicos” (CARONE, 2009, p. 123).

Qualquer leitor que tenha um mínimo de familiaridade com a história do pensamento freudiano saberá reconhecer este duplo aspecto de seu trabalho: ao mesmo tempo que zela, com rigor inflexível, pelos princípios fundamentais garantidores da identidade epistemológica da Metapsicologia e da especificidade ética da clínica psicanalítica, Freud é também aberto a reformulações, oriundas principalmente de alguns insucessos clínicos. Não custa lembrar que os principais casos clínicos publicados por Freud são

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