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80 A carta contém um apelo, espera uma resposta, anuncia ou dá continuidade a um diálogo, ela é a ruptura da solidão e um instrumento de comunicação entre duas consciências

(GIRARD, 1986, p. 20).

Affonso Romano de Sant’Anna escreve sobre um dispositivo essencial à correspondência, aquele que pressupõe que toda carta espera – e merece – uma resposta: “Aquele que escreve cartas/ não apenas cola selos/ num envelope de nuvens/ lançado sobre o horizonte./ Espera que quem recebe/ saiba ler na linha d’água/ a sede do eterno instante/ e jorre afeto e resposta/ num diálogo de fontes” (SANT’ANNA, 1998, p.40). Se a carta encarna este desejo de puxar conversa, nada mais natural do que esta conversa seja continuada pelo interlocutor, que ele aceite este convite à tagalerice e se lance neste dialogismo produtivo. De fato, Lucette Petit reconhece que as cartas estão implicadas na triangularidade formada por “recepção, leitura, resposta” (PETIT, 2000, p. 116), tríade que exige continuidade para a manutenção saudável do fluxo epistolar. O dispositivo de resposta se encontra no cerne do protocolo de leitura do epistolar por fazer jus à especificidade desta escrita de si enquanto abertura para o outro e busca de diálogo junto ao destinatário. Se o remetente não obtiver resposta para sua missiva, seu desejo de se mostrar ao outro, de acolhê-lo e de com ele criar um fluxo de conversa não terá obtido êxito e sua empreitada estará fadada ao insucesso. Uma carta sem resposta se configura como contato frustrado, mensagem que não percorreu plenamente seu destino e que não aproximou interlocutores. Ela rompe, desta maneira, com o fundamento que caracteriza e difere a epistolografia de demais discursos do eu, como o diário, a entrevista, o testemunho, a autobiografia, a autoficção. Ao longo deste capítulo observaremos referências à resposta no âmbito de filmes que acolhem missivas, de correspondências de escritores e de romances epistolares. Para além das particularidades de cada tipo de narrativa, analisaremos a importância da reposta, o apelo (criativo ou agressivo) dos missivistas para que o destinatário não os deixe sem resposta, as táticas e estratégias para escrever na ausência de assuntos e a necessidade de se justificar uma demora ou um

81 longo silêncio epistolar. Deste modo, daremos continuidade a nossas reflexões acerca das singularidades da arte epistolar ao privilegiar elementos que envolvem seu dialogismo.

No filme Caminhando nas nuvens, de 1995, encontramos elogio ao ciclo epistolar e menção às nefastas consequências de sua ruptura. Mais do que isto, o filme contribui para o debate em torno da resposta dentro da prática epistolar ao colocar em cena uma situação atípica de cartas que não são lidas tampouco respondidas. A cena em questão está presente no início do filme e se revela pertinente por trazer à luz em toda a sua abrangência a afetividade e as promessas que acompanham a escrita e o envio de cartas. Além disto, o filme reitera o sentimento de crueldade, de falha e de despeito que acompanham inevitavelmente o destinatário indiferente. Em poucos minutos, o filme desnuda por completo a base ‘recepção, leitura e resposta’ que molda e condiciona a prática das correspondências, convidando seus espectadores a reafirmarem a necessidade absoluta de cada um dos três elementos para a eficácia da comunicação.

A história perfaz o caminho de Paul Sutton, que retorna para casa depois de quatro anos nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial. Apenas três dias antes de partir, Sutton havia se casado com Betty a quem enviou centenas de cartas que nunca foram respondidas. Ao retornar para casa, ele questiona o silêncio da esposa que lhe negou todo tipo de notícias e o encerrou efetivamente nos horrores do genocídio. Prontamente, a jovem lhe mostra caixas e mais caixas com as centenas de cartas enviadas, todas ordenadas cronologicamente e, para sua surpresa, ainda fechadas em gavetas. A esposa não havia aberto nenhuma das cartas, justificando tal iniciativa por preferir afastar de si detalhes da guerra e por se contentar com os envelopes como atestados de vida do amado. Cada carta de Sutton era comemorada como uma vitória em meio às calamidades da barbárie sem que precisasse, ao menos, ser aberta. A cada uma das centenas de cartas que não paravam de chegar, se renovava a esperança do fim do périplo e do retorno do amado, notícia suficientemente apaziguadora para ela. O zelo do arquivamento pouco interferiu para amenizar a revolta do americano para quem a recusa da leitura e, por conseguinte, de resposta de suas cartas mostrava provas do egoísmo e da indiferença da esposa. Enquanto ele enfrentava os anos mais penosos e difíceis de sua vida e vislumbrava nas cartas um vínculo com algum tipo de lucidez e de rotina familiar, ela se limitava a colecionar envelopes sem se preocupar com seu conteúdo tampouco com a resposta. Para ela, as cartas se ofereciam unicamente como aviso de vida, como afago do amado que parecia lhe dizer que estava por retornar. Em momento algum as missivas conseguem ser interpretadas por ela como necessidade de diálogo, de prolongamento de

82 presença, de representação de certa normalidade em meio à guerra. Parece-lhe difícil descortinar as cartas sob a perspectiva do interlocutor, pois, em outras palavras, ela desconhece os anseios e mesmo a existência de alguém por detrás dos envelopes, carimbos e selos do serviço postal. Assim, Betty trai as expectativas do marido com sua apatia epistolar e a ele parece restar, apenas, uma inadiável separação.

Fazemos agora um desvio que nos conduz à observação sobre o papel das gavetas no universo epistolar. Encontramos menções a cartas que se deixam esquecer em gavetas, cartas escritas e não enviadas bem como cartas guardadas à espera da visita bisbilhoteira de algum curioso. O escritor colombiano Hector Abad compartilha a experiência da abertura das gavetas do pai depois de seu falecimento:

Abrir gavetas é como abrir frestas no cérebro do outro: descobrir o que ele mais amava, quem encontrava (segundo os compromissos de sua agenda ou as anotações de um caderno), o que comia ou comprava recibos de loja, extratos de cartões de crédito, notas fiscais, que fotos ou lembrança guardava, que documentos mantinha à mostra e quais em segredo

(ABAD, 2011, p. 259).

Abrir gavetas se assemelha ao ato de reler cartas alheias. Talvez não seja por acaso que muitos missivistas escolham a proteção deste espaço privado para arquivar seu percurso epistolar. Neste sentido, a abertura da gaveta e das cartas pode ser lida como um ato incorreto e surpreendente quanto à revelação de segredos. A propósito de gavetas e escondeirijos, Gaston Bachelard defende ser o homem “grande sonhador de fechaduras” (BACHELARD, 2003, p. 87) e imagina gavetas, cofres, fechaduras e armários como “insondável reserva dos devaneios de intimidade” (BACHELARD, 2003, p. 91). O filósofo explica sua consideração:

O armário e suas prateleiras, a escrivaninha e suas gavetas, o cofre e seu fundo falso são verdadeiros órgãos da vida psicológica secreta. Sem esses ‘objetos’ e alguns outros igualmente valorizados, nossa vida íntima não teria um modelo de intimidade. São objetos-mistos, objetos sujeitos. Têm, como nós, por nós e para nós, uma intimidade

(BACHELARD, 2003, p. 91).

Acerca dos vínculos entre escrita e segredo, poderíamos aludir às pistas de Gaston Bachelard para quem

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sempre haverá mais coisas num cofre fechado do que num cofre aberto. A verificação faz as imagens morrerem. Imaginar sempre será maior que viver. (...) O segredo é um túmulo; e não é à toa que o homem discreto se gaba de ser um túmulo de segredos. Toda intimidade se esconde

(BACHELARD, 2003, p. 100).

Abad revela que “abrir gavetas de um morto é como mergulhar nessa face oculta que só era visível para ele e que ele só queria ver, a face que ocultava da vista dos outros: a da sua intimidade” (ABAD, 2011, p. 261) e que: “Duas semanas após o assassinato do meu pai, fui incumbido da tarefa de examinar as gavetas (os arquivos, os papéis, a correspondência, as contas) do seu escritório” (ABAD, 2011, p. 259). Por sua vez, Andréa Azulay, filha do psicanalista de Clarice Lispector, se orgulha de sua coleção de cartas de Clarice Lispector. A menina, cujas lições literárias com a famosa professora se realizavam no âmbito epistolar, se alegra: “Sabe que eu tenho uma gaveta só de suas cartas e retratos?” (LISPECTOR, 2002, p. 304). Assim, as afinidades entre cartas e gavetas podem ser reconhecidas em obras como As pontes de Madison, Aí vai meu

coração – as cartas de Tarsila do Amaral e de Luís Martins e Cartas do Sobrado. Esta

última, além do elogio das gavetas, evoca uma papeleira onde foram encontradas cartas de familiares de diferentes gerações da família Pessoa dos Santos. O móvel é representado como tesouro identitário e presente para as gerações que puderam melhor conhecer seus progenitores. Em Aí vai meu coração, a escritora Ana Luisa Martins conta como suas visitas curiosas, definidas por ela como invasão, às gavetas do pai a fizeram descobrir que ele, Luís Martins, havia sido casado com Tarsila do Amaral, prima de sua mãe. Por fim, o filme Central do Brasil, ao qual já nos referimos e que examinaremos novamente mais adiante, também evoca um singular destino das gavetas: o purgatório, o limbo de epístolas em eterno compasso de espera.

Concluímos nosso desvio e retomamos o protocolo de resposta na esfera das correspondências. No âmbito da epistolografia brasileira, muitos foram os escritores que refletiram e comentaram os numerosos efeitos e meandros da resposta enquanto componente essencial à troca epistolar. Graciliano Ramos, por exemplo, em carta de amor àquela que seria sua segunda esposa, ressalta o prazer das respostas como pulsão à escrita epistolar: “Heloísa: Mandei-te uma carta pelo último correio, e já a necessidade me aparece de falar novamente contigo. Se pudesse, empregaria todo o meu tempo em

84 escrever-te, só para ter o prazer de receber respostas” (RAMOS, 2011, p. 17). Se, por um lado, Ramos evidencia o prazer da resposta, em outro, ele exalta a angústia da espera:

esperei notícias tuas quinta-feira passada. Nenhuma linha – e isto aqui tornando-se insípido e deserto. Pus as minhas esperanças no sábado, e o sábado passou como os outros sábados. A insipidez cresceu, o deserto aumentou. Restava-me a certeza de que o correio de hoje me traria cartas. Nada! Uma semana sem falar contigo! Que te fiz eu? Escreve- me embora seja para dizer-me todas as coisas desagradáveis que me quiseres dizer

(RAMOS, 2011, p. 130).

Ramos é seguido de perto por Fernando Sabino que chega ao disparate de faltar ao trabalho no Consulado aos sábados sem deixar, todavia, de sempre passar por lá depois da hora do expediente para recuperar suas correspondências. Se, como se vê, o respeito ao horário de trabalho pode ser reinventado, o mesmo não se diz da necessidade de aproveitar o final de semana para conversar com os amigos. Sabino conta a peripécia em detalhes:

(...) não vou lá, e apareço na segunda-feira com cara de quem foi – estranhando muito que não me tivessem visto. Mas quando acordo, me dá aquela coceira, aonde? Na alma, no coração: fico pensando que só porque não fui chegou uma carta de vocês. (....) Vou ao Consulado para verificar afinal que em cima de minha mesa não tem carta de ninguém , senão eventualmente contas a pagar ou prospectos ou circulares de propaganda pedindo esmolas para organizações de caridade

(SABINO, 2002, p. 169).

Ao ritual da ida às escondidas sábado ao Consulado segue-se a cerimônia da volta para casa, quando Helena, a esposa, abre a porta e pergunta: “’– Tinha?’ e recebe prontamente a resposta ‘– Não, não tinha’” (SABINO, 2002, p. 169). Assim sendo, as cartas despertam situações inusitadas pelo desconforto de se fazerem esperar. Ramos e Sabino são acompanhados por Lispector, cuja angústia da espera de missivas importuna o porteiro do prédio. Em carta à irmã, em fevereiro de 1944, ela revela descompasso entre seu desejo de leitura e a chegada das cartas: “O fato é que estou sempre perguntando na portaria se não tem carta. Prometi a mim mesma deixar o homem em paz; mas quando passo por perto, olho de um tal jeito que ele diz logo: não tem nada” (LISPECTOR, 2002,

85 p. 39). A escritora de origem canadense Nancy Huston tenta definir o que considera ser sua “patologia com a caixa do correio” (HUSTON; SEBBAR, 1999, p. 197):

Ao chegar pela manhã tento adivinhar, pelo aspecto, se a caixa contém ou não correspondência. Finjo estar distraída e deslizar a mão na caixa como por automatismo, indiferente ao resultado das sucessivas tentativas. Se por acaso não tiver nada – nada nesta manhã? Nem ontem? Dois dias seguidos? Os carteiros devem estar em greve, meu porteiro deve estar doente, Chirac deve ter declarado feriado – eu me sinto muito mal.

(HUSTON; SEBBAR, 1999, p. 197).

Fernando Sabino, por sua vez, ressalta a necessidade da resposta para além do desejo de diálogo epistolar. Para ele a resposta se faz imperativa para convencer o remetente de que sua missiva chegou ao destino desejado. Neste sentido, a resposta seria uma maneira educada de acusar o recebimento da carta, de acalmar o agitado remetente que vislumbra variadas e inusitadas hipóteses para o destino de sua missiva: “Me escreva logo, porque quem inicia correspondência fica sempre com ar de que se esqueceu de endereçar o envelope ou não pregou direito o selo” (LISPECTOR; SABINO, 2011, p. 85). Sabino, em carta para Mário de Andrade, em 1942, põe em prática sua ideia de que a resposta acusa o recebimento e acalma o remetente. Ele brinca com as hipóteses decorrentes da não-resposta e se retrata ao amigo:

Antes de tudo mil desculpas por não ter respondido sua carta antes. Essa demora pode fazer você pensar duas coisas: 1º. – que não a recebi; 2º. – que não fiquei satisfeito com ela. Pois saiba que, ao contrário, ela me agradou tremendamente. Você se mostrou mais uma vez, e mais do que nunca, meu amigo. Não pode calcular como lhe sou agradecido

(SABINO, 2003, p. 44).

Logo, a não-resposta engendra uma culpa no remetente que se pune e se convence de que se atrapalhou no envio do envelope. Somente após este momento inicial de culpa, no qual perfaz meticulosamente as ações em torno da postagem, que o remetente se volta para o destinatário para lhe cobrar uma resposta e lhe acusar de deselegância. Acusação imbuída, é preciso salientar, de certa desconfiança em relação ao correio e o possível extravio da carta, desconfiança que se dissipa com a confirmação do recebimento e com a resposta.

86 Mário de Andrade não obtém resposta de carta para Martins de Almeida e se entristece em correspondência com Drummond ao começar a admitir um possível extravio:

Ora eu já escrevi duas e da segunda não veio resposta. Não sabe se ele a recebeu? Se não, fico seriamente triste porque era longa, não era pensada, não, mas era tão minha, dada de coração e eu me horrorizo de me pensarem ingrato ou indiferente

(ANDRADE, 1982, p. 5).

Em breve carta de cobrança para Drummond, em janeiro de 1929, esbraveja e questiona:

Mas que é isso!!! Você não recebeu minha carta? Foi registrada como todas as que têm alguma coisa de substância, cheia de papéis, preços, etc. e exigindo resposta. Mas ou não veio nada ou se perdeu. Me responda qualquer coisa. Já estou imaginando que você desistiu, o que sinceramente me parece uma pena

(ANDRADE, 1982, p. 145).

Por certo, a não-resposta engendra uma série de mal-entendidos: de um lado, o remetente não sabe se a carta foi recebida e se amargura com a possibilidade de ser considerado indiferente; por outro lado, o destinatário se angustia com a espera e imagina que sua carta não mereceu resposta e que foi escrita em vão. A não-resposta, desta maneira, contraria ambos os missivistas e dá um nó no fluxo epistolar.

Encontramos no romance A sociedade literária e a torta de casca de batata trechos que aludem à ambivalência escrita de carta e resposta: “Gosto de receber suas cartas, mas sempre acho que não tenho nada que valha a pena contar, por isso é bom responder a suas perguntas retóricas” (SHAFFER, 2009, p.94) e “Essa foi a carta mais longa que já escrevi – não precisa responder com outra igual” (SHAFFER, 2009, p.27). A ressalva desobriga o destinatário a escrever uma longa resposta, mas deixa implícito que a resposta se faz necessária. No primeiro trecho há uma pertinente menção ao fato de que nem sempre temos novidades a serem contadas nas cartas. A aparente falta de assunto, contudo, não deve ser interpretada como empecilho para a redação de uma resposta, como confirma Fernando Sabino em carta para Clarice Lispector, na qual revela: “Até logo, Clarice, exijo resposta imediata, mesmo que não tenha feito uma pergunta” (LISPECTOR; SABINO, 2011, p. 59). Lispector, por sua vez, revela o desagrado em

87 formular perguntas para impelir o receptor e tentar assegurar resposta. Ela admite, em carta para Sabino, em julho de 1953: “Quando eu receber resposta a esta carta, vou ficar um pouco ofendida pois só fazendo uma pergunta de interesse ignóbil e pessoal é que você achará necessário responder” (LISPECTOR; SABINO, 2011, p. 94). A pergunta, neste contexto, se revela um artifício para implorar atenção e manutenção de uma saudável pontualidade epistolar. Tudo se passa como se a ausência de perguntas levasse o destinatário a postergar e, finalmente, a esquecer de redigir a resposta.

Não à toa, as cartas costumam abrigar diversas perguntas, mesmo que retóricas, que impelem o destinatário a se lançar no diálogo epistolar. Clarice Lispector, ao longo da correspondência com as irmãs, não se furta a criar mecanismos que as obriguem a lhe escrever. Cansada de suplicar por respostas, desenvolve um questionário de dez perguntas numeradas e dispostas como em uma lista para que assuntos não faltem às irmãs. Mais do que impelir suas interlocutoras a enviar uma resposta, Clarice parece intimá-las, constrangê-las, até em busca da tão esperada resposta. Chega ao limite de cobrar resposta de sua sobrinha, uma criança ainda na tenra infância: “Peça a Marcinha para me escrever uma carta. Ela está me ‘devendo’ resposta” (LISPECTOR, 2007, p. 176).

Com tom professoral, Lispector ilustra o funcionamento padrão das correspondências, colocando em cena a pertinência de se responder as perguntas para se assegurar continuidade ao fio da conversa. Caso contrário, parece não haver troca de cartas, e sim aproximação de monólogos ou cotejamento de páginas de diário:

Elisa, nossas cartas todas parecem um monólogo: dá a impressão de que vocês não estão respondendo às minhas cartas nem eu às de vocês; porque parece que eu esqueço de responder a certas coisas e que com vocês acontece o mesmo. Peço a você que antes de me escrever dê uma vistinha na carta para ver se eu não pergunto especialmente alguma coisa

(LISPECTOR, 2007, p. 66).

Mário de Andrade menciona certa falta de assunto e a necessidade de se remeter à carta do remetente para responder às perguntas por ele formuladas: “Recebi por estes dias uma carta de você porém agora não acho e ando tão bestificado ainda que carecia dela pra ver se arranjo assunto para responder” (ANDRADE, 1982, p. 90). Clarice Lispector acompanha de perto a dificuldade em lidar com respostas, ou, mais precisamente, com a falta de perguntas: “Sem carta para responder, escrevo para dizer que estou bem, sem novidades” (LISPECTOR, 2007, p. 197). Em um arroubo, não se furta a intimidar as

88 irmãs, ameaçando-as: “De agora em diante só escreverei em resposta a cartas” (LISPECTOR, 2007, p. 202).

Sabino ensina a Otto Lara Resende que toda carta implica um ritual de resposta, ritual este que obriga o remetente a responder as perguntas e comentários do seu interlocutor. Quase como um trabalho escolar de casa, o remetente não pode perder de vista a carta recebida para formular a resposta sob pena de contribuir para uma conversa entre surdos ou a uma sucessão de monólogos. Ele explica a doutrina: “Estou agora relendo a sua carta para ver se há alguma coisa a responder. (Seja cedente, digo decente, faça isso também com a minha.)” (SABINO, 2002, p. 115), “Passei os olhos na sua carta para ver se tem alguma coisa mais a conversar” (SABINO, 2002, p. 156),

Uma carta sem resposta se revela grande descortesia do destinatário e suscita dúvidas quanto à efetiva recepção da missiva. Madame de Sévigné deixa transparecer sua insatisfação com cartas não respondidas: “Você sabe que nada incomoda tanto quanto quando pensamos ter escrito para entreter seus amigos, e eles não têm o cuidado, e não dizem sequer uma palavra” (MADAME DE SÉVIGNÉ, 2009, p. 89). Com sua reclamação, ela deixa transparecer que o silêncio do destinatário impede o remetente de desfrutar do divertimento da resposta. Tudo se passa como se a escrita epistolográfica fosse um jogo no qual os protagonistas se revezam. Neste jogo dialógico, se um deles se cala, não somente deixa o interlocutor sem resposta como o impede de dar continuidade ao fluxo da conversa. O entretenimento do epistolar, à luz de Madame de Sévigné,

No documento Por um protocolo de leitura do epistolar (páginas 79-200)

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