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Epistemologia e Reencantamento da Ciência

Nesse capítulo discorreremos sobre aqueles autores que pensam a relação entre ciência e reencantamento do mundo a partir de considerações epistemológicas. Em específico, visamos discorrer sobre os autores para os quais um certo conjunto de ideias científicas tiveram como consequência o desenvolvimento e/ou agravamento do desencantamento do mundo. Aqui parte-se do pressuposto de que se a ciência contribuiu para o desencantamento do mundo ela também pode contribuir para seu reencantamento. Se o desencantamento científico do mundo significou a transformação do mundo num mecanismo causal (PIERUCCI, 2003; SELL, 2013), seu reencantamento passa pela ruptura com a consideração do mundo como mecanismo e, portanto, com o modelo científico mecanicista que fundamentou tal visão de mundo.

Começaremos apresentando as considerações de Morris Berman sobre as relações entre a ciência e o desencantamento do mundo, e sobre a possibilidade de uma ruptura com um modelo de conhecimento buscando a construção de um paradigma que não dissocie sujeito e objeto, humano e natureza, observador e observado. Para Berman, o problema do sujeito e objeto na ciência não se resume à ciência, mas abrange toda nossa relação com o mundo; para ele o modelo científico moderno se tornou nosso modelo de consciência e de relação com a natureza. O reencantamento do mundo, portanto, passa pelo reencantamento da ciência, pela superação da dicotomia entre sujeito e objeto e pela ampliação de nosso horizonte de conhecimento para além do mecanicismo.

Como complemento às ideias de Berman, seguiremos adiante expondo as ideias de outros dois autores que discorrem sobre a emergência de um novo paradigma científico em oposição ao paradigma mecanicista moderno, são eles Ilya Prigogine e Edgar Morin. Eles destacam a urgência da emergência de um novo paradigma que possa superar as limitações do paradigma científico vigente, e buscam evidenciar/delimitar as características desse novo paradigma. Para eles, mais do que uma mera mudança epistemológica com alcance meramente “interno” no campo da ciência, a emergência de um novo paradigma teria consequências bem mais abrangentes na cultura, em nossa

relação com o mundo natural e em nossas relações interpessoais. De modo indireto, no caso de Morin, e de modo direto, no caso de Prigogine, a instauração de uma nova relação com o conhecimento, um reencantamento da ciência, poderia significar um reencantamento do mundo.

Para os autores apresentados aqui as ciências contemporâneas, com as diversas descobertas e inovações que tiveram ao longo do séc. XX, não são mais como aquela ciência pensada por Max Weber; estaríamos acompanhando o nascimento de uma nova ciência, na qual a causalidade não é mais tida como certa, e onde as leis gerais não são mais a forma privilegiada de compreensão da natureza. Essa reformulação da ciência supostamente traria mudanças profundas na forma como se encara a racionalidade e o mundo natural.

2.1 - Ciência e Consciência

Em seu livro, Reenchantment of the World, Morris Berman tem como foco apresentar as transformações no campo da mente humana que levaram a um desencantamento do mundo, primariamente, e que podem levar a um reencantamento do mundo. O autor parte da premissa que as questões fundamentais para a compreensão de qualquer civilização talvez seriam as questões do “entendimento” e do “significado”. Tendo isso em mente, para compreender as mudanças pelas quais passamos precisamos, antes de tudo, compreender qual modelo de conhecimento subjaz à nossa forma de entendimento do mundo e ao nosso modo de atribuir significado a esse mundo.

Para Berman, a forma de conhecimento que predominava no Ocidente antes da revolução científica foi a de um mundo encantado, na qual a natureza era vista como um todo, formando um conjunto com a humanidade. Nessa época o mundo era percebido a partir de um sentimento de pertencimento, o humano participava do mundo. Com a ciência moderna temos, por outro lado, um observador alienado do mundo. O desencantamento do mundo é a expressão dessa alienação na qual a consciência humana é desconectada de seu contexto, retirada de sua relação participação no mundo. Com o desencantamento do mundo a mente passa a ser considerada de modo alheio ao mundo, em oposição a matéria e ao movimento, conceitos fundamentais para a mecânica moderna e para o modo moderno de compreensão científica (1981, p.16-17).

Por meio de uma epistemologia que desencanta o mundo com sua separação rígida entre sujeito e objeto vemos a instauração de um conhecimento distante, não participante, na qual há uma rígida distinção entre o observador e o mundo observado. Assim como para Heidegger (2003), para Berman a ciência moderna transforma a natureza em objeto imutável e permanente; e nesse processo o humano aparece como um sujeito externo enquanto a natureza se torna um objeto a ser determinado em suas regularidades por meio do cálculo.

“A consciência científica é uma consciência alienada. (...) Sujeito e objeto são sempre vistos como em oposição um ao outro. (...) O ponto final lógico dessa visão de mundo é um sentimento de total reificação: tudo é um objeto, alheio, não eu; e eu consequentemente sou um objeto também, uma ‘coisa’ alienada em um mundo de coisas igualmente alienadas.” (BERMAN, 1981, p.17)

A tese de Berman é de que a visão de mundo da ciência moderna - com sua separação entre sujeito e objeto, com sua separação entre humanos e natureza - é determinante para a compreensão moderna do mundo de um modo geral. Ou, dito de outro modo, a visão de mundo científica é nossa consciência (1981, p.22). A ciência moderna e o modo moderno de vida se reforçam mutuamente, de um modo que se tornam dependentes e indissociáveis. Para Berman, a visão de mundo científica permeou de tal modo nosso modo de compreensão de mundo que até mesmo certas doenças psíquicas, como a depressão e a psicose, são resultados indiretos da rígida separação entre sujeito e objeto para a qual fomos treinados a considerar normal ao longo de nossas vidas. A epistemologia moderna determina nossa relação com o mundo e é reforçada por essa relação.

No entanto, esse mundo desencantado pela ciência moderna é um mundo muito recente. Ao olharmos para a história humana vemos que os últimos quatro séculos, período em que um paradigma mecanicista se consolidou, pouco representa na totalidade da história humana. Nosso passado é um passado encantado no qual o humano se via integrado ao mundo, não como sujeito externo ao mundo.

“(...) porque o desencantamento é intrínseco a visão de mundo científica, a época moderna conteve, desde seu início, uma instabilidade inerente que severamente limitou sua habilidade para se auto sustentar por mais que alguns séculos. Por mais de 99 por cento

da história humana o mundo era encantado e o homem se via como integrado nesse mundo. A reversão completa dessa percepção em cerca de meros quatro séculos destruiu a continuidade da experiência humana e a integridade a psique humana. (...) Nós não podemos voltar ao animismo ou à alquimia – ou ao menos isso não nos parece desejável; mas a alternativa é o mundo frio, científico e totalmente controlado dos reatores nucleares, microprocessadores e da engenharia genética – um mundo que já está virtualmente sobre nós. Algum tipo de consciência holística, participante, e uma correspondente formação sociopolítica devem emergir se quisermos sobreviver como espécie.” (BERMAN, 1981, p.23)

Foram dois os modelos de conhecimento que, desde a filosofia grega, perpassam o pensamento ocidental, e dessa forma determinaram o que hoje conhecemos como a ciência moderna: o racionalismo e o empirismo. O primeiro, o racionalismo, surge a partir do pensamento de Platão e tem Descartes como seu expoente moderno; segundo, o empirismo, é derivado do pensamento de Aristóteles e tem em Bacon seu expoente moderno. Enquanto para Platão o conhecimento sensível era considerado mera distração do verdadeiro conhecimento, que era um conhecimento racional das formas ideais, para Aristóteles o conhecimento consistia em generalizações feitas a partir dos dados sensíveis coletados no mundo exterior. Esses dois modelos, retomados por Descartes e Bacon, formaram o fundamento da ciência moderna.

Porém, o verdadeiro legado da ciência moderna não foi o conflito desses dois modelos divergentes, mas a síntese desses dois modelos. “O casamento entre a razão e o empirismo, da matemática com o experimento, expressou essa mudança significativa de perspectiva” (BERMAN, 1981, p.28). Na ruptura moderna com o mundo antigo o “como” se tornou gradualmente mais importante enquanto o “por quê” cada vez menos importante. O conhecimento científico se tornou o conhecimento dos processos e não mais das causas últimas que determinavam a natureza, tal como era para os gregos antigos. O conhecimento, pensado a partir de Bacon, se tornou poder perante a natureza; de um modo que o conhecimento mesmo só é importante em sua utilidade, em sua utilização prática para tal propósito. Para Descartes, por outro lado, o conhecimento foi reduzido à previsibilidade matemática, à capacidade de calcular e medir o mundo a partir de conceitos abstratos. O mundo não é mais destinado a contemplação, mas a dominação.

Para compreender a ciência moderna, e suas relações com o desencantamento do mundo, Berman toma como ponto de partida as ideias de Bacon e Descartes, e sua posterior fusão. De Bacon, um ponto determinante é seu ideal de tecnologia como fonte de uma nova epistemologia. O experimento - enquanto situação artificial na qual a natureza é testada e avaliada - é a representação da transformação da tecnologia numa forma de filosofia. Com Bacon, pela primeira vez, a tecnologia se torna um modo de obtenção de conhecimento; os utensílios, antes pensados apenas para facilitar a relação do humano com a natureza, são pensados agora almejando o conhecimento da natureza, visando seu controle posterior (BERMAN, 1981, p.30-31). Descartes por outro lado destacou a necessidade de um método de pensamento claro que pudesse ser aplicado de modo rigoroso a qualquer objeto de conhecimento. A dúvida metódica é o ponto de partida de uma reflexão de culmina em duas conclusões: 1) a matemática é o único método universal de chegar à certeza, visto que é o único que depende exclusivamente da razão; 2) só podemos conhecer uma parcela muito pequena da realidade, de modo que cada problema complexo deve ser partilhado em unidades mais simples para que possa ser compreendido (BERMAN, 1981, p.32-33).

Não devemos, porém, nos enganar acreditando que as filosofias de Bacon e Descartes são fundamentalmente opostas visto que serviram, conjuntamente, como fundamento para a instauração de um paradigma científico e, além disso, possuem um elemento central que as unifica:

“Embora a identificação de Bacon do conhecimento com a utilidade industrial e sua ênfase no conceito de experimento baseado na tecnologia subjazam grande parte do pensamento científico vigente, as implicações tiradas do cartesianismo tiveram um impacto de ampla escala na história subsequente da consciência ocidental e (a despeito de suas diferenças com Bacon) serviram para confirmar o paradigma tecnológico – e até mesmo serviram para o impulsionar de alguma forma. A atividade humana como ser pensante – e essa é sua essência, de acordo com Descartes – é puramente mecânica. A mente possui um determinado método. Ela confronta o mundo como um objeto separado. Ela aplica esse método ao objeto, repetidas vezes, e eventualmente conhecerá tudo que pode ser conhecido. O método é, no entanto, mecânico. (...) Subdividir, medir, combinar; subdividir, medir, combinar.” (BERMAN, 1981, p.34)

A base concreta para junção entre as teorias do conhecimento de Bacon e Descartes se deu apenas posteriormente, com os trabalhos de Galileu e Newton. O trabalho de Galileu, por exemplo, apresentou essa fusão de empirismo e racionalismo por meio da combinação de teorias matemáticas (geométricas) com a experimentação e observação de fenômenos empíricos. Newton leva esse projeto de ciência adiante com a instauração de um sistema atomístico do universo, no qual planetas e estrelas apresentam movimentos de acordo com aqueles que orientam os movimentos dos pequenos objetos da terra. O universo é transformado agora numa grande máquina, regular como um relógio. Tanto a matemática como a observação, no entanto, se dão de modo externo à natureza, alheio a ela; a natureza é medida e utilizada para os fins do observador. A transformação da natureza num mecanismo distancia ainda mais o humano da natureza; agora ela é o que o humano não é. O mundo externo é o mundo das coisas, o mundo humano o mundo do que é singular.

Berman considera essa externalização do observador um dos fundamentos da separação entre sujeito e objeto advogada pela ciência moderna, e que se estendeu por toda a cultura moderna; a esse modo “externo” de lidar com o mundo Berman chama de consciência não-participante, em oposição a consciência participante das culturas tradicionais (1981, p.39-40).

A ordem social que permitiu e propiciou a emergência da consciência não- participante é um evento relativamente novo, que tem como pré-requisito o experimento, a predição, a quantificação, enfim, os métodos da ciência moderna. Para o homem medieval, por exemplo, tudo isso faria pouco sentido. A ciência moderna se tornou o modo de cognição da sociedade industrial (GELLNER, 1964). A ciência consegue sustentar seu modo de explicação apenas num contexto para qual tal modo de explicação se torna válido e aceito como verdade.

Para pensar o que seria a consciência participante em oposição a consciência não-participante moderna Berman toma como primeiro exemplo o modo de vida medieval. Para o homem medieval as coisas do mundo obedecem a um propósito divino. A natureza é vista como uma totalidade orgânica, se repetindo em ciclos de vida e morte; o próprio tempo é cíclico, um eterno retorno. A noção de tempo linear e progressivo era inconcebível para o homem medieval que vivia evento após evento numa circularidade que lhe parecia natural (ELIADE, 1999). A natureza orgânica e

cíclica é imutável, porém cheia de sentido e propósito – de modo oposto a natureza desprovida de sentido dos modernos. Essa visão de mundo, para Berman, permaneceu vigente, pelo menos parcialmente, até o século XVII, período no qual o pensamento científico se desenvolveu em oposição a uma compreensão metafísica do mundo.

“(...) o século dezessete, que começou com a busca de Deus no universo, terminou o expulsando [do universo] de uma vez por todas. As coisas [para o pensamento científico nascente] não possuem um propósito, visto que é uma noção antropocêntrica, mas apenas comportamentos, que podem (e devem) ser descritos de um modo atomístico, mecânico e quantitativo. Como resultado, nossa relação com a natureza é profundamente alterada. Diferente do homem medieval, cuja relação com a natureza era vista como sendo recíproca, o homem moderno (homem existencial) se vê como possuindo a habilidade de controlar e dominar a natureza, para usá-la para seus próprios fins.” (BERMAN, 1981, p.51)

A partir do século XVII nossa forma de conhecer o mundo foi profundamente alterada. O universo se tornou infinito, mutável e em movimento, e o tempo linear e progressivo. O pensamento abstrato é a forma mais próxima da verdade. Cálculos e quantificações abstratas se tornam o modelo de explicação que mais nos aproxima do que é “real”.

Porém, as mudanças que colocaram fim ao mundo medieval e sua noção cíclica de natureza não foram apenas de origem científica. Não se trata aqui, portanto, de um mero determinismo idealista. Também é importante destacar as mudanças práticas (econômicas e políticas) que, em conjunto com o nascente pensamento científico, solaparam a visão de mundo antiga. A expansão comercial na alta idade média favoreceu trocas culturais e crescimento econômico de um modo nunca visto anteriormente. E o comércio crescente ao redor do mundo, logicamente, impulsionou a indústria, e assim a inventividade por meio da tecnologia. Ciência e tecnologia, nesse contexto, começaram a se fundir, em seus métodos e em seus objetivos (BERMAN, 1981, p.53-61). Ciência e economia também se impulsionaram mutuamente, pois tal como a economia reduziu as relações de troca ao cálculo e mensurabilidade, a ciência reduziu a natureza a uma interpretação matemática (SIMMEL, 2004).

Com o fim da idade média a explicação mecânica dos fenômenos se torna popular, a pergunta científica chave para explicar o mundo se torna: como isso funciona? O relógio se torna uma metáfora para o funcionamento do universo (WHITE,1974). A natureza agora segue o tempo linear e funciona como um constructo mecânico. “O nascimento do tempo linear e do pensamento mecânico, a equivalência entre tempo e dinheiro, o relógio e o ordenamento do mundo, são partes da mesma transformação, e cada parte ajudou a reforçar as outras” (BERMAN, 1981, p.57).

Também a popularização da literatura sobre ofícios e artifícios no fim da idade média, artes consideradas de classes subalternas durante a idade média, favoreceu a consolidação de um pensamento mecânico, bem como foi favorecida pela demanda cada vez maior de invenções e novas tecnologias dos ramos da agricultura, na indústria, no transporte, etc. A associação entre cientistas e inventores, bem como o extenso financiamento dirigido para ambos, tornou possível a revolução científica do século XVII. A tecnologia passou, a partir de então, a ter importância epistemológica e cognitiva; a tecnologia possibilitou uma ampliação de nossa cognição para além dos limites até então conhecidos pela ciência. Esse reforço mútuo teve como consequência uma forma de pensamento que tomou a cultura ocidental de modo bastante amplo.

“Uma vez que tecnologia e economia se tornaram ligadas na mente humana, a mente começou a pensar em termos mecânicos, a ver mecanismo na natureza. Os processos de pensamento se tornaram eles mesmos mecânico-matemático-experimentais, ou seja, científicos. A fusão entre o acadêmico e o artesão, entre geometria e tecnologia, estava agora ocorrendo dentro da mente individual humana.” (BERMAN, 1981, p.58-59)

Galileu é o exemplo perfeito dessa fusão entre o mundo dos cientistas e o mundo dos inventores, ele é o resultado da ruptura da oposição entre a ciência acadêmica e a arte dos artesãos. Galileu foi além de apenas se interessar pela tecnologia e pelo mundo das invenções e aparatos técnicos; ele se valeu da tecnologia para “produzir” teorias. Por meio de testes e experimentos com diversos aparatos Galileu foi testando hipóteses e aperfeiçoando ideias. Para ele havia uma profunda ligação entre construir algo e conhecer algo.

“Todas as investigações de Galileu serviram como vívida demonstração da relação entre teoria e experimento que lentamente se formou nas mentes de uns poucos pensadores europeus. Elas também justificaram a assertiva improvada feita pela literatura tecnológica do século dezesseis: a de que existe uma ligação fundamental entre cognição e manipulação, entre explicação científica e domínio do ambiente.” (BERMAN, 1981, p.64)

E é aqui que chegamos ao desencantamento do mundo. Para Berman o desencantamento do mundo é um processo histórico progressivo de retirada da mente dos fenômenos do mundo. Para ele a ausência de mente ou espírito nos “objetos” do mundo é o que marca distintivamente a consciência moderna (BERMAN, 1981, p.69). É assim que, no mundo moderno, com a progressão do pensamento científico, o entendimento da natureza se torna dependente da eliminação de qualquer forma de pensamento animista ou metafísico.

“Uma coisa que certa sobre a história da consciência moderna, no entanto, é que o mundo tem sido, desde em torno de 2000 AC, progressivamente desencantado, ou desdeificado [desendeusado]. Tenha o animismo qualquer validade ou não, não há dúvidas sobre sua gradual eliminação no pensamento ocidental.” (BERMAN, 1981, p.70)

Apesar de reconhecer o desencantamento do mundo como fenômeno progressivo milenar, Berman atribui a responsabilidade pela ampliação de tal fenômeno à tradição judaica e principalmente ao pensamento grego, e em especial ao pensamento platônico. No caso dos judeus o antigo testamento é tomado como exemplo de uma atitude de distanciamento do mundo, de distanciamento do humano da natureza. O monoteísmo judaico se fundou em sua oposição à relação de comunhão com a natureza. A experiência religiosa era vista como uma experiência subjetiva, em oposição aos cultos mágicos do politeísmo, que para os judeus antigos eram cultos da matéria.

No caso dos gregos há, em algum momento da história do desenvolvimento de seu pensamento, uma ruptura com uma forma de pensamento animista, na qual sujeito e objeto não eram opostos, e no qual sentimento e razão estavam em interação permanente, com nenhum se sobressaindo ao outro. Berman expõe a obra de Homero como marca desse pensamento anterior ao pensamento platônico e sua divisão entre

sujeito e objeto, entre mente e matéria. Platão representou uma nova tradição de pensamento que se interessava mais em explicar os fenômenos do que vivenciá-los ou mimetiza-los pela arte.

“A separação entre mente e corpo, sujeito e objeto, é discernível como um padrão histórico que apareceu por volta do século sexto antes de Cristo; e a mentalidade poética, homérica, no qual o indivíduo é imerso num mar de sentimentos contraditórios e aprende sobre o mundo por meio da identificação emocional com ele (participação original), é precisamente o que Sócrates e Platão planejavam destruir”. (BERMAN, 1981, p.71)

Essa hipótese levantada por Berman está, salvo as diferenças, em acordo com a tese de Nietzsche (2007) sobre a tragédia grega, e com sua explicação para a decadência da cultura grega de um modo geral; para Nietzsche (2007), a partir de Sócrates há a instauração de um modelo racional de pensamento que nega a percepção do mundo em seus aspectos dionisíacos - ou seja, como negação do trágico, estético,